Ética, Pratique

Ahimsa é aquilo que realmente somos

Se ahimsa é um sinônimo de não-violência, é então uma premissa para a paz existir. Mas ahimsa deve ser uma não-violência ativa, como pregava Gandhi. Nessa concepção ahimsa seria muito mais uma atitude benigna para com todos os seres, do que simplesmente não ferir, não matar ou não fazer o mal, pois não basta apenas evitá-lo ou então ser compassivo, porém sendo pouco participativo

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Se ahimsa é um sinônimo de não-violência, é então uma premissa para a paz existir. Mas ahimsa deve ser uma não-violência ativa, como pregava Gandhi.

Nessa concepção ahimsa seria muito mais uma atitude benigna para com todos os seres, do que simplesmente não ferir, não matar ou não fazer o mal, pois não basta apenas evitá-lo ou então ser compassivo, porém sendo pouco participativo.

O primeiro passo consiste em perceber todos os nuances de agressividade que existem dentro de nós, pois essa está incorporada em várias manifestações de nossa vida, em várias ações. Como, por exemplo, no nosso excesso de senso crítico, que por vezes ultrapassa o limite da razão e nos faz ‘descarregar’ alguma ‘carga’ de sentimentos ruins – que estão encobertos ou que ainda nutrimos (prasupta e udaranam kleshas) – em pessoas ou nas coisas.

Essa agressividade manifesta-se, igualmente, em nossos pensamentos, em ‘atitudes mentais’ como a que temos ao nos comprazer em ver uma pessoa ‘ruim’ ser punida , quando alguma contravenção é descoberta.

Quem não sente uma espécie de alívio e satisfação mórbida ao ver um ladrão que estava correndo se ‘esborrachar’ no chão e ser pego por um policial? Esse sentimento muitas vezes ultrapassa o simples alívio de ver mais um marginal preso e saber que estamos, portanto, um pouco mais seguros.

Devemos ficar contentes ao perceber a justiça sendo realizada, o dharma sendo reestabelecido e as coisas entrando em sua ordem natural, como deveriam ser. Porém, enquanto as coisas não são ainda da forma que teoricamente deveriam ser, é adequado que se evite alimentar animosidade em relação àqueles que têm atitudes reprováveis – mesmo porque ainda não estamos livres de errar – no entanto devemos repudiar as ações errôneas, descobri-las quando temos a oportunidade e, se possível, trazê-las à luz da justiça, para evitar sua continuidade.

É importante lembrarmos que os primeiros erros que devemos evidenciar, tornando ‘visíveis’, são os nossos próprios, trazendo-os à luz da razão (do buddhi), para aprendermos a lidar melhor com os desejos e propensões (vasanas) que nos levam a cometê-los.

Também não devemos repetir as atitudes equivocadas de outros, especialmente aquelas que nosso senso moral recrimina. Se um líder dá um mau exemplo, ensinando-lhe de alguma forma a agir mal, ou se lhe ordena isso, a melhor solução é o afastamento dessa pessoa, ou a desobediência.

Quando vemos alguém numa situação em que a justiça está sendo feita, em que algo está sendo reparado, em que a pessoa está passando pelos resultados de ações não meritórias (papa-karma), devemos tentar ativar o sentimento de compaixão (karuna), lembrando que poderíamos ser nós mesmos naquela situação e que podemos já ter passado por situação semelhante no passado(outras vidas), ou poderemos passar no futuro, pois ninguém está livre de quedas.

Hoje não passamos fome e nem dificuldades. Mas como reagiremos se um dia um filho nosso estiver, realmente, morrendo de fome e todas as nossas tentativas honestas de obter alimento falharem ? Será que estaremos realmente isentos de agir de forma ilícita ou até mesmo roubar alimentos para não deixar um filho perecer?

Essa compreensão da situação alheia, na qual nos projetamos numa situação hipotética, colocando-nos no lugar dos outros, na tentativa de ‘sentir’ o que eles sentem, é o melhor caminho para que comecemos a parar com as manifestações de agressividade. A melhor reflexão para essas situações sempre deve ser: ‘E se fosse comigo?’ Pois quando é com a gente, nosso desejo é que as penas, as provas, os sofrimentos e as perdas sempre sejam reduzidas e atenuadas, nunca queremos sofrer aquilo que geralmente achamos que ‘os outros merecem sofrer’.

