Prāṇāyāma, Pratique

Ser respirado

Por cinco anos pratiquei técnicas de Yoga consideradas avançadas sem o menor preparo. Sem saber de respiração

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Nunca vou esquecer do dia em que delicadamente uma professora, em uma aula que não era de Yoga, me disse para soltar o diafragma. Levei um susto. No auge do que seria, aparentemente, uma boa prática de Yoga, eu andava por aí com o diafragma aprisionado. Andava por aí com uma tensão crônica no chão pélvico e baixo ventre.

E a respiração, que eu achava ótima, estava longe de uma naturalidade esperada. Era totalmente controlada e artificial. Por cinco anos pratiquei técnicas de Yoga consideradas avançadas sem o menor preparo. Sem saber o que existia em mim. Sem saber de respiração. Sem saber da diferença de respiração e pranayama, a técnica para expansão da energia. Era apenas ação. Um agir cego de mim. Os resultados eram ótimos, mas não os adequados à uma transformação maior.

A partir desse dia, começei a repensar a prática. Aproveitei uma situação extremamente difícil na minha vida pessoal para fazer a experiência de “deixar aparecer”. Aos poucos foi se revelando uma pessoa cheia de medos. Cheia de controles. De respirações medidas e calculadas. De movimentos fortes, precisos e vazios de espontaneidade.

O gesto do corpo revelava sofrimento, curvatura, auto-acolhimento, respiração insuficiente e maxilares absurdamente tensos. Conscientemente eu não sentia nada que meu corpo revelava. O que se mostrava para fora era a cobertura bonita daquilo que desmanchava lá dentro.

Como será que consegui usar a prática de yoga para esconder-me ainda mais? Hoje percebo que faltava sensibilidade e mais do que concentração, intensão investigativa, curiosidade e interesse despreendido de resultados. Mais do que tudo isso, faltava a orientação para a aceitação.

Hoje penso que é necessário um bom tempo em trabalho de reconhecimento. Um bom tempo apresentando-se ao próprio corpo. Apresentando-se à própria mente. Sem pressa. Sem busca por resultados questionáveis, sem projeção do que deve ser feito.

Sem deveres. Seria saudável e serviria de solo fértil ao Yoga, passarmos calmamente por nós mesmos. Sim, antes de mais nada, aceitar-se. E assim poder relaxar de querer para simplesmente poder perceber. E então, quem sabe, talvez, experimentar um fazer tranquilo.

Sabe-se lá quando foi que resolvi sufocar minha respiração. Crianças respiram livremente. O corpo todo se move respirando. A pele respira. Criança pulsa inteira. Criança é respiração pura. Adultos tentam ser e esquecem de respirar. Adulto disfarça, tenta ser o que não é. E sendo essencialmente ele mesmo cada vez menos, vive de pouca respiração cada vez mais.

Em minha própria prisão pulmonar resolvi alargar meu espaço enjaulado. Às custas de força ganhei um pulmão grandão e uma super capacidade. Poderia então correr dentro de minha própria cela. Que incrível progresso.

Até o dia em que a professora simplesmente despertou-me de meu mundo encantado e eu caí na real. Vai saber o que eu fiz até agora. Só sei que alarguei três centímetros nas costas que não me impedem de manter minha respiração precária.

Respiração não é algo que se faz, mas algo que se é. Respirar é algo natural que desaprendemos e que seria fundamental relembrarmos antes de fazer pranayama. Este sim, algo que se faz. Mas o que geralmente acontece é fazermos pranayama sem saber respirar.

E que coisa, pranayama mal acontece sem o suporte de uma respiração natural. É a partir desta que se entende o pranayama. Ou então apenas exercitamos pulmões e uma eficiente troca gasosa. Ali, pelo fino tecido subjacente ao corpo, nada acontece.

A respiração solta, como a de uma criança, é capaz de revelar o sutil. A respiração para ser livre precisa de um corpo relaxado. Um corpo relaxado precisa de uma mente relaxada. Uma mente, para ser relaxada precisa de um “deixar ser”, ou um “deixar de ser”, e de um observador contemplativo. Não pode haver tensão de querer, ir ou fazer.

