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Sobre o papel do Yoga na sociedade contemporânea

Ao lermos os textos dos Vedas somos levados a crer que o estudo, a pratica e os objetivos do Yoga sempre foram preocupações de poucos indivíduos da sociedade

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Mogham sa jivati – ‘Ele vive em vão’

Ao lermos os textos dos Vedas somos levados a crer que o estudo, a pratica e os objetivos do Yoga sempre foram preocupações de poucos indivíduos da sociedade. Na Gita já encontramos este diagnostico presente na afirmação de Krishna de que dentre muitos milhares de homens, um ou outro (kascit), esforça-se por siddhis, perfeições. A palavra siddhi é utilizada para designar os objetivos, as realizações da vida, que deveriam, em verdade, tomar a maior parte de nosso tempo. Dizem os Vedas que todo homem pode ter como metas kama, artha, dharma e moksha – Prazeres, conforto, virtude e libertação do sofrimento. Isto significa que é valido buscar viver a vida de maneira plena, utilizando sua razão para viver bem neste mundo, para saber desfrutar dos prazeres com saúde, da alegria estética com imaginação, da sabedoria com consciência e deleite, e alcançar, por fim, a liberdade do samadhi, da iluminação.

No entanto, o ímpeto para buscar esta liberdade – moksha – e para transcender os condicionamentos que herdamos e criamos, a força necessária para romper com a alienação da vida cotidiana e se tornar, de fato, um criador, um homem livre, tudo isto é fruto de naturezas raras, de pessoas que foram capazes de se posicionar na luta pela verdade, mesmo que isto significasse o desprezo e ódio de seu próprio tempo.

Falta essencialmente, na maior parte das pessoas, a preocupação em se conhecer, em buscar sua identidade. O que falta, diriam os sábios védicos, é atma-tattva, conhecimento de si. Não falamos aqui da afirmação ou da constituição do sujeito de acordo com papéis familiares, ocupações sociais, ou mesmo determinações históricas. Há uma ignorância mais primitiva, mais direta, que coincide com nossa existência, sendo assim, natural. Uma ignorância metafísica, no sentido de que não conhecemos, nem desejamos conhecer o fundamento de nosso fenômeno. Algumas pessoas buscam isto. Estes devem ser chamados de yogis.

No Ocidente, de uma forma geral, estes seres que se acostumaram a viver no gelo das montanhas e que consideraram pertinente o questionamento sobre o sentido de vida, a significação de suas ações e percepções, foram perseguidos em toda parte, encontraram oposição e orelhas mortas aonde quer que fossem. Foram mortos pelos tiranos, como Sócrates e Sêneca, queimados pelos padres, como Giordano Bruno, e perseguidos e insultados como Espinosa. Na Índia um fenômeno distinto acontece. Aquele que abandona a vida mundana em busca da reflexão filosófica é bem visto, recebe até mesmo estímulos da sociedade. Os yogis sempre foram respeitados pelos demais membros do varna-ashram.

É importante, no entanto, compreender isto de maneira ampla, observando que um yogi não é necessariamente um brahmana – um intelectual, um artista, um monge. O príncipe Arjuna, um kshatriya, recebe de Krishna a ordem de agir em Yoga – tasmad yogih bhavati bharata – de tornar-se um yogi.

Este yogi aparece nas descrições de Krishna como o sujeito que não produz karma, cujos frutos do trabalho são livres, pois foram feitos sem a ação do falso ego (ahamkara). O yogi não está mais preso às determinações sociais, ele vê em todos os fenômenos e em todas as criaturas sempre a mesma coisa, o atman, o ser, o si – próprio – ele mesmo. O yogi age em sattva-guna. É, portanto, equânime, possui discernimento, é aquele que vê as coisas como elas são – yah pashyati sah pashyati.

Sempre é valido dizer, portanto, que o verdadeiro filosofar, a busca constante deste equilíbrio, e independência internas, da ataraxia estóica, pode ser encarado pelas autoridades como uma ameaça, o que aconteceu sempre no ocidente, pois exige liberdade e não floresce em ambientes de tiranias, dogmatismos, injustiças e alienação. Buscar a sabedoria, amar a verdade, significa afrontar a submissa docilidade das massas. Como afirma Heidegger, na Introdução a Metafísica:

‘O que a filosofia pode e deve ser é o seguinte: um pensar que rompe caminhos e abre as perspectivas do conhecimento que define as normas e hierarquias, do conhecimento no qual e, pelo qual, um povo se preenche historicamente e culturalmente, do conhecimento que favorece e produz todos os questionamentos e, portanto, que ameaça todos os valores.’