Essa atitude compassiva modifica, gradualmente, o teor emocional com que nos envolvemos com as questões. Primeiramente deixamos de querer fazer ‘justiça’ com as próprias mãos, depois paramos de nos sentir contentes com as punições sobre as faltas alheias. Por fim começamos a pensar numa forma de ajudar, de aliviar a carga daqueles que sofrem, mesmo que isso aconteça por motivos justos (afinal alguém sofre injustamente? Se isso acontecer, então não podemos mais confiar em dharma e karma).

Na incapacidade de ajudar de alguma forma, a pessoa que passa por essas dificuldades, se não podemos auxiliá-la numa reestruturação de seus atos, se não temos a condição de orar pelo bem futuro dessa pessoa, por sua regeneração ou recuperação, se não temos a capacidade de nem mesmo mentalizar algo positivo para ela, que pelo menos, então, não acrescentemos mais ‘peso’ a situação achando bom a pessoa passar por dificuldades.

Devemos crer que a ignorância, que é o motivo que faz a pessoa contrariar as leis do cosmo, já é um sofrimento por qual ela passa e as vezes nem percebe. Vale lembrar também que algo que parece sofrimento ou pena neste momento, é, na verdade, uma reparação, uma oportunidade de aprendizado e de reajuste.

Lembremos que os vighnas e kleshas, os obstáculos e aflições, não são uma pesada punição realizada pela ‘mão divina’, como as vezes uma tacanha concepção moral imbuída de culpa católica-judaica faz crer. Essas dificuldades são vipaka, resultados naturais, culminações ou ‘frutificações’ de ações passadas, e servem como preciosos meios (mecanismos karmicos), para restabelecer a ordem das coisas, o Dharma. Muitas vezes – quando estamos vivendo uma situação de impedimento – elas acabam servindo também para restringir temporariamente nosso livre-arbítrio, evitando que erremos mais e nos dando a oportunidade da reflexão, esclarecimento e mudança.

Somos nós mesmos que nos colocamos nessa situação, as leis naturais apenas providenciam os elementos adequados para o desenrolar e o desfecho delas . Aquilo que compreendemos em primeira instância como algo negativo, é a oportunidade de uma reestruturação, como as doenças por exemplo.

Esses ‘impedimentos’ são formas de termos um ‘tempo’ para acordar e realizar uma reforma íntima, uma metanóia.

A dor é um alarme para a consciência, um aviso de que algo está errado, funcionando como uma cerca elétrica, que nos dá um pequeno choque para avisar que estamos no caminho errado, ultrapassando limites, fazendo algo que não devemos e avançando em território inadequado. Francisco de Assis, um homem que incorporou ahimsa nas mínimas atitudes, referia-se a ela como ‘irmã’ dor.

O marginal da pior espécie, pode estar tendo sua oportunidade de regeneração na dor e na dificuldade, na restrição de sua liberdade. Podemos optar se vamos torcer para ele simplesmente sofrer por sofrer, para ‘pagar’ seus ‘pecados’, como muitos gostam de conceituar, ou se vamos, ao menos, desejar – mesmo que só mentalmente, sem ajudar diretamente – que ele aproveite da melhor forma seu momento de reajuste concebendo-o como oportunidade de reflexão e mudança.

Ahimsa pratisthayam sannidhau vaira tyagah y.s II.35 – Quando ahimsa é fundamentada, em sua presença cessam as hostilidades. Existem alguns estágios, para que ahimsa comece a ser estabelecida de forma duradoura e definitiva em nossas vidas. Se não há a possibilidade de fazermos o bem desinteressadamente para outra pessoa, de praticar Karma Yoga de alguma maneira, ahimsa refere-se então à não fazer o mal. Porém, se há alguma possibilidade de começarmos a fazer o bem, mesmo que inicialmente apenas em pensamento, então já há um progresso.

Esse é o início de um desenvolvimento que pode futuramente nos levar a uma vivência maior de ahimsa, tal qual em um conceito que está em várias religiões, doutrinas e filosofias : o amor incondicional.

Ahimsa, num grau mais aprimorado, estaria mais próximo do conceito de ren do confucionismo, que quer dizer benevolência universal e que tem como axioma principal a famosa frase: ‘não faça, aos outros o que não gostaria que lhe fizessem, faça-lhes apenas o que quer para si mesmo’.