O relaxamento é estar gentilmente presente e apenas isso. E então a respiração acontece porque você sai do controle, porque deixa de exigir e querer querer querer. Respiração é muito mais ser respirado do que respirar.

E é a partir desse estado respirado que então pranayama é possível. Não como algo que se sobrepõe, mas como algo que se faz delicadamente com o que já se tem um pouco de intimidade e conforto. E assim esse papo de energia não fica só na teoria mas vem para experiência palpável. Você quase toca não o ar, mas o prana.

E finalmente entende os benditos bandhas, as contrações que servem para segurar e redirecionar o prana para o fim específico de um despertar espiritual. Não apenas para facilitar a elevação do corpo em ação anti-gravitacional em postura difícil. O saber respirar revela a natureza sobre a qual as técnicas de yoga sutilmente atuam.

A respiração livre é um enorme campo a ser estudado e experienciado para que seja eficiente a prática de Yoga. A respiração livre é o encontro do relaxamento, de um estado, não de um tônus específico. É o estado de despreendimento consciente que faz toda a diferença. Porque você vê e não se enrola em fácil encanto por aparentes “resultados”.

Eis que surge uma saudável barriguinha que vem e vai, vem e vai. Em protesto às barrigas secas e mortas a barriga que respira vem socorrer milhares de mulheres que andam por aí com barrigas aprisionadas. Vem socorrer yogues desavisados que já não conseguem soltar seus bandhas. E outros tantos que já não se soltam aos movimentos da vida e que desesperadamente buscam por estabilidade ilusória e eterna.

Enfim. É sempre bom quando alguém olha pra gente e vê o que a gente não vê. Melhor ainda é confiar no que o outro vê e refletir. Seria muito bom se nesse primeiro momento de reconhecimento de nós mesmos pudéssemos ter um outro como um terceiro olho.

Começaríamos abertos, e não isolados em nossos tapetes de Yoga. Começaríamos olhando a nós mesmos, o outro e ainda seríamos olhados e olharíamos para o olhar do outro sobre nós. Talvez fosse até um grande princípio mesmo, evitando logo de início a contramão do yoga que é o isolamento, terreno nada fértil para a evolução.

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4 respostas para “Ser respirado”

  1. Saudações!

    Percebo muita pertinência nas suas observações Manuela. Gostaria de salientar que, segundo o Professor Caio Miranda, um dos pioneiros na introdução da prática no Brasil, apenas após oito meses de “respiração profunda” é que o praticante estava apto a passar para a respiração completa em que permaneceria por mais oito meses até ser iniciado nas práticas de respiração ritmada. Caio Miranda privilegiava uma progressiva sensibilização pelo prana, até o ponto em que o corpo-mente estivesem sequiosos por expandir a respiração. Observo, enquanto praticante e instrutora, que o conhecimento da própria respiração é muitas vezes posto em segundo plano, em prol do domínio de técnicas que hoje, ao meu ver, costumam ser precocemente introduzidas. Assumir a respiração como um veículo de autoconhecimento é hoje um dos principais focos da minha prática. Foi deveras reconfortante encontrar em seu testemunho a resonância com o que estou vivenciando em minha sadhana.
    Com gratidão,
    Ines Petereit.

  2. Muito grato Manuela … mais um capítulo das armadilhas do Yoga. Vou melhor refletir sobre o assunto. Namaste.

  3. Nossa…que depoimento fantástico !! Foi extremamente importante para mim ter acesso à experiência dela nesse momento da minha vida, já que estou iniciando um curso de formação em Hatha, e confesso que tenho muitas dúvidas em tudo o que se refere à respiração…esse depoimento vai me ajudar a abrir os olhos (e o diafragma !) para buscar me aprimorar nesse processo de evolução que é o Yoga. Muito legal da parte dela compartilhar conosco as suas experiências…dessa forma ela nos ajuda a enriquecer à nossa também ! !
    Namastê !

  4. Maravilhoso!!! Em nossa relação com as técnicas do Yoga, muitas vezes escondemos de nós mesmos o que é o Yoga e como ele pode nos acompanhar num processo de transcendência. Ou seja, praticamos a técnica pela técnica.
    Esquecemos de, real e humildemente, nos dar a chance de aprender quem somos. Obrigada por teu relato, Manuela! Namastê.

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