Conheça, Yoga Clássico

Ego e Saṁsāra

Segundo os Mestres do Yoga, é a mente que, bloqueada ou impura, ou agitada, ou distorcida, ou com tudo isso junto, nos impede de comungar com o Infinito, e nos encadeia ao finito; nega-nos a Eternidade, mergulhando-nos no reino da duração; frustra-nos a Liberdade do Nirvana, e nos prende à engrenagem de samsára (a roda dos renascimentos).

· 6 minutos de leitura >
Saṁsāra

Saṁsāra

Segundo os Mestres do Yoga, é a mente que, bloqueada ou impura, ou agitada, ou distorcida, ou com tudo isso junto, nos impede de comungar com o Infinito, e nos encadeia ao finito.

Nega-nos a Eternidade, mergulhando-nos no reino da duração; frustra-nos a Liberdade do Nirvana, e nos prende à engrenagem de saṁsāra (a roda dos renascimentos).

É essa mente, tão normal, que, feito olhos cegos e ouvidos surdos, nos amarra no cipoal da ilusão, e assim é que perdemos nossa identidade-unidade com o Ser, e já não podemos dizer Eu Sou.

A mente, que, na escuridão, não pode ver Eu Sou, assume a identificação com o mortal e indigente, e afirma “eu sou Fulano”. É assim que nasce o egoísmo. Nasce gerado, portanto, pela ignorância (cegueira, ilusão). É o ego, portanto, um usurpador de Eu Sou.

Assumindo o trono, o grande embusteiro toma conta de toda nossa vida, ficando Eu Sou (o Ser) no exílio, em seu exílio celeste e bem-aventurado. Mas fora de nosso alcance.

Enquanto durar o reinado do usurpador, Eu Sou não será conhecido por nós. Ficamos, assim, nós, na prisão do ego, reino da angústia e da morte. Eu Sou não sente angústia e não morre.

É perene e absolutamente feliz e vivo. Eu Sou tem apenas um adversário: essa nefasta convicção de sermos um determinado Fulano. O sem-angústia e sem-morte, em sua Glória, é a própria Vida, o Amor-Uno.

Firmado no trono usurpado, o ego (ou eu), em sua horizontalidade, experiencia o mundo, o mundo das formas, dos nomes, o mundo do tempo e do espaço.

Em sua crônica miopia, valoriza seres e coisas pelos critérios opostos: da gratificação e do padecimento. Tudo o que o agrada é desejado e se torna objeto de apego.

Tudo o que o desagrada é rechaçado e detestado. Para ter aquilo de que gosta ou para afastar ou destruir aquilo de que não gosta, o eu lança mão da violência. Quando consegue a realização de seus propósitos, exulta e festeja. Quando não, se abate e adoece (neurotiza-se).

O eu é muito frágil e muito vulnerável, embora arrogante e reivindicante. É vulnerável na medida em que o mundo que o cerca nem sempre concede aquilo a que ele se apega, e, por outro lado, com relativa freqüência, impõe-lhe aquilo a que tem aversão.

A constatação dessa vulnerabilidade gera uma enorme variedade de fobias. Assim, o eu horizontal, esse Fulano, que insistimos em ser, é uma presa da angústia, isto é, de toda forma de sofrimento, palpável ou imaginário, presente, passado ou futuro.

De tudo aquilo que o ego mais gosta, o existir, o viver, o sobreviver e o continuar está em primeiro lugar. O que mais detesta, logicamente, é a morte.

Sua angústia se agrava quando se lembra de que aquilo que mais deseja é impossível. Angustia-se sabendo da inevitabilidade das adversidades e da morte.

Aliás, é o ser humano, entre seus irmãos mais próximos, os animais, o único que tem a angustiante certeza de sua própria morte. Tanatofobia (1) é o nome erudito para o medo da morte. Patañjali, no Yogasūtra, chama-o de abhiniveśa.

Freud encontrou dois instintos básicos na alma humana: eros e thanatos, isto é, o instinto do sexo-vida (libido) e o instinto da morte. Deixemos eros para outros estudos. Falemos agora de thanatos.