No cristianismo primitivo, ainda não corrompido pelas influências manipuladoras da igreja católica, existia o conceito de agape, palavra grega que quer dizer literalmente banquete e era utilizada num sentido de congregação ou reunião, uma espécie de ‘banquete‘ onde todos se reuniam para comungar fraternalmente. Agape seria uma comunhão entre os seres.

Não deveríamos estar todos participando do banquete da vida? Se estivéssemos vivenciando e estabelecidos em ahimsa, esse banquete seria planetário, e incluiria todos os seres, inclusive aqueles que são sacrificados para o nosso repasto, que passariam então a participantes também.

Jesus falava desse mesmo agape como um amor incondicional, que não coloca condições para ser. Agape é o amor que apenas é. Esse sentimento existe pelo outro, independentemente se a pessoa é boa ou má, agradável ou não, amiga ou adversária (o que acaba deixando de ser). Ele independe de qualquer pré-requisito.

Parece impossível, não é?

Se a realidade é que todos constituímos uma mesma unidade, o Brahma, então por que não podemos sentir isso um dia? Esse sentimento de irmandade, fraternidade e unidade entre todos os seres?

Fazemos parte da mesma essência e somos constituídos da mesma matéria, que é manifestada em elementos variados e combinada em proporções diferentes, mas na verdade somos todos ‘farinha do mesmo saco’.

Parecemos tão diferentes uns dos outros, e superficialmente’somos’, só que na verdade não somos. Por mais paradoxal que possa parecer essa é a verdade. Diferentes em aparência (maya), somos todos iguais em essência (atma).

O que dificulta então o caminho para a fraternidade absoluta entre os homens ?

O ahankara, responsável pela nossa percepção individual, ou quer dizer, por nossa formação psíquica particularizada – nossa personalidade – encobre com sua ação, a essência do ser. Essa essência, é satchidananda, e se estabelece num estado perene de perfeita paz e plenitude, independente dos fenômenos e acontecimentos à sua volta.

Todos nós estamos estabelecidos nesta paz constante, mas não percebemos, de tão envolvidos que estamos nos ‘jogos’ de citta (citta lila). Temos, ‘dentro’ de nós, toda ahimsa que estamos buscando no plano das ações.

Se concebermos ahimsa como esse sentimento de amor universal, incondicional, que nos faz perceber o ‘outro’ como essencialmente idêntico a nós mesmos, podemos dizer então que ahimsa é aquilo que realmente somos. Todos nós somos manifestações desse amor que traz paz e concórdia ilimitada, que ‘une’ todos os seres.

Ahimsa, em sua mais bela expressão, é aquele estado de vivência da paz interior, uma paz que se sustenta num sentimento de amor ilimitado por tudo e por todos.

A realidade intrínseca é a paz, e os conflitos são, na verdade, percepções e ações periféricas que não a afetam e não a modificam realmente. Como podemos então tornar possível, visível e compreensível para todos essa paz, ‘corporificando-a’ e tornando-a mais palpável?

Devemos começar por compreender que a mente, em raros momentos, sintoniza com essa realidade (que é a ‘esfera’ do ser). Ela afiniza-se com outros estados, de dispersão e ilusão (vikshipta e moha avasthanam), que não correspondem à vivência do que é real, eterno e permanente (nitya).

Se nos esforçarmos para entender a realidade primordial de todas as coisas (Brahma), percebendo e vivenciando apenas. Essa essência, poderemos então deixar de ver as nossas superficiais e aparentes diferenças.

Anityasuci dukhanamatsu nitya suci sukhatmakhyatir avidya – Ignorância é conceber o impermanente, o impuro, o doloroso e o não-ser, como o que é permanente, puro, o agradável (bom) e o ser. Yoga Sutra, II.4.

Rodrigo Carvalho dá aulas em Belo Horizonte e cursos de Yoga e terapia ayurvêdica pelo Brasil.
www.deha.com.br

Este texto foi publicado originalmente nos Cadernos de Yoga: www.cadernosdeyoga.com.br

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Uma resposta para “Ahimsa é aquilo que realmente somos”

  1. Essa é uma idéia muito madura de ahimsa, já que vai além do simplesmente não ferir aos outros, mas que sugere que é nosso dever fazer o bem sempre, e não flertar com a intenção do mal, nem mesmo em pensamento, como mesmo prega o budismo, há milênios.

    Para atingir a tão falada iluminação, certamente é necessário se livrar de toda animosidade.

    Parabéns.

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