Na sociedade de consumo onde vivemos isto não é exceção. Chomsky fala de manipulação de consenso. Somos levados a acreditar em mentiras e a incorporar ideologias que pretendem possuir um valor de verdade, mas que na quase totalidade das vezes mascaram propagandas de alienação e manipulação. Precisamos de mentiras para sustentar nossas fraquezas, nossos vícios deliberadamente escolhidos.

Com a morte do deus cristão, anunciada por Nietzsche, pressentida por Kant e realizada por Schopenhauer, um novo panteão de divindades se apresentou à humanidade. O Dinheiro ocupou, despudoradamente, o local principal do altar, sendo seguido pelo Consumismo, pelo Individualismo, e por divindades ‘menores’, como o deus-carro, a ciência, a tecnologia e a propaganda. São nossos ídolos, nossos totens, nossas esculturas divinas – nossas murtis. O Yoga aparece no ocidente justamente num período de declínio do espírito. É normal, portanto, que seja mal-compreendido e ate mesmo deturpado. Exemplos disto abundam em todo o mundo.

Existem, no entanto, categorias de investigação que se utilizam de propósitos ambivalentes, mais completos, que utilizam o conhecimento racional do ocidente, mas procuram, ao mesmo tempo, estudar e se conectar com as fontes do Yoga. Com a palavra fontes queremos propor o contato com o berço do Yoga, o ventre de onde surge esta cultura tão sublime. Fontes são o sânscrito, os Vedas, Upanishads, sutras, puranas e demais smrtis; são os mantras e bhajans que limpam e acalmam nossa mente; são os professores, gurus, que estão presentes nos dias atuais, preservando, de alguma forma, os valores e o conhecimento do Yoga.

Esta metodologia pratica surge, portanto, da aplicação de um estudo teórico dedicado aos exemplos da vida real, da vida ela mesma, com a qual nos deparamos a todo o momento. O que precisamos não é apenas o conhecimento, mas a sua utilização quando sua presença for necessitada.

No Mahabharata temos Karna, o filho de Surya, deus do Sol, personagem trágico, que ao lutar contra Arjuna na batalha de Kurukshetra, se esquece dos mantras letais, aprendidos depois de muitas austeridades e disciplinas, apenas com os quais poderia acabar com a vida do poderoso filho de Indra, sendo assim derrotado devido a incapacidade de aplicação de um conhecimento.

Assim, toda pessoa consciente e sã, convicta que deve participar do reajuste do equilíbrio planetário, deve assumir perante si a responsabilidade por três tarefas básicas, que desejo ilustrar trazendo à memória as três metamorfoses do espírito, propostas pelo Zaratustra de Nietzsche:

Três metamorfoses, nomeio-vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e leão, por fim, criança.’

Afirma o filosofo que o espírito de suportação, de alienação, de domestificação, de conformação e de resignação, é o espírito do camelo. O leão já é o espírito de revolta, de pujança, de ira, de superação, de insatisfação, de fome, de desejo, o espírito capaz de dizer um não, sempre que assim deseja. Finalmente, a criança é um novo começo, esquecimento, pureza, criatividade, uma roda que gira por si mesma, um sagrado dizer sim. Nossas três tarefas, portanto, seriam as seguintes:

1. Tomada de consciência de nossa posição atual; Observar as cargas que nos, camelos treinados, carregamos em nossos ombros.

2. Refutação do mal, abandonar aquilo que oprime, condiciona e limita o espírito; Rugir contra a alienação.

3. Exercer a criatividade, o ato livre, inaugural. Tornar-se um ser ativo e criador.

Os yogis devem assumir uma postura corajosa. Devem confrontar a ilusão. Devem possuir em si o leão capaz de lutar contra a anestesia cerebral da sociedade de consumo. Quais são os asuras atuais, os demônios, que buscam a destruição do mundo através de atividades hediondas, ugra karma, como diz Krishna na Gita?

