Ética, Pratique

Seis práticas

Fazendo uma auto-análise poderemos observar que, muitas vezes, nos tornamos escravos da necessidade de reconhecimento por parte dos demais. Essa necessidade busca preencher a falta de auto-reconhecimento ou a falta de aceitação e acaba gerando uma série de condutas e situações indesejáveis nas quais ficamos muitas vezes enredados. Porém, existem práticas que podem nos libertar.

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Fazendo uma sincera auto-análise, poderemos observar que, muitas vezes, nos tornamos escravos da necessidade de reconhecimento por parte dos demais. Essa necessidade busca preencher a falta de auto-reconhecimento ou aceitação , e acaba gerando uma série de condutas e situações indesejáveis nas quais ficamos muitas vezes enredados, sem poder sair. Nessas circunstâncias há, felizmente, algumas práticas de Yoga que podem nos libertar.

No verso 43 do Sanatsujātīyaṁ, um instrutivo diálogo sobre a vida de Yoga inserido no Mahabhārata, o sábio Sanatsujāta ensina ao rei Dhṛtaraṣṭra que há seis formas de praticar, vinculadas com outros tantos valores. Existem muitos caminhos, adequados para as diferentes sensibilidades das pessoas. O conselho que o ṛṣi dá para o rei é que o tipo de ensinamento deve estar em função da história pessoal de cada um, para adaptar a forma de expor o conhecimento à maneira de ser da pessoa. O professor, dessa maneira, precisa ver em que ponto está cada praticante e fazer as escolhas certas para ajudá-lo com eficiência. As seis formas de prática que Sanatsujāta ensina são as seguintes:

1) Satyam é fazer coincidir palavras, pensamentos e ações.

2) Ārjavan é retidão de conduta, honestidade, sinceridade.

3) Hrīḥ é simplicidade, modéstia, humildade.

4) Dama é equanimidade, tranquilidade, auto-controle.

5) Śauchan é pureza, limpeza interior.

6) Vidyā é conhecimento de si mesmo.

1) Satyam, significa dizer a verdade, e pode se traduzir como alinhar palavras, pensamentos e ações. Quando há alinhamento entre esses elementos, a gente se fortalece. O fato de não precisar pensar defensivamente no que dizemos nos permite fluir naturalmente, pois não temos necessidade de inventar histórias para nos explicar. Isso, por sua vez, simplifica a vida extraordinariamente e se traduz numa tranquilidade que nunca nos abandona.

Por outro lado, precisamos exercer o bom-senso para nos defender das mentiras alheias. Existem formas e formas de mentir, algumas sutis e insidiosas. Por exemplo, o fabricante não anuncia seu refrigerante como o que ele é, água negra com açúcar, senão, ninguém compraria. Ele precisa inventar uma história sobre felicidade, de preferência com algum futebolista ou ator famoso bebendo aquela água preta na frente das câmeras. Uma amiga ferveu um desses refrigerantes por um tempo. Aquilo se tornou um plástico duro, com um cheiro asqueroso. Evidentemente, esse tipo de “produto” não é comida, não tem prāṇa, nem deveria fazer parte da nossa dieta.

Compramos o refrigerante enganados pela publicidade que se faz dele, pois buscamos o conforto falsamente prometido e queremos nos sentir parte do grupo das pessoas felizes que aparecem na publicidade com garrafas daquele líquido nas mãos. No processo, esquecemos que aquilo é um perigo para a nossa saúde, além de ser uma afronta ao meio-ambiente, já que o processo de fabricação desses produtos é altamente lesivo ao equilíbrio da nossa já combalida ecologia planetária.

Assim, satyam não é só dizer a verdade, mas fazê-lo de maneira equilibrada e compassiva. Ainda, lembremos que cultivar satyam é igualmente estarmos atentos às nossas escolhas em relação as eventuais mentiras que possam vir desde for a e sermos capazes, com os olhos bem abertos, de filtrar o que a sociedade nos impõe.

2) Ārjanam é simplicidade, retidão. É preciso tomar o cuidado de fazer coincidir os pensamentos, as palavras e as ações que mencionamos acima, com o que é correto, com o bem comum, chamado dharma. Uma definição simples de dharma é não fazer aos demais aquilo que não gostaríamos que os demais fizessem conosco. Assim, é preciso ficarmos cientes da responsabilidade que temos em relação ao que dizemos e fazemos.

