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A poesia e os Shastras

Os Vedas e as Upanishads pertencem a um estado de espírito muito diverso do das obras científicas. A tradição literária hindu, a princípio oral, e só tardiamente transcrita, é, sobretudo, uma criação dos sábios denominados rshis: videntes e poetas

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Os Vedas e as Upanishads pertencem a um estado de espírito muito diverso do das obras científicas. A tradição literária hindu, a princípio oral, e só tardiamente transcrita, é, sobretudo, uma criação dos sábios denominados rshis: videntes e poetas.

Estes ‘bardos’ filósofos foram gênios da humanidade que criaram os alicerces conceituais de toda a filosofia hindu e, segundo alguns, influenciaram toda a filosofia oriental.

Ao longo de milênios, em épocas tão remotas quanto o terceiro e, até mesmo, o quarto milênio antes de Cristo, os rshis desenvolveram uma base sólida de conhecimento que precisa ser estudada (mesmo que parcialmente) por todos os praticantes sérios de Yoga.

Porém a grande dificuldade no entendimento da obra monumental destes rshis é que o conhecimento que eles nos legaram está num formato abstruso para a mentalidade ocidental. É, ao mesmo tempo, lógica, translógica e poesia.

Isso significa que é preciso abrir as asas do nosso espírito aprisionado pela razão para entender o profundo significado dos Shastras hindus. É preciso cometer a pior heresia que há (pelo menos para a intelectualidade moderna): deixar o coração arrebatar-se e transbordar sobre os pensamentos.

Pegue-se, por exemplo, a seguinte passagem do Hino da Criação do Rg-Veda:

Não havia então não-existência nem existência;
não havia o reino do ar nem o firmamento por trás dele.
O que protegia e onde? E o que dava abrigo?
Estava ali a água, a desmedida profundidade da água?

A seguir, surgiu o Desejo no começo, o Desejo,
a semente e o germe primordial do Espírito.
Os sábios que buscavam com o pensamento de seus corações
descobriram o parentesco do existente no não-existente.

O hino da criação, como o próprio nome sugere, é um texto com mais de quatro mil anos que aborda o princípio dos tempos. Deixando de lado qualquer interpretação, vamos tecer algumas considerações, sobretudo, sobre o formato no qual ele foi escrito.

Nossa primeira e mais óbvia observação é que ele é todo escrito em linguagem metafórica. A ‘água’, por exemplo, pode até significar este elemento, mas, com certeza, também há um forte conteúdo de simbolismo. ‘… A desmedida profundidade da água’ nos remete para o conceito de vastidão, de infinitude.

Outra observação interessante é que o hino é todo em perguntas (e, muitas delas, sem resposta). Os versos finais são, sobretudo, maravilhosamente enigmáticos:

Ele, a primeira origem da criação,
formou tudo ou não formou.
Na verdade, Ele, cujo olho vela
pelo mundo nos altos céus,
sabe, ou talvez não saiba…

Isto em si já quer dizer alguma coisa para quem entende o mundo em linguagem poética. A repetição da pergunta e da incerteza (‘ou talvez não saiba’) nos transmite uma categoria de informação mais sutil do que a lógica.

Ou seja, ao mesmo tempo em que há uma ‘construção’ de uma linha de raciocínio, há paralelamente um ‘sentimento de mundo‘, uma ‘atitude interior‘ sendo ensinada no hino da criação.

As perguntas e o tom de incerteza, por exemplo, nos revelam como deve ser o espírito daquele que busca pela suprema verdade: um espírito de maravilhamento, desapegado de conclusões peremptórias. Ou, como diria um budista ‘um coração de iniciante’.

Isto porque a incerteza conduz à humildade, enquanto a certeza, à arrogância.

Com estes pensamentos em mente, podemos agora enumerar alguns motivos pelos quais a linguagem mais adequada para falar sobre o absoluto é a linguagem lógico-poética.

1. A poesia apreende globalmente a realidade.

O assunto sobre o qual os Vedas e Upanishads se debruçam são, muitas das vezes, o Todo, a realidade última. Ora, a lógica é uma ferramenta excelente para lidar com um universo múltiplo, com o desdobramento de causas, porém o seu limite de ação termina onde o Um começa.

Lembremos que os rshis são comumente denominados de videntes-poetas. Videntes sim, pois eles enxergam a realidade e não apenas conjecturam sobre ela. Poetas sim, pois somente a poesia é capaz de expressar esta apreensão global fruto de uma visão, sem dilacerar o todo.

Ora, a linguagem poética é imagética. As palavras de um poema pertencem a um reino subterrâneo em que os significados deixam de ser lineares para formar uma trama paisagística. As palavras evocam.

Se a realidade é uma rede de acontecimentos (ou tantra, em sânscrito), que forma um todo integrado, nada melhor do que utilizar uma linguagem compatível para compreendê-la.

Assim, somente a poesia, ao contrário da lógica linear, possui uma amplitude de significados suficientemente larga para abarcar o trama do todo.

2. O todo não pode ser explicado, só metaforizado.

Intimamente relacionado com o anterior, temos o fato de que a realidade última não pode ser explicada: ela é sua própria explicação.

