Āsana, Pratique

Āsana em Rota de Colisão. Parte 2

Este artigo, dividido em duas partes, aborda o delicado tema das lesões nas práticas de Haṭha Yoga. Na imensa maioria dessas lesões, ha um erro de atitude ou um erro de compreensão da maneira em que o Yoga funciona.

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Colisão, colisão, colisão. Ao dizermos colisão, queremos apontar neste texto para o perigo real das lesões na prática de āsana do Haṭha Yoga.

Este artigo, dividido em duas partes, aborda o delicado tema das lesões nas práticas de Haṭha Yoga. Na imensa maioria dessas lesões, ha um erro de atitude ou um erro de compreensão da maneira em que o Yoga funciona.

Aqui pretendemos revisar esse assunto e convidar o amigo leitor para pensar no tema. Este autor já se lesionou praticando Haṭhayoga e há anos procura evitar que outros praticantes repitam os erros que ele cometeu.

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Leia a primeira parte deste texto
Āsana em Rota de Colisão. Parte 1
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Os ligamentos existem para limitar o movimento das articulações

Se você já torceu um tornozelo, por exemplo, há uma boa chance disso ter acontecido pelo estiramento ou “alongamento” forçado e desproporcional dos ligamentos que dão estabilidade a essa articulação.

Coloco a palavra “alongamento” assim, entre aspas, para deixar bem claro que ligamentos não são estruturas alongáveis: esses tecidos não são elásticos e não deveriam sofrer esse tipo de ação.

Se isso já aconteceu consigo, ainda deve lembrar o quanto seu tornozelo demorou a sarar, uma vez que, como os ligamentos não são vascularizados, o tempo de recuperação deles é bem maior do que o dos músculos.

Colisão

Só para lembrar, ligamentos são feitos de tecidos fibrosos densos de colágeno, que têm a função de limitar o movimento das articulações. Os ligamentos, diferentemente dos músculos, não se alongam.

Noutras palavras, quando você estica um ligamento, há uma grande chance dele não retornar ao seu comprimento original. Isso se traduz em fragilidade articular.

Se a função dos ligamentos é proteger as articulações limitando seus movimentos, alongar essas estruturas pode levar as articulações à instabilidade e, consequentemente, a lesões.

Pessoas flexíveis têm uma tendência maior a instabilidade articular e a se lesionar praticando āsanas. Portanto, precisam ser especialmente cuidadosas.

Excesso de mobilidade = instabilidade = lesão

Algumas populares séries de āsanas, como as que se usam para “abrir o quadril”, trabalham excessivamente a mobilidade e podem deteriorar seriamente essa articulação. Isso é especialmente válido para as mulheres, que naturalmente já tem os ligamentos do quadril mais móveis para facilitar o parto.

Faria muito mais sentido, como prática de āsana específica para mulheres, estabilizar e fortalecer o quadril, ao invés de aumentar a mobilidade e alongar desnecessariamente os músculos adjacentes, já que isso pode trazer instabilidade ligamentar.

Se a pessoa insistir em aumentar algo que já é amplo, há uma grande chance de as práticas acabarem em lesão, pois ligamentos excessivamente móveis podem desestabilizar a dinâmica da unidade sacro-ilíaca, da pelve a da região lombar.

Se nossa prática estiver focada unicamente em aumentar a qualquer custo a mobilidade das articulações, é uma questão de tempo para que elas percam a estabilidade e entremos em rota de colisão.

Já vimos muita gente se acidentar de maneira desnecessária pelo excesso de práticas para aumentar a abertura pélvica ou a mobilidade da coluna vertebral.

Ao nos lesionar, devemos repousar até a inflamação cessar

Por básica e fundamental que esta afirmação possa parecer, incrivelmente, há professores que a ignoram. Qualquer animal e qualquer pessoa mínimamente sensível sabe intuitivamente que, em situações de lesão, o melhor que pode ser feito é repousar.

Quando feridos, os animais buscam um lugar à sombra, perto da água, para se recuperarem. Os seres humanos também buscamos esse tipo de situação. Ou nossos médicos nos dão o sábio conselho de parar e descansar para que o corpo se recupere.

A solução, no caso de uma lesão articular, é simplesmente parar de repetir as ações que produziram a lesão e repousar e ainda reavaliar o que foi feito, para podermos mudar a perspectiva e evitar a repetição do erro.

Esse é um processo cognitivo que dispensa os órgãos de ação. Este é a razão pela qual dizemos acima, que praticar āsana não resolve quaisquer problemas afora da dimensões física e vital.

E, se feitos da maneira errada, podem criar situações indesejáveis até mesmo nessas dimensões.

Se você sente dores ao praticar, por exemplo nos joelhos, no quadril ou na lombar, pelo que mais ama nesta vida, por favor, não ignore essas dores.

Ignorar a dor física achando que ela teria origem em alguma obscura resistência ou negação psicológica, emocional ou “espiritual”, é correr um tremendo perigo.

Uma ressalva: em certas circunstâncias, recomenda-se começar com exercícios de fisioterapia ou recuperação antes do fim do ciclo da dor, de maneira que a pessoa evite perder massa muscular durante  o repouso, se e quando este for muito prolongado.

Masoquismo não é Yoga

Por trás de muitas das lesões que acontecem praticando āsanas subjaz o ubíquo mas falacioso adágio no pain, no gain: sem dor não há ganho. Ganho do que?

Fazer āsanas de maneira forçada ou exagerada nunca iluminou ninguém. O problema é que pessoas naturalmente flexíveis tendem, por conta dessa filosofia superficial, a forçar as articulações para além do limite da dor.

Isso acontece porque, como a pessoa flexível não sente nada quando alonga os músculos, acha que a prática não faz efeito e tende a levar as posturas ao extremo de forçar as articulações, onde se percebem muitas sensações diferentes.

Isso não apenas é prejudicial para os ligamentos mas igualmente para as cartilagens que protegem as articulações.

Neste tipo de situação temos uma interferência nociva do ego da pessoa que pratica, ou do ego do professor, o que é ainda pior.

Em ambos os casos, essa imposição do ego acaba por silenciar o que o corpo fala e o que o bom-senso diz, e fica aberto o caminho para a colisão.

Muitos professores de Yoga encorajam seus alunos a extrapolar os limites e a se superar em termos de performance física, sem compreender exatamente o grau de risco para a saúde do sistema músculo-esquelético que esse tipo de atitude traz para quem pratica.

Embora seja muito bom receber motivação para nos superar e vencer os obstáculos que possam aparecer no caminho, isso não pode acontecer em detrimento da nossa integridade física ou emocional.

Muito menos, esquecendo o objetivo fundamental do Yoga que mencionamos no início.

Assumindo responsabilidades

Na hora de escolher as posturas que podem ou devem entrar na nossa prática pessoal e compreender quais são as que devemos deixar de fora, precisamos, a priori, conhecer as necessidades do nosso próprio corpo, suas características, pontos fortes e fragilidades.

Isso implica fazer uma reavaliação crítica e aprofundade de alguns modelos de prática padronizados que partem da presunção de que todos os corpos humanos são iguais, ou que o que vale para uns, necessariamente valerá para todos os demais.

Assim, não adianta apenas seguir de maneira mecânica uma prática formatada e apenas sentir o corpo na prática.

Precisamos igualmente conhecer o corpo, saber quais são seus limites naturais, e cultivar o contentamento em relação a eles.

Um conhecimento básico sobre biomecânica e cinesiologia é de muita utilidade neste ponto.

Sem esses elementos, a nossa prática poderá ficar como uma casca de noz no mar, à deriva numa tormenta. Saber montar uma série equilibrada de posturas é o primeiro passo em direção à independência do yogin.

Como praticar?

Se você já tem muita massa muscular não precisa praticar posturas para aumentá-la. Pela mesma conta, tampouco deveria se preocupar em aumentar a mobilidade articular se já tiver a que precisa para fazer as ações no seu cotidiano.

Demasiada mobilidade é pior do que rigidez demais. Importa lembrar que, na prática de āsanas, o que interessa é o equilíbrio. E isso significa se afastar dos extremos.

E, para concluir o tema, é bom lembrarmos que, se quisermos alongar os músculos, leva 30 segundos para que os fusos musculares se adaptem e habituem a um comprimento maior.