Devemos, portanto, ser responsáveis e cuidadosos com nossas palavras e atitudes, o que se estende a todas as atitudes no cotidiano. Assim, ārjavam é fazer coincidir intenções, palavras, ações e o que é certo. Isso é retidão. Aquilo que eu penso é aquilo que eu falo. Aquilo que eu falo é aquilo que eu faço. Aquilo que faço não fere o bem comum. Aquilo que faço é o que gostaria que os demais fizessem também. Aplicando-se estes dois valores combinadamente, satyam e ārjavam, a vida inteira muda.

Outra maneira de praticar ārjavam é em relação ao nosso próprio corpo. Muitas vezes, a dor física produz sofrimento psíquico, quando permitimos que a dor “derrame” sobre o ego e o pensamento. Se por exemplo, se estivermos com dor em alguma parte do corpo, não devemos dizer “estou com dor”, mas “meu joelho está doendo”. Localizar a dor nos ajuda a lidar da melhor maneira com ela.

3) Hrīḥ é simplicidade, conformidade, capacidade de estar em paz, contentando-se com o justo e necessário. Essa atitude se traduz numa vida de ahiṁsā, com o mínimo impacto de violência no mundo e nos demais. Conformidade não é fraqueza, mas fortaleza. Conformidade não é conformismo, não é resignação, nem acomodação.

Aquilo que fazemos não deve ferir nem ofender os demais. Isso inclui uma montanha de compaixão, paciência e sacrifício. Demos a passagem no tránsito. Não queiramos sempre chegar em primeiro lugar. Deixemos os outros vencerem, também. Relaxemos dessa corrida maluca que a sociedade nos impõe. Contentemo-nos com menos e a plenitude irá fluir em nossa direção.

4) Damaḥ é equanimidade, equilíbrio. Também é a capacidade de dizer não. É a qualidade de não ceder à pressão, seja de dentro ou de fora. Se, por exemplo, você recebe um convite para brigar ou discutir com alguém, é desejável ter uma temperança interior que lhe permita manter-se à margem da eventual briga que esteja se formando.

A prática de damaḥ aplicada à palavra nos ensina que é desejável evitarmos palavras desqualificadoras em relação aos demais e às situações que vivemos, pois isso não promove paz nem felicidade. Façamos os demais se sentirem felizes. Não julguemos negativamente o tempo todo. Não nos lamuriemos tanto. Usemos palavras doces. Reconheçamos que todo o mundo tem coisas muito boas. Não busquemos o tempo todo o defeito, o que está errado.

Se surgir um sentimento de raiva, lembremos não há nada de errado com a raiva, mas tampouco há nada de certo. Algo serviu como gatilho para desencadeá-la. Temos que reconhecer que de nada serve descarregar a raiva em outrem, mas de nada serve reprimí-la. O segredo é sublimá-la, permitindo que ela se torne algo construtivo. Assim, nosso compromisso deve ser em relação a não vitimizarmos os demais, a não descarregarmos nossa raiva ou frustrações neles. Isso é damaḥ.

5) Śauchan é pureza. Há duas formas de śauchan: uma externa e uma interna. A externa diz respeito ao ambiente e ao próprio corpo. Internamente, śauchan significa ser capaz de se livrar do remorso, da culpa. Limpar-se é algo que pode ser feito através da prece, procurando compreender e aceitar as diferentes situações que a vida coloca à nossa frente.

Outra maneira de termos essa purificação interna é cultivando a prática chamada pratipakṣa bhavana. Isto é, a convivência com o sentimento oposto daquele identificado como indesejável. Se, por exemplo, estivermos com mágoa ou raiva de alguém, procuremos ver o lado bom dessa pessoa e agir de maneira compassiva e amistosa. Isso não é hipocrisia, mas é uma atitude que nos traz grandeza. E nos limpa por dentro.

