Pratique, Yoga na Vida

Cozinhásana e Jardinásana

Todos os fins de semana, vou para o que chamo de paraíso, uma casa na Mata Atlântica, construída de forma totalmente orgânica. As paredes foram surgindo conforme a necessidade pedia, as janelas, portas e pisos feitos com material de demolição. Uns móveis herdados de pais, tias e avós de amigos. Outros, feitos com restos de madeira encontradas em nossos passeios pelas trilhas próximas.

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“Era desejo de Deus se transformar em muitos,
e então, depois de ter criado tudo,
Ele mesmo penetrou na criação e,
por mais insignificante que uma coisa possa ser,
essa coisa é Ele.”
Taittiriya Upanishad

Todos os fins de semana, vou para o que chamo de paraíso, uma casa na Mata Atlântica, construída de forma totalmente orgânica. As paredes foram surgindo conforme a necessidade pedia, as janelas, portas e pisos feitos com material de demolição. Uns móveis herdados de pais, tias e avós de amigos. Outros, feitos com restos de madeira encontradas em nossos passeios pelas trilhas ao redor do terreno.

Um quarto só com nossas memórias, lembranças de viagens, minhas e dele, tudo misturado, fotos com coleção de carros e aviões, ferramentas com regadores e sementes… Pedaços unidos de outros casamentos meus e dele formando a nossa história.

Todas as vezes que vou pra lá, não consigo praticar os ásanas tradicionais… O que na cidade, é muito mais que uma regra, é uma necessidade, lá se faz desnecessário. A força da mata e o som do rio correndo perto de casa por si só já me deixam em estado meditativo.

Ser despertada por um galo que desconhece horário de verão, sábados e domingos e por passarinhos de todas as cores e musicas, aterrisando no telhado e usando as fruteiras que vejo da janela como praça de alimentação já soa como mantra, consagrando o despertar.

Tudo convida ao silêncio. Tudo está em perfeita harmonia. A Mata Atlântica é viva, tem muitos sons, muitos tons, é diferente de matas de reflorestamento que parecem florestas mortas. Este amanhecer permite que eu veja a presença divina, Isvara, em qualquer lugar que eu olhe, em toda a criação.

Andar descalça na areia úmida de orvalho, o cheiro de terra molhada, o perfume das flores, o sol começando a aparecer atrás do morro. Plenitude. Total desidentificação com os conteúdos da minha mente.

Meditação. Sensação de união com tudo que existe. O melhor horário para plantar é de manhã bem cedo. A terra úmida facilita o trabalho. Melhor ainda se tiver chovido na noite anterior. Se a lua for crescente, a colheita é garantida.

Sejam sementes, compradas ou guardadas de algum alimento especial, a sensação de preparar a terra e colocar no vaso ou no canteiro, o poder da criação em nossas mãos que se misturam à terra e ao esterco, que deixa de ser excremento de gado e vira adubo, húmus, homem, humildade.

É preciso muita humildade para compreender a natureza em sua magnitude. A flora é muito generosa. Um pouco de água e sol, e as flores aparecem colorindo a primavera. Nada pedem de volta, nada reclamam, apenas são, apenas existem em sua plenitude.

Tenho inveja das plantas quando estou longe delas porque na cidade me sinto isolada de tudo ao meu redor. Olho pela janela e o que vejo é barulho, raiva, medo, violência, pressa! Sofremos tanto porque nossa real natureza não é essa da competição e da pressa. Somos paz e quietude e por isso, nos sentimos tão bem no meio do mato.

Quando vejo na TV as devastações causadas pelo homem para construírem mais shopping centers, mais estacionamentos, mais prédios, tanta irresponsabilidade com o planeta, com os outros, consigo. Não terão eles filhos, netos, descendentes que herdarão a terra devastada pelos seus antecessores?

Morro de vergonha de ser humana quando estou entre os pássaros e as flores… Antes de me tornar vegetariana, não gostava de cozinhar. Depois descobri que era porque não tolerava manipular bichos mortos. Ahimsa não era ainda um yama para mim, porque não conhecia os preceitos do Yoga.

Mas era desconcertante pensar em cortar um animal. Preferia comê-los com bastante tempero e molhos para esquecer que aquele era um ser tão dotado de divindade quanto qualquer um de nós.

Agora, cada vez que vou à horta pegar uma folha, tempero ou tubérculo, agradeço a força divina que gerou este alimento e ao prana contido nele. Poucos prazeres se comparam a comer um alimento que você mesmo plantou, principalmente quando foi cultivado de forma orgânica, sem nenhum tipo de agrotóxico, apenas com resíduos orgânicos. Se os grandes plantadores soubessem o quanto exaurem suas terras com esses fertilizantes. O mais triste é que eles sabem e não dão a mínima importância…

Tudo que existe na natureza tem uma razão, tudo faz parte de uma rede muito mais complexa do que pode perceber nossa vã filosofia. Todas as ervas que a arrogância humana teima em chamar de “daninhas” são atman, partes de Brahma, e fazem parte da mesma ordem que nós. E o homem, investido de soberba, pensa que pode manipular o que já é perfeito a seu bel prazer.