Ou seja, há um ponto da compreensão do universo além do qual a razão não pode ir (o ponto que inclui a própria razão).

A melhor explicação neste momento seria o mais absoluto silêncio. Mas, como a humanidade é inevitavelmente tagarela, surge o recurso da metáfora.

A metáfora apenas aponta para essa compreensão sem pretensões de oferecer um raciocínio pronto e acabado. Assim, quando o assunto é o transcendente, o recurso poético se torna naturalmente o mais apropriado.

Nietzche foi um dos poucos filósofos ocidentais que realmente compreenderam isto: no limiar da razão só resta uma coisa a fazer: dançar.

3) A compreensão não envolve apenas o intelecto.

Evoluímos de seres unicelulares através dos milênios, tornando-nos organismos tão complexos que os maiores cientistas do mundo moderno são ainda incapazes de compreender a mecânica completa do corpo humano.

Esta é a prova cabal de que há toda uma categoria de aprendizado que não envolve apenas o intelecto. Se evoluímos, foi porque nossas células foram ‘aprendendo’.

Para o Yoga, nosso corpo sabe, nosso coração sabe e, talvez, até mesmo a nossa energia saiba. Porém o mais interessante da filosofia hindu é que a compreensão da realidade última envolve o conhecimento mais corporal e cardíaco do que o intelectual.

Aliás, mais do que isto, o intelecto é, por vezes, visto como um empecilho à realização plena. Isto porque ele dá nomes, raciocina através de opostos criando a ilusão da multiplicidade (onde, na realidade, só há o Um).

Como diz Fernando Pessoa:

Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência

Assim grande parte da psicotecnologia hindu gira em torno de ferramentas que amplificam a consciência corporal e emocional.

E o poema é a fórmula perfeita que agrada tanto ao intelecto quanto ao restante do ser. Uma forma de expressão capaz de integrar a razão ao corpo e à emoção.

4) O inconsciente é mítico e a linguagem do mito é poética.

Para entender este último ponto, vamos com calma. Procuremos dividir nossa argumentação em dois:

a) o inconsciente é mítico

Em primeiro lugar, é preciso compreender que os astras mais antigos são tratados ao mesmo tempo filosóficos, psicológicos e mitológicos.

As escrituras hindus arcaicas pertencem a uma era em que estas três disciplinas eram indissociáveis. Os sábios que se debruçavam sobre a compreensão do universo eram íntimos da alma humana e de seus mais profundos conteúdos arquetípicos e mitológicos.

Ao contrário do que se possa imaginar, esta é uma grande vantagem dos textos primitivos da humanidade. Isto porque a busca pela compreensão do Todo deve ser feita com o nosso corpo e a nossa alma: deve ser feita pelo organismo total. Consciente e inconsciente, razão e emoção precisam vibrar em uníssono.

Ora, para os sábios hindus, o substrato da realidade externa e da realidade interna é exatamente o mesmo. Quando alcançamos nossa natureza mais profunda entramos também num estado de comunhão com o mundo a nossa volta.

Assim as técnicas de exploração orientais são escavações arqueológicas em direção ao interior da psique.

É aqui que Jung nos deu uma inestimável contribuição. Estas camadas mais profundas da psique são estruturadas arquetipicamente, ou seja, mitologicamente.

b) a linguagem do mito é poética

Dizer que a fala dos mitos, símbolos e arquétipos é a poesia significa também dizer que a linguagem do inconsciente é poética. Dá no mesmo.

O inconsciente é uma dimensão na qual os objetos mentais perdem os contornos: um charuto é um charuto, mas também um símbolo fálico (e, num piscar de olhos, pode até se transformar num guarda-chuva).

Vemos isto claramente todos os dias nos nossos sonhos.

Ora, a linguagem poética é ambígua e de significações multinivelares. Multinivelar, pois, numa determinada profundidade, por exemplo, a palavra ‘água’ (voltando ao nosso exemplo do Rg-Veda) quer dizer uma coisa, digamos, um dos cinco elementos. Em nível diferente, talvez mais profundo, a ‘água’ é o oceano, um todo uniforme, fluído e monumental.

Além disso, a poesia abraça amorosamente os aparentes paradoxos: a ambigüidade. Ora, qualquer psicólogo sabe que o terreno do inconsciente é fértil de contradições. Ali, o amor pode ser ódio e o masculino, feminino.

Em função disto tudo, é possível entender perfeitamente a afirmação de Joseph Campbell, um dos mais geniais estudiosos da mitologia comparada:

‘Eu penso na mitologia como a pátria das Musas, as inspiradoras da arte, as inspiradoras da poesia. Encarar a vida como um poema, e a você mesmo como o participante de um poema é o que o mito faz por você.

… Quer dizer, um vocabulário não de palavras, mas de atos e aventuras, que conota algo transcendente à ação localizada, de modo que você se sinta sempre em acordo com o ser universal.’

Assim o mito, enquanto expressão do inconsciente, e a filosofia, expressão da razão, devem formar uma unidade pra aqueles que buscam o saber universal.