6) Vidyā é o conhecimento de si mesmo, fonte de todas as formas de Yoga e propósito final de todas suas práticas. Todo valor, toda atitude, toda forma de praticar Yoga tem como ponto de partida a visão de si mesmo como alguém pleno e, como meta primordial, reconstruir a imagem eventualmente distorcida ou parcial que possamos ter de nós mesmos cultivando e tendo presente essa visão fundamental: já somos a plenitude que estamos buscando. Não precisamos, portanto, nos tornar nada diferente daquilo que somos.

Fundamentalmente, o autoconhecimento nos ensina a nos aceitar como somos, a compreender que nada está for a de lugar na criação e em nós mesmos. Assim, para que o contentamento e a felicidade vivam em nosso lar, as pretensões, os falsos conceitos sobre o que somos e, principalmente, os valores equivocados, devem sair. Somente depois que os visitantes indesejáveis forem embora, o conhecimento e a harmonia de irão se manifestar em nossas vidas.

Namaste!

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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13 respostas para “Seis práticas”

  1. Pedro,
    Sábias palavras..sempre leio seus textos, e a cada um deles, consigo tirar e filtrar o que há de melhor em mim, esquecendo culpas, lamúrias e decepções. Como diz Professor Hermógenes: Deus me livre de ser normal! Grata,
    Namastê.

  2. Caro Pedro, Sobre o item 4) Damah: equanimidade, equilíbrio. Especialmente sobre o trecho \\\’Se surgir um sentimento de raiva, lembremos não há nada de errado com a raiva, mas tampouco há nada de certo. (…) O segredo é sublimá-la, permitindo que ela se torne algo construtivo.\\\’ Na sua experiência de praticante, quais são os elementos do Yoga que colaboram para que esse passo seja dado, ou seja, para que no cotidiano, a raiva possa ser de fato sublimada? Tenho essa dificuldade de reconhecer na prática, quais são os elementos que vão me ajudar, pois, essa é uma dificuldade minha que busco melhorar. Obrigado pelo texto, um abraço cordial.

  3. Boa tarde,
    Muito Grata com o que li, estava precisando muito dessa reflexão, … hoje acordei em conflito comigo, algo mudando dentro de mim, sei que tenho que aceitar como sou, e tentar fazer as coisas da melhor maneira possivel, mas sem cobrança interior. essa reflexão me ajudou muito.
    Muito Obrigada, Namastê!

  4. Muito boa essa reflexão. Diariamente frequento o seu site, leio atenciosamente as mensagens e procuro fazer sempre uma auto reflexao, nas minhas condutas, no meu modo de ver a vida.
    Tenho buscado e seguido firme no caminho da iluminação. Sempre repasso esses textos a amigos e familiares, e todos tambem se sentem leves após as leituras. Grande abraço.

  5. Gratidão Pedro.
    É um prazer ler este seu blog.
    Shanti.

  6. Obrigada Pedro!

    Que forma clara e completa de explicar cada uma dessas etapas tão importantes.

  7. Namaste -^- Pedro,
    Gostei muito deste texto, porque me reporta a algo que eu nunca mais esqueci, escrito no seu livro Yoga Prático, sobre yamas e niyamas, e do seu conselho acerca de como podemos nos estabelecer nessas práticas. E essa prática vai-se alargando e alargando, às vezes mais presente, outras vezes menos, umas vezes inconscientemente, outras vezes, conscientemente. Parece-me excelente complemento a essas ideias.
    Obrigado Pedro,
    Saudações,
    Francisco.

  8. Adorei! Perfeito para usar em todos os dias, apesar da dificuldade que será praticar depois de muitos anos em extrema confusão e desarmonia. Mas é um passo de cada vez…

  9. Namastê!
    Bom dia Pedro e caros amigos!
    Sou infinitamente grato pela oportunidade de contemplar tão grandiosos ensinamentos! Todos necessitamos despertar nossas consciências para o que é verdadeiramente importante para nós. Mas isso é muito íntimo de cada um…
    Portanto se faz extremamente necessário também o autoconhecimento e o aprimoramento interno e externo. Este texto nos dá um grande esclarecimento sobre como devemos nos conduzir em busca desta necessidade íntima. A
    gora, depende muito mais de nosso próprio esforço, do que das condições, pessoas e situações do cotidiano! Paz a todos!
    NAMASTÊ.

  10. Que lindo puxão de orelha para as “pequenezas” da vida.. Adorei.. tudo lindamente poetizado.

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