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Karma é liberdade

Aqui em ocidente pensamos que o karma seja uma espécie de fatalidade, algo ruim que acontece sem motivo aparente. Com freqüência dizemos 'Fulano tem um karma pesado' ou 'Sicrano pagou seu karma', sem entender ao certo o que é esse tal de karma. O conceito de karma no contexto do Yoga de Pátañjali não tem nada a ver com isso.

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Aqui em ocidente pensamos que o karma seja uma espécie de fatalidade, algo ruim que acontece sem motivo aparente. Com freqüência dizemos ‘Fulano tem um karma pesado’ ou ‘Sicrano pagou seu karma’, sem entender ao certo o que é esse tal de karma. O conceito de karma no contexto do Yoga de Pátañjali não tem nada a ver com isso.

O karma não é nem bom nem ruim. Isto pode parecer incompreensível se não for melhor explicado: pense que alguém é condenado a ficar numa cadeira de rodas, sem movimento algum do corpo, a não ser dois dedos de uma das mãos. Sem poder falar nem mexer-se, sem absolutamente nenhuma independência para fazer os mínimos movimentos do cotidiano, você poderia imaginar a vida desta pessoa como uma longa espera pela morte, uma espécie de vegetal consciente e desesperado.

Pois então, pense que essa pessoa existe mesmo, e que ela deu um jeito de receber o Doutorado em Cosmologia na Universidade de Cambridge, onde ocupa a cadeira de Newton como professor de Matemática! Essa pessoa é Stephen Hawking, autor do best seller Breve história do Tempo, considerado por muitos como o mais brilhante físico teórico desde Einstein. Tal vez, se ele não tivesse que ficar sentado na cadeira de rodas, não teria tido a oportunidade de explorar os limites da astrofísica e da natureza do tempo e do universo. Tal vez, Stephen Hawking sem cadeira de rodas fosse, ao invés de um premio Nobel de física, apenas um medíocre jogador de futebol. Então, ficar uma vida inteira num cadeira de rodas é ruim ou é bom? Depende da sua perspectiva… E o resto das coisas ‘ruins’ que acontecem com você, são ruins mesmo?

Vivekánanda, um mestre de Yoga contemporâneo, disse que o karma é ‘a eterna afirmação da liberdade humana… Nossos pensamentos, nossas palavras, nossos atos, são fios de uma rede que tecemos ao redor de nós mesmos.’ Ou seja, o homem é intrinsecamente livre e responsável pelas suas ações. O Satapatha Brahmana, VI:2.2,27, um dos mais profundos e antigos textos vêdicos, faz a mesma afirmação com outras palavras:

Todos os homens neste mundo nascem moldados por si mesmos.
Ou seja, criamos a nós mesmos a cada instante e podemos, através de um ato de vontade, nos transformar e transformar conseqüentemente nosso futuro.

O sábio Pátañjali descreveu o mecanismo da lei do karma no segundo capítulo do Yoga Sútra:

O reservatório dos karmas que se enraízam nas misérias existenciais, causa toda espécie de experiências, presentes e futuras. Enquanto a raiz da aflição estiver presente, ela produz nascimentos sucessivos, duração e experiência.
Nestes aforismos, 12 e 13, Pátañjali nos diz que nossas tendências latentes foram criadas pelas nossas ações e pensamentos passados, e que estas, por sua vez, definem nosso presente e nosso futuro. Ao mesmo tempo, as experiências de nascimento, morte e renascimento, assim como as prazerosas e dolorosas, continuarão ininterrompidamente enquanto o karma que as gerou permanecer ativo.

No sútra 14 o sábio afirma que essas experiências prazerosas ou dolorosas são o resultante do mérito e do demérito respectivamente:

O fruto [das ações] será alegria ou infelicidade, conforme a sua causa seja a virtude ou o vício.
Em seguida, ele diz:

Tudo provoca dor para o sábio. Mudanças, ansiedade, tendências e conflitos estão permeados pelos gunas e vrittis e sempre acabam em sofrimento.
Tudo é fonte de sofrimento para aquele que discrimina, pois até mesmo o desfrute do prazer é fonte de dor, já que produz apego aos objetos de prazer. E, no sútra 16, arremata:

A dor que ainda não surgiu pode evitar-se.
Existem três tipos de karma:

1) o karma que já foi criado e está acumulado, chamado prarabdha karma;

2) o karma que está ‘amadurecendo’, como uma semente germinando, ou seja, que já foi criado, mas ainda não se manifestou, chamado sañchita karma e

3) o karma que estamos criando neste momento presente, chamado kriyámana karma.

Estes três tipos de karma se explicam na tradição do Yoga com o exemplo do arqueiro: ele pega uma flecha da aljava, mira um pássaro e solta a flecha. Imediatamente se arrepende, mas já é tarde e não pode voltar atrás: o pássaro morre. Este é o prarabdha karma. As flechas na aljava do arqueiro são seu sañchita karma ou reservatório kârmico: ele pode escolher se irá tirar uma flecha da aljava ou não, e em que direção irá aponta-la. A flecha que ele segura no arco, pronta para ser disparada, é o kriyámana karma ou karma atual.

Com o sañchita e o kriyámana karma podemos exercer o livre arbítrio. Podemos, como diz Pátañjali, evitar a dor que ainda não apareceu. Em relação ao karma que já se colocou em movimento, prarabdha, embora seja inexorável, se podem mitigar seus efeitos através de práticas de mentalização.


Extraído do livro Yoga Prático.

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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