Saṁsāra

O saṁsāra do suicida

Os suicidas seriam então pessoas que teriam anulado a repressão que normalmente exercemos contra a natural tendência à autodestruição, tendência essa que, inconscientemente, faz parte de nossa natureza.

Teriam, portanto, os suicidas permitido que o “instinto de morte” se cumprisse.

Com todo respeito que a genialidade de Freud merece, lembraríamos somente que ele tratou, observou e estudou neuróticos, e, a partir daí, se achou autorizado a estender a todas as pessoas suas conclusões.

Que sabia ele sobre a mente de um santo, de um yogi, ou de uma pessoa apenas mentalmente sadia?

Um suicida é movido pelo instinto de morrer ou se autodestrói por ter a evidência da impossibilidade de preencher seus desejos, de saciar suas paixões, de manter a posse dos objetos e de seus apegos normais, diante de sua impotência para destruir seres, objetos e idéias que obsessivamente o incomoda e ameaça?

Não teria o suicida procurado, no ignoto, um lenitivo ou uma solução para distanciar o que detesta? Não seria o suicídio uma tentativa (adianto e digo logo, frustradora) de fuga?

O que há em nós é exatamente o oposto do “instinto de morrer”: um eu mortal, estupidamente pretendendo se imortalizar, com uma invencível sede de existir, que o Budismo chama de tanha, e o Yoga, abhinivesha.

O que em realidade há em nós é um instinto forte para evitar thanatos. Desculpem-me Freud e Marcuse.

Tanha (a sede de existir) e abhiniveśa (o medo de morrer) são a mesma coisa, o mesmo instinto essencial, que expressa uma lei universal, a “lei do sobreviva”, ou a “lei do continue”. O ego pessoal tem muito apego a seu trono usurpado, o trono de Eu Sou. Ele é o grande adversário (2) de Eu Sou.

Supondo que vive, anseia e luta por continuar, por sobreviver. Em sua batalha de sobrevivência, genialmente lança mão dos mecanismos e truques mais sutis e luciferinos para vencer todas as diligências que a alma, já escutando o clamor de Deus (Eu Sou), tenta, no sentido de se libertar.

A libertação é inatingível enquanto um diabólico “eu sou Fulano” for vivendo à custa de bem engendradas manobras. Fazendo justiça a Freud, declaro que disso ele entendeu muito (3).

A manobra mais sutil, mais ignota e, por isso mesmo, a mais difícil de ser por nós vencida é a manobra da divisão (cisão, fragmentação, conflito, separação). A palavra grega diábolos significa “aquilo ou aquele que divide”. Em português deu origem ao vocábulo diabo.

Todos nós somos um sistema, isto é, um conjunto de componentes que, não obstante individuais, nada valem, se não fizerem parte do conjunto, interagindo com outras partes e mesmo com o todo.

Nosso fígado, por exemplo, é um pequeno sistema formado de células. Em conjunto com os demais órgãos, forma um sistema bem maior, que é o nosso organismo.

Nosso organismo, nossa mente, nosso componente energético e outros componentes ainda mais sutis formam o grande sistema que é o homem, ainda hoje “este desconhecido”.

Ninguém ignora que discórdia, “desligação”, desunião, disjunção e desintegração são funestos a qualquer sistema, pois enfraquecem, esvaziam e levam à própria extinção.

Não é errado dizer que são diabólicos ou satânicos. Isso vale para os muitos sistemas: homem, sociedade, natureza…

Tudo que, em sentido oposto, promova concórdia, religação (re-ligare ou religião), união, junção e integração é benéfico, pois fortalece e acrescenta vida a qualquer sistema.

Yoga deriva do radical sânscrito yuj, que veio a dar origem em português a palavras como juntar, conjugar e jungir, todas no sentido de unir, integrar, religar, unificar…

Ignorando o Ser, e já não podendo dizer Eu Sou, padecemos a mais dramática e infernal divisão-separação, que diabolicamente nos aliena, nos enferma, nos ilude, nos distrai e nos distrói, nos condenando à angústia e gerando pathos. A isso eu chamaria de pecado mortal.