Noutras palavras, ficar menos de meio minuto em cada āsana é inócuo em termos de alongamento. Ficar mais do que isso, desnecessário.

Assim, a recomendação é para praticarmos é pontuarmos a firmeza com a gentileza. Colocando sim toda a força e todo o esforço necessários, mas sempre desde a compaixão e o cuidado.

Quando sentirmos que os tecidos musculares se estendem ao longo dos ossos, isso é saudável e positivo desde que não levemos o corpo ao limite.

Porém, quando percebermos que as articulações começam a ficar desconfortáveis ou ainda que começa a surgir a dor, devemos parar imediatamente.

Ilusão e colisão

Não podemos nos enganar, nem nos deixar enganar pelos demais, por bem intencionados que estes sejam: ações físicas produzem resultados físicos.

As posturas devem ser praticadas à guisa de preparação e reflexão, como dizemos acima.

O esforço físico que se faz dentro da prática de āsana deve sempre ser pontuado pelo princípio áureo da não-violência, ahiṁsā. Cultivar essa atitude não significa ser condescendente ou se deixar levar pela preguiça.

Pensar que as dores sejam naturais ou necessárias, ou ainda que iremos aprender algo com elas, é um grave erro de visão. A dor não ensina absolutamente nada em termos filosóficos, éticos ou emocionais.

Ela é apenas um sinal natural de que estamos forçando o corpo para além dos seus limites.

A dor nos diz que, se insistirmos nas ações que a produzem, inevitavelmente lesionaremos o nosso corpo e pagaremos um preço desnecessário na ilusão de estarmos na busca da iluminação.

Assumir a dor física como algo natural não é uma atitude sábia nem feliz. Lembremos que não temos nenhuma necessidade de sofrer, nem dor física nem tristeza, nem medo, nem raiva, para realizar o supremo objetivo do Yoga, que é a liberdade, mokṣa.

Ou, como disse alguém, modificando sabiamente aquele enganoso adágio, no pain, more gain: sem dor, mais ganho. Aliás, mokṣa é justamente o contrário da dor.

É livrar-se, dentre outras coisas, da ideia de que devemos sentir dor e também do apego a essa ideia. Boas práticas para todos. Sem lesões. Sem dores. Sem sofrimento.

॥ हरिः ॐ ॥

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Āsana em Rota de Colisão. Parte 1
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Leia este controverso artigo de William Broad
no New York Times sobre lesões no Yoga

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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3 respostas para “Āsana em Rota de Colisão. Parte 2”

  1. Obrigada por sua generosidade. Gosto muito de ler seus artigos, pois são sempre muito esclarecedores.
    Namastê!

  2. Caro Pedro,

    estas eleições imprimiram uma certa atmosfera de guerra, onde tudo o de pior parece se manifestar. Estamos em rota de colisão?

    Nossos líderes não falam sobre esse lado da nossa moeda. E os nossos guias e inspiradores na prática e no caminho espiritual? Como continuar andando em meio a esse campo de batalha, onde há amigos e familiares nos dois lados?

    Qualquer dica é mais do que bem-vinda amigo?

    abraço, Germano

  3. Namastê!
    Excelentes artigos! Obrigada por compartilhar tanto conhecimento 🙂 Venho da prática de escalada em rocha, onde tive muitas lesoes e passei por longos e dolorosos períodos de recuperação, até que aprendi a respeitar meu corpo e a protegê-lo melhor.
    Recentemente iniciei a prática de Yoga e ao treinar invertidas (halasana, salamba sarvangasana), ou asanas em que preciso elevar o tórax e flexionar as pernas com a barriga para baixo (dhanurasana, salabhasana) sinto uma forte pressão e dor na cabeça ao sair da posição e tentar me sentar (durante a asana, não sinto dor).
    Às vezes a dor é tão grande que preciso ficar alguns minutos com a cabeça baixa e levantá-la aos poucos. Muitas vezes uma leve dor de cabeça e latejamento permanece por algumas horas depois da aula e só alivia quando me deito. Isso tem me preocupado, pois raramente senti dores de cabeça na vida, exceto quando peguei alguma gripe forte.
    Minha pergunta é: o que posso estar fazendo de errado para causar esta dor? Devo continuar treinando invertidas? Corro algum risco de dano neurológico?
    Abraços!

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