Lembrando que a poesia é a linguagem do mito e a lógica, a da filosofia.

Conclusões

A poesia tem contornos imprecisos e assim, ao invés de dar uma resposta definitiva, ela nos abre para a verdade.

O Hino da Criação citado anteriormente é em formato poético e em perguntas, pois sua intenção é, parece-me, provocar essa abertura profunda em nosso eu mais íntimo.

Este movimento de se abrir é sempre, na poesia, em direção ao mundo. A poesia é uma janela. Ela rompe os grilhões dos nomes. Ela nos abre para nos conduzir a um olhar amoroso para a vida.

Aliás, ela é o próprio caos que fecunda a vida.

Cada verso na poesia dos grandes poetas (orientais ou não) possui múltiplos significados. Há o significado literal, mas há também um mais profundo, apenas evocado.

Assim a leitura do texto poético deve ser feita num estado de profundo relaxamento mental. O espírito da poesia é anárquico, ele é o espírito da livre-associação.

Há uma trama de imagens, um rio subterrâneo de verdades sígnicas que percorre um poema, numa dimensão mais sutil que a das palavras.

Só se pode ler realmente poesia deixando o olhar descontraído, as idéias embaralharem-se promiscuamente. Deixando-as por si só descobrirem o caminho da significação oculta. A mente não pode conduzir o processo.

Vejamos a seguinte poesia de Mário Quintana.

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam

não se sabe de onde e pousam

no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam vôo

como de um alçapão.

Eles não têm pouso

nem porto

alimentam-se um instante em cada par de mãos

e partem.

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

no maravilhoso espanto de saberes

que o alimento deles já estava em ti…

A poesia é a música. Como diz Joseph Campbell, ela é formada por um vocabulário que não é apenas palavra: é ritmo, é ressonância.

O verso poético imanta magicamente o mais profundo da nossa alma. Cria uma ressonância que faz acender (e ascender) as energias ígneas adormecidas e luminosas em nosso inconsciente.

‘E olhas, então, essas tuas mãos vazias, no maravilhoso espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti…’

O discurso científico traz um conhecimento novo e o derrama sobre nossa mente ignorante.

A obra poética apenas nos faz relembrar algo que já sabemos no fundo e tínhamos esquecido. Às vezes lembra-nos um conhecimento, às vezes lembra-nos um sentimento de mundo.

Essa é a função das Upanishads e Vedas, por exemplo: relembrar-nos que já somos livres, que somos o Todo, que somos Deus. Os astras hindus talvez não queiram acrescentar um conhecimento novo, mas querem sim reviver, acender a chama dos conhecimentos arquetípicos adormecidos na maravilhosa biblioteca infinita do inconsciente coletivo.

Como diz o Amrita-Bindu-Upanishad, ‘o conhecimento está oculto em todos os seres como a manteiga no leite’. A mesma idéia ressoa, de forma absurdamente semelhante, milhares de anos depois no poeta mexicano Octávio Paz: ‘Cada leitor procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si’.

Agora sim, após essa longa divagação (peço desculpas), podemos realmente entender aquele trecho do Rg-Veda que havíamos deixado de lado: ‘os sábios que buscavam com o pensamento de seus corações descobriram o parentesco do existente no não-existente’.

Isso diz tudo.

É preciso buscar com o pensamento do coração.

E ler mais poesia.

‘O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.’

(Mário Quintana)

‘A metáfora é a máscara de Deus através da qual a eternidade pode ser vivenciada.’

(Joseph Campbell)

Referências bibliográficas

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Editora Palas Athena. 22a edição, 2004.

FEUERSTEIN, Georg. A Tradição do Yoga. Editora Pensamento Cultrix.

JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Editora Nova Fronteira.

NIETZCHE, Friederich. Para Além do Bem e do Mal. Editora Martin Claret.

PESSOA, Fernando. Poemas Inconjuntos.

QUINTANA, Mário. Do Caderno H. Editora Globo ? Porto Alegre, 1973.

QUINTANA, Mário. Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM,1980.

TINOCO, Carlos Alberto. As Upanishads do Yoga.

VIEIRA, Alexandre. Tradução do Rg-Veda. www.yoga.pro.br

Felipe é professor e dirige o atman-centro cultural de yoga, em Curitiba. Tel.: (41) 3023-7905.

Este texto foi publicado na edição de verão de 2008 dos Cadernos de Yoga: www.cadernosdeyoga.com.br.

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4 respostas para “A poesia e os Shastras”

  1. Quem faz um poema abre uma janela.
    Respira , tu que estás numa cela
    abafada,
    esse ar que entra por ela.
    Por isso é que os poemas tem ritmo
    -para que possas, enfim, profundamente respirar.

    Quem faz um poema salva um afogado.
    (Mário Quintana)

    Bravo! Alento da alma.
    Conhecimento que abarca a complexidade humana.
    Muito bom!
    Obrigada.
    Namaste

  2. BELO E INSPIRADOR!
    NUTRIR A ALMA , FAZENDO DE CADA PRÁTICA UMA POESÍA QUE ADOÇE O CORAÇÃO!
    muito obrigado, Felipe!

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