Que bilhões de animais sejam torturados e mortos para a satisfação de nossas línguas; que nossas cidades sejam construídas para o consumo, para os carros e o livre ir-e-vir das mercadorias; que nossa economia seja baseada na exclusão, nas guerras, na depredação da natureza; tudo isto é ugra-karma – trabalhos horríveis, ações de destruição da vida.

As divindades nos Vedas são as personificações das virtudes que confrontam os vícios, encarnados na figura dos muitos demônios, asuras, que se ocupam constantemente nestas ações de destruição. Narasimhadeva luta contra Hiranyakashipu. Shiva destrói as três cidades demoníacas – tripura. Krishna mata Kamsa, Putana, Vrtrasura e muitos outros. A exortação da Bhagavad-gita à guerra é uma lembrança que deve ser constante:

Mam anusmara yuddhya ca – lembre-se de Mim e lute!

Guerra contra maya, contra a ilusão. Contra tudo aquilo que enfraquece e distorce o espírito.

Como uma aplicação pratica de reflexões filosóficas propomos aqui alguns tipos de ações – karmas – que devem ser encarados como exercícios de transformação dos hábitos perniciosos da era de Kali. O slogan de Swami Prabhupada se aplica em todos os casos: Vida Simples, Pensamento Elevado!

1. A Bicicleta como meio de transporte

Não polua, gaste praticamente nada, fique em contato com o corpo, conheça melhor sua cidade. Desacelere sua mente.

2. O vegetarianismo como ação política

Deixe de matar e impor sofrimentos terríveis a outros seres sensientes. Pare de contribuir com o desmatamento e a poluição das águas causadas pela industria pecuária. Divulgue a cultura da paz, de ahimsa.

3. O boicote ao consumo

Natal sem compras. Ficar livre da ilusão da publicidade. Comprar o que é realmente preciso.

4. Redução do lixo

Use sacolas de pano em suas compras. Reduza os sacos plásticos. Recicle, dê preferência a embalagens reutilizáveis.

5. Plantio doméstico de vegetais e árvores

Produza mudas de árvores; germine sementes em casa a partir das frutas que você come. Faça uma horta doméstica e/ou uma horta comunitária. Plante, se isto for possível, árvores e vegetais nas ruas e terrenos da cidade.

6. O elogio do ócio, das artes livres e a crítica ao trabalho como fim em si mesmo

Procure formas alternativas de ocupar o seu tempo. Desfrute de momentos diários de contemplação.

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Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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6 respostas para “Sobre o papel do Yoga na sociedade contemporânea”

  1. O texto é profundo e apresenta uma sensibilidade marcante e é extremamente real a sociedade em que vivemos, infelizmente. Vejo poucos preocupados realmente em consumir somente o necessário e por em prática a ahinsa diante dos seres vivos.Cada um deve buscar fazer a sua parte para melhor sem desistir.

  2. Simplesmente maravilhoso!!
    Quero me tornar professora de Yoga e esse texto consolidou esse objetivo na minha vida. Cada dia que passa percebo q posso me livrar das correntes do condicionamento mental e ser livre, assim como um pássaro que voa no céu.. Muito obrigada

  3. Olá Goura, tudo em paz?
    Estou encantado com o seu texo. Você colocou de maneira brilhante a postura que devemos assumir no nosso caminho espiritual, mostrando que o Yoga é, na verdade,
    um caminho não só de libertação individual, mas seguramente também um caminho de libertação social, de reflexão e posicionamente político. Fico realmente feliz em ler tuas palavras!
    Muito grato!
    Muita paz para ti!

  4. Hari Om Goura! Muito intenso e sábio seu texto. Só gostaria de dizer que maayaa é Ishvara e não deve ser combatida, mas compreendida. A busca pelo conhecimento do Ser e entendimento do jagat é o caminho do yogi. Procuro sempre deixar claro que, apesar de todas as ações não apropriadas que constantemente vemos nesta era, está tudo na mais perfeita ordem. Isto não justifica ficarmos estáticos, mas sim agir, como ensina Krishna, e como você bem coloca na sua explanação. O não-apropriado é necessário para despertarmos para o apropriado, caminhando-se, assim, pelo dharma. No fundo, a ordem final e basilar é absoluta….sempre!
    All the best my friend!

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