Ética, Pratique

Da força de vontade

Como exercer a não-violência em relação a outros seres e, por livre e espontânea estupidez, matar-se fumando?

· 3 minutos de leitura >

‘Tapas é calor, ascese, determinação, força de vontade concentrada, austeridade, esforço sobre si próprio. O objetivo deste esforço é atingir um estado de purificação que permita ao indivíduo tomar posse do seu corpo, indo além dos limites impostos pela percepção limitada da realidade’. Kupfer, Pedro. Yoga Prático.

Minha decisão de parar de fumar foi um voto espiritual, uma prática de tapas. Era incoerência demais ser praticante de Yoga, e tropeçar logo no primeiro yama: ahimsa.

Como exercer não violência em relação a outros seres e, por livre e espontânea estupidez, matar-me a cada tragada? Como saber que tudo é sagrado e tratar o corpo que hospeda o ser divino que sou com tanta negligência? Como saber que se trata de uma indústria criminosa que enriquece às custas dos pulmões alheios e financiá-la?

A desculpa que todos dão é sempre a mesma: vou morrer mesmo, então deixa eu curtir meu cigarrinho…

Mas curtir o que? Cheiro ruim nas mãos, na boca, no corpo todo, dentes amarelos, e falta de ar? Sem falar na provada possibilidade de desenvolver um câncer no pulmão… E tudo isso por um troço que nem sequer dá barato?

Foi muito mais fácil do que eu esperava. Achei que precisaria de patches, lasers, calmantes, chicletes, tudo que desviasse a vontade de repetir o hábito. Mas aí eu correria o risco de ficar dependente de outro hábito…

Um condicionamento não podia ser mais forte que minha vontade.

Por que somos tão devotos de nossos condicionamentos? Deve ser porque é um terreno conhecido e temos medo do que não sabemos…

Ficamos estagnados em lugares e situações, reais e metafóricas, por medo do novo… Muitas vezes vemos nossa saúde se deteriorar, por um hábito, ou por uma estagnação e não reagimos, ficamos escravos da situação.

Puxa, mas se há uma coisa que nos difere dos outros seres é a capacidade de distinguir o que faz bem do que faz mal. Então, porque insistimos nas coisas ruins?

Por sabotagem? Auto-punição? Ou burrice mesmo? No meu caso, estava virando burrice. Um hábito que não combinava mais comigo…

Um dia, acordei, e resolvi que nunca mais meu dinheiro compraria duas coisas: carne e cigarros.

Claro que senti falta, que fiquei chata e nervosa por umas duas semanas, que alguns lugares ficaram sem graça, que era como se tivesse perdido uma parte de mim… Mas nem por um segundo, pensei em voltar. Seria andar pra trás. Como quando a gente termina uma relação estagnada, que nos impedia de crescer. Dói, mas a gente sabe que é para o bem. A gente sofre, mas passa… tudo passa!

Como diz o monge budista: quando você estiver sofrendo, pense que isto vai passar. E quando estiver muito feliz, tenha certeza: isso também vai passar…

O fato de fazer desta decisão um exercício de tapas é que fez toda a diferença. Deu sentido a tudo. Não apenas uma decisão pela saúde e bem estar meu e dos demais, mas um voto espiritual. Um esforço que se faz para crescer espiritualmente.

‘Ir além dos limites impostos pela percepção limitada da realidade’. Afinal, é para isso que praticamos yoga. Para enxergar além do que os olhos alcançam. Para tomar as rédeas de nossas vidas. Para não mais deixar-nos levar ao acaso das situações e das emoções.

Para não mais sofrer.

‘A vida é sofrimento’, dizia o Buda. Aquele que tinha tudo para permanecer no estado de ignorância e alienação que seu pai proporcionava, fechado entre quatro paredes de um castelo, feito sob medida para que ele não conhecesse a realidade. Ao sair, descobriu que seu castelo era de areia e quis entender as dores do mundo, vivendo em extremo ascetismo, em busca de uma maneira de acabar com o sofrimento de todos.

A origem do sofrimento é a ilusão. Ilusão de sermos incompletos, finitos, e tomarmos o mundo como nos é mostrado, como a única realidade.

Através do auto conhecimento que o Yoga proporciona, compreendemos que somos apenas ignorantes .

Assim, o yoga tem a capacidade de nos des-iludir. Mostrar que estamos identificados com algo que não é.

Precisamos enxergar o que é…

Quando colocamos tapas em nossas vidas, estamos resgatando nosso infinito poder, e nos re-unindo com quem, de fato, somos.

Tapas revela a força que nem sabíamos que existia e nos enche de auto estima porque é a prova de que dominamos a vida e não o contrário.

Namaste!

Tereza é yogini. Mora e pratica em São Paulo. Dirigiu e produziu, em parceria com Daisy Rocha, o documentário Caminhos do Yoga, filmado na Índia em 2003.

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3 respostas para “Da força de vontade”

  1. Texto claro como cristal. Austeridade uma virtude esquecida nessa cultura hedonista, superficial, que gera pessoas ocas, carentes, frágeis, prontas para consumir tudo o que vê pela frente, como quer o mercado, as grandes corporações, os donos do mundo capitalista. Obrigado, querida, Deus te retribua em alegria e paz, esse lindo texto. Namastê!

  2. Parabéns, Teresa, pela clareza do seu texto. Eu decidi parar de fumar depois de alguns meses praticando Yoga, vc tem razão em destacar que fumar não combinava mais com vc.
    Foi exatamente isso o que ocorreu comigo, não combinava mais, como podia praticar dedicadamente pranayamas e, em seguida, fumar um cigarro, sentia-me péssima! Sabia que a mente devia controlar o corpo e seus desejos e sabia, mais ainda, que se eu não vencesse o vício do cigarro não venceria nenhuma batalha em minha vida. Namastê.

  3. Muito legal seu texto, Tereza. Pode ajudar muita gente que está querendo parar. Quando eu quis parar de fumar utilizei inumeros recursos. O que me convenceu mesmo foi um estudo sobre todos os componentes do cigarro e seus malefícios. Depois a técnica foi a de voltar a ser a pessoa que eu era antes de ser fumante, me lembrar de meus antigos hábitos. Um beijo! Om Shanti!

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