Sabemos que para cada ação (karma), corresponde uma reação equivalente, donde podemos concluir que a natureza reagirá com a mesma violência a que está sendo submetida. E pelos tsunamis e furacões que nossa geração já presenciou, não é preciso a terra reagir muito para que todos morramos.

Preparar alimentos de forma sattvica, ou seja, sem violência, é também uma meditação. O ato de cortar temperos, selecionar os grãos, cortar os legumes, para depois usar de sua intuição mais profunda para misturar os temperos e transformar o alimento em prasada, porque tudo que é feito com amor é prasada, alimento sagrado. Tudo o que fazemos com amor e devoção é yoga, ou não?

Nestes momentos, nos percebemos como completos, perfeitos, ilimitados, satisfeitos com quem somos agora. Isto é moksha!Quando estamos conscientes do Ser que somos, nem que seja por uma fração de segundo, somos ananda, plenitude.

Assim, jardinando aqui e ali, cozinhando e respeitando o alimento e a terra que o produz, descubro que todas as vezes que me entrego a terra de pés descalços, real e metaforicamente, todas as vezes que me dispo de quem aprendi a pensar que sou, e paro de representar os diversos papéis que me são atribuídos, sou a felicidade que sempre busquei.

Então, descubro que a gente não se torna feliz. A gente já é a felicidade em forma de primavera. Já somos moksha, e em harmonia com a natureza, nos damos conta de quem realmente somos e o que eu somos é paz! Namaste!

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7 respostas para “Cozinhásana e Jardinásana”

  1. Olá Teresa,
    me identifiquei muito com seu texto, pois moro em Cotia, uma cidade que fica a 30 km de São Paulo, nem é tão longe, o problema é pegar a Rodovia Raposo Tavares todos os dias… No meu primeiro dia de casa nova, fiquei 3 hs parada nessa Rodovia em apenas 10 km dela…
    Todos os dias pego trânsito, agora um pouco menor, pois tenho saído bem cedo para trabalhar e volto a tarde, antes da hora do rush… Mas sabe que nem ligo?
    Todas as vezes que estou chegando em casa e sinto aquele cheiro de mato, todas as vezes que ouço os passarinhos, que vejo os saguis nos fios dos postes, que ouço o galo cantar de madrugada, que sinto o cheiro de orvalho quando chove, todas essas vezes compensam as horas no trânsito.
    Entendo perfeitamente quando vc diz que somos paz e felicidade na nossa natureza e que é por isso que nos sentimos tão bem em meio a natureza real. Acho que o futuro do homem é cada vez mais buscar essa natureza e se afastar do stress, do caos urbano, da violência.
    Espero que um dia todos consigam enxergar que a paz e a felicidade estão dentro de nós, só precisam de uma força pra sair.. Belas palavras!
    Om shanti Om!

  2. Ë confortante, ler textos como esse… compartilho o mesmo sentimento, é assim que me sinto sempre que vou para a Chapada (dos Veadeiros.) e me sinto eu no cerrado na cachoeira tao viva …lá realmente eu sou! Namaste.

  3. Olá Tereza,
    também sou uma privilegiada, vivo em lugar parecido com o seu só que aqui em Santa Catarina. Como é confortante perceber que as pessoas, mesmo neste ritmo frenético, se deixam contagiar por experiências como as nossas e isto me deixa cheia de esperança que um dia sejamos a maioria e que toda esta tormenta e preocupação com o desrespeito à mãe natureza seja apenas fatos de uma história passada. Que todos sintam vontade sim, pois é muito bom acordar com os pássaros e vê-los como amigos na janela a espera do bom dia.
    Abraços,
    Adriane

  4. Lindo texto, Teresa.
    Emocionante lê-lo, e pensar que alguém que não conheço, sente e vive coisas parecidas com as que me acontecem, quando também dispenso todas as couraças que carrego.
    Namastê!

  5. Olá Tereza Freire,
    Maravilhoso seu artigo. Nasci na cidade de Ivaiporã/Pr, e sei bem o que você esta dizendo.
    Sd Rodrigues – Instrutor de Yoga em Brusque.

  6. Olá Tereza,
    Realmente o texto nos mostra toda a essencia da felicidade, sempre busco também essa tranquilidade e sintonia com a natureza com fonte criadora! Costumamos acampar às vezes aos pés de cachoeira, em cima de algum morro com o propósito de fugir um pouco do corre corre, do sistema em que vivemos , a sensação que temo é que o tempo se expande! Cada minuto se torna muito bem aproveitado, e aprendemos a viver com o suficiente apenas para sermos felizes. Muito bom esse seu relato! Fique bem. Muita luz!
    Namaste!

  7. Tereza,
    quantas vezes eu me sinto desanimada com a vida… Mas ao ler seu texto, me deu vontade de viver mil anos! E que linda inspiração você teve, ao dizer que a gente já é felicidade em forma de primavera.
    Te desejo mais e mais felicidade!

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