Pratique, Yoga na Vida

Amor Radical ou Emoções Baratas?

Hoje em dia, está na moda ficar. Pessoas ficam. Por exemplo, ouvimos dizer que Fulano ficou com Sicrana. Demorei um pouco para entender o que era esse tal de ficar

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amor radical

O que é o amor radical? O que são emoções baratas? Hoje em dia, está na moda ficar. Ficar seria uma forma de amor? Pessoas ficam. Por exemplo, ouvimos dizer que “Fulano ficou com Sicrana”. Demorei um pouco para entender o que era esse tal de “ficar”.

Ainda bem que tenho um dicionário em casa. Aprendi que ficar é “manter com (alguém) convívio de algumas horas, sem compromisso de estabilidade ou fidelidade amorosa”. Traduzindo: ficar é viver um relacionamento amoroso avulso. Emoções baratas (cheap thrills), diria Janis Joplin.

Devo estar ficando velho (na outra acepção do termo): não consigo compreender o sentido dessa perda de tempo e energia, desse desgaste e dessa irresponsabilidade em relação aos sentimentos do outro.

Para mim, pelo que entendo da visão do Yoga sobre a vida, o amor envolve um grau tão alto de compromisso nos relacionamentos, que aventuras desse tipo ficam imediatamente descartadas.

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O yogi, acredito, não quer perder tempo, nem dispersar sua energia e, muito menos, ferir os sentimentos de outrem. O yogi de verdade está no processo de libertação (mokṣa), e busca a mesma inspiração no estudo da filosofia, na prática e nos relacionamentos amorosos. Ele não está atrás dessas emoções baratas, mas do amor radical.

Há muita controvérsia em torno da definição dele. Quando pessoas diferentes tentamos descrever esse suposto sentimento, nossas definições raramente coincidem. Isso, em caso de chegarmos no consenso de que o amor é de fato um sentimento, coisa bastante questionável, como veremos nesta reflexão.

Amor = sofrimento?

Todos sofremos de amor: seja pela ausência, por medo dele, ou por medo de que nos falte. Porque isso acontece? Porque sofremos tanto com algo que deveria nos trazer felicidade? Quando morre alguém que amamos, sofremos. Quando alguém que amamos nos é indiferente, sofremos.

Quando morre o amor que nutrimos por alguém, sofremos também. Esse sofrimento é universal, e parece estar baseado numa compreensão equivocada do que seja o amor.

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Quando estamos carentes, vemos o afeto pelo outro como uma tábua de salvação, uma espécie de transferência da responsabilidade pela nossa própria felicidade para o objeto de amor. Isso significa que, distraídamente, delegamos ao outro a tarefa de nos fazer felizes.

Coitado do outro(a); ele(a) nem imagina onde está se metendo, nem suspeita qual é o tamanho da missão que, sem aviso, nós lhe demos.

Acredito que isso aconteça porque não compreendemos a natureza do amor. Não sabemos nada sobre ele, que não esteja condicionado pela emocionalização da nossa ignorância e pelos nossos condicionamentos culturais.

Não conseguimos pensar além dos valores que a sociedade nos impõe, e essa limitação torna-se uma fonte inesgotável de sofrimento.

O afeto é transformado num sentimento por conta da nossa interpretação pessoal, tingida por condicionamentos e lembranças, valores sociais, e a imagem distorcida que temos de nós mesmos.

Como projetamos nosso passado no presente o tempo todo, o amor parece evaporar-se depois de pouco tempo. Conseqüentemente sofremos, ficando à mercê da próxima queda no abismo da montanha russa emocional.

O Afeto nos Tempos do Veda

Como admirador da cultura dos Vedas, faz muito sentido para mim o que a Bṛhadāraṇyakopaniṣad, diz à respeito da afeição, e que resolve a equação entre ela e o sofrimento. Este ensinamento pode nos parecer, ao primeiro olhar, radical e desconcertante.

Numa passagem deste texto, cujo título poderia ser traduzido mais ou menos livremente como ‘A Grande Floresta do Conhecimento’, o sábio Yājñavālkya está prestes a renunciar ao mundo.

Isso inclui as riquezas, a própria família e, obviamente, o amor que ele tem por ela.

Ele chama Maitreyī, sua esposa, e lhe diz que está indo embora para morar na floresta, para levar uma vida de contemplação, dedicada ao auto-conhecimento. Também lhe diz que irá deixar todas suas riquezas com ela e sua segunda esposa, Katyayaṇī.

Maitreyī pergunta se essas riquezas poderão dar para ela aquilo que ele está buscando na vida de contemplação. Ele responde com estas palavras:

“Não, sua vida seria apenas igual à daqueles que têm riquezas. No entanto, não há a mínima chance da imortalidade ser obtida através da abundância.”

Então Maitreyī disse: “O que deveria eu fazer então, com aquilo que não me torna imortal? Ensine-me, venerável senhor, sobre Aquele que você conhece como o único meio de se alcançar a imortalidade.”

Depois, lhe dá uma definição de amor que pode parecer-nos perturbadora ou “egoísta”, respondendo com estas palavras:

“Minha querida, você já era minha amada antes, e agora menciona o assunto que me é mais caro. Venha e sente-se: irei lhe explicar. Enquanto lhe explico, medite sobre o que lhe digo:

“Em verdade, não é pelo amor ao esposo, minha querida, que o esposo é amado: ele é amado pelo amor ao Ser que, em sua natureza real, é uno com o Ser Ilimitado. Em verdade, não é pelo amor à esposa, minha querida, que a esposa é amada: ela é amada pelo amor ao Ser.

“Em verdade, não é pelo afeto aos filhos, minha querida, que os filhos são amados: eles são amados pelo amor ao Ser.”

Isso significa que, quando amamos uma pessoa, não estamos amando ela pelo que ela é, mas pelo que ela evoca em nós: a pessoa simples, pacífica e plena que essencialmente somos.

Contrariamente ao que possa parecer, isso não é egoísmo. Deixando de ver o amor como uma emoção, posso cultivar o desapego em relação aos meus próprios sentimentos.

Assim, poderei me livrar do sofrimento que inevitavelmente advém quando estou identificado com eles. De esta maneira, poderei igualmente aliviar o outro da responsabilidade de me fazer feliz. Isso seria exatamente o oposto do egoísmo.

O Amor não é uma emoção

Assim, o amor não seria uma emoção ou uma sensação. Uma emoção é uma reação orgânica a um pensamento, acompanhada por mudanças na respiração, na pressão sangüínea e no sistema endócrino.

Amor radical é afeição e paz, que surgem do reconhecimento de si mesmo como alguém completo, simples, feliz e satisfeito.

Por esse motivo, não devemos confundir paixão ou volúpia, com afeto de raíz. Se, em presença do ser amado, fico em plenitude, satisfeito e em paz, isso acontece porque a pessoa que amo desperta em mim o amor pelo Ser que sou.

Dharma, literalmente, significa “aquilo que mantém unido” e é uma palavra que se traduz como harmonia intrínseca, ordem, lei natural.

Afeição é uma coesão intrínseca, uma força protetora que envolve grupos de pessoas, famílias ou amantes.

Nesse sentido, podemos dizer que afeição é dharma. A conexão entre afeição e dharma é óbvia: se o dharma é a cola que mantêm unidas as pessoas, isso não pode ser diferente do amor. Amor pelo Ser, então, é amor radical.

Não precisamos abandonar nossas vidas e ir para a floresta, como faz o sábio da Upaniṣad, para reconhecer o afeto desta forma, cultivá-lo desapegadamente e viver uma vida mais plena e feliz.

Basta apenas reconhecer a plenitude em nós mesmos, e olhar com responsabilidade para aqueles que amamos, sendo compassivos e não-violentos em relação ao mundo. Isso é o que chamamos de amor radical.

॥ हरिः ॐ ॥

Mais aqui sobre os valores do Yoga. Interessante texto sobre o afeto na perspectiva de Śrī Nisargadatta Maharāj aqui.

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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12 respostas para “Amor Radical ou Emoções Baratas?”

  1. Pedro, grata pela reflexão, encontrando aos poucos esse reconhecimento da plenitude que já somos…Hari Om!

  2. Grato pelas reflexões, Pedro.
    Este que descreveste, é para mim O único amor.
    O que tem sabe no tempo devido renunciar e também acatar as próprias vontades pelo Bem.

  3. Pedro, como vai?

    Grata por estar aprendendo através de seus textos.
    Este em especial, me remeteu imediatamente ao meu filho , hj com 20 anos.
    Há cerca de 5 anos, comecei a ouvir ” só estou ficando”…também demorei a compreender o que isso significava, e ao conversarmos, sob o meu ponto de vista adulto buscando compreender o ponto de vista adolescente , senti que o ” ficar” era muito vazio e pobre de possibilidades afetivas, de crescimento .Passado algum tempo, ele conheceu uma garota por quem desenvolveu verdadeiro carinho e um compromisso mutuo de se conhecerem verdadeiramente e assim estão vivendo este momento. Em nossa família não faltam exemplos bacanas de compromisso ( e de algumas boas rusgas também!), ele tem sido guiado para sua vida adulta com profundo amor e devotamento. Então pq ” ficar”? Pergunto isso e ele mesmo não tem uma resposta , ainda não é um adulto experiente, e embora tenha uma coração amoroso, o Caminho para o aprendizado profundo do Amor esta apenas no inicio.O ” ficar” em si, não é a pior das experiências, mas o permanecer neste estado , isso sim me parece um mergulho num abismo.Tenho a minha volta muita gente jovem, os amigos e amigas do meu filho, universos e mais universos de pensamentos e modos de ver a vida, ligados aos seus pais, e a seus modos de ver a vida, ligados ao grupo e as pressões do grupo, e aos seus modos de expressarem a vida.
    Essa Casa, esse Lar Espiritual que vibra em nós , isso que somos, é como caverna na escuridão, há séculos e séculos inexplorada, lembra? Basta uma lanterna para clarear seu interior.Essa lanterna é a Luz e Essência, e vem apenas quando deve chegar na vida e na busca de cada um.

  4. Querido Pedro, aparece ”el” tema, desde la gran perspectiva del Yoga en “el” momento justo. Gracias!!!

  5. Lindo Pedro!!! Como sempre super objetivo e pontual. Super gratidão por mais vez compartilhar. E\\\’ na dificuldade que o Mestre se revela.

  6. E quando encontramos não temos dúvidas de que é o Dharma…
    Esse tal Amor cola que é uma beleza!
    Adorei o texto Pedrão!

  7. Obrigado pelo texto, professor!
    Além da compaixão e conhecimento evidentes nele, eu estava precisando desses questionamentos.
    Precisando renovar o respeito pelo amor, como expressão da plenitude que somos. 

  8. Lindo texto, reflexivo, esclarecedor e profundo. Gratidão!!! Namastê!!!

  9. Maravilhoso o texto. Muito obrigada! Namastê! OM Shanti Linda.

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