Presas de saṁsāra

Presas de saṁsāra, somos pobres existências exiladas da gloriosa abundância da Essência; estamos condenados a nascer para morrer e morrer para nascer, numa sucessão dramática, que parece não cessar…

A morte é a lei de saṁsāra. É a condenação que “eu sou Fulano” carrega, como pesada e inalienável cruz. É a maior fonte de angústia universal.

Não é a carência, a falência, a insuficiência, a frustração, a repressão do élan erótico, da ânsia ou impulso sexual, conforme algumas escolas defendem.

Pressentir um indesejável, mas inevitável fim, é trágico e angustiante para um “eu sou Fulano”, que obsessivamente quer continuar existindo, embora insatisfeito por não poder ter o que deseja gozar e não poder evitar o que o faz sofrer.

A previsão da morte apavora porque acreditamos que seja o fim daquilo que nos motiva com maior intensidade: o continuar existindo.

Apavora-nos por supormos ser uma imersão sem retorno, no vazio, no nada, no escuro, no desconhecido.

Apavora-nos porque a vemos como desagradável despojamento do que acreditamos possuir: coisas, poderes, ideais, riquezas, pessoas “amadas” (?!)… Amendronta-nos por impor distâncias e ausências definitivas.

O verdadeiro Yoga, o verdadeiro Cristianismo, o verdadeiro Budismo e o verdadeiro Vedānta são a Verdade, a “Verdade que liberta” a alma em evolução (jīva) da tirania da morte, pois que nos leva à própria Vida.

A Vida é imortal, mas ainda está longe daqueles que existem no “vale da sombra e da morte” (saṁsāra). Quem nos pode salvar da opressão e da morte, do reino luciferino de “eu sou Fulano”, senão Aquele que claramente declarou: “Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida“?!

O Cristo – Eu Sou (Ham Sa) – é o Caminho que leva à Verdade, Verdade que é Vida Imanente, que nos liberta das garras da morte, dos vínculos angustiantes de saṁsāra.

Cristo é Superação

As cartas que você vai ler no capítulo Thanatos do meu livro Superação tratam da morte: cartas a quem vai morrer, isto é, na expectiva da morte, vítima de enfermidades irreversíveis e fatais; cartas a parentes angustiados com a próxima separação aparentemente definitivamente de seres amados ou dos quais ainda dependem.

Não são açucaradas e piegas cartas de consolação. São cartas visando a esclarecer, e, assim, a encorajar.

Já vão tantos milênios de horror à morte que faz parecer impossível defender a tese de que thanatos não é adversário (4), mas é útil, necessário, e mais: tem poesia e beleza.

Sim, a “irmã Morte”, conforme São Franscisco de Assis chamava, é uma das expressões, ainda mal compreendidas, da misericórdia de Deus. Não dói. Não destrói. Não pode, portanto, angustiar aqueles que avançam no Caminho, na Verdade e vivem na Vida.

(1) Thanatos é o deus da morte, na mitologia grega. Na hindu, é Yama.
(2) O grande adversário (Satã ou Sitaná) é aquilo que, impondo sua existência, como que mata a Essência.

O Cristo disse a Pedro, quando este desejou preservar Jesus (a existência) em detrimento do Cristo (a Essência): “Para trás de mim, Satanás! És para mim pedra de tropeço, porque não tens os pensamentos de Deus, mas os dos homens” (Mateus, 16:23).

(3) São “recursos” ou artimanhas usadas pelo eu, existência a pretender se perpetuar e dominar: (a) repressão; (b) sublimação; (c) racionalização; (d) projeção e (e) regressão.

Os mesmo truques que Freud denunciou como “dinamismos” para resolver incompatibilidades entre a natureza primitiva animalóide (o Id) e as exigências do que ele chamava de realidade.

(4) O “eu sou Fulano” é o verdadeiro adversário.


॥ हरिः ॐ ॥

Extraído do livro Superação.
Digitado por Cristiano Bezerra.
Leia aqui mais textos deste brilhante autor.
Visite aqui o site do Professor Hermógenes.
Saiba mais sobre como viver no saṁsāra aqui.

॥ हरिः ॐ ॥

+ posts
subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

Uma resposta para “Ego e Saṁsāra”

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *