Āsana, Pratique

Filosofar o ásana?

Já ouvi várias vezes, na recente polêmica sobre se o Yoga seria uma forma de Educação Física, que 'Yoga não é ginástica porque tem filosofia'. Esse argumento foi usado com muito sucesso por um grupo de professores numa Audiência Pública em defesa do Yoga no Senado

· 16 minutos de leitura >

Já ouvi várias vezes, na recente polêmica sobre se o Yoga seria uma forma de Educação Física, que ‘Yoga não é ginástica porque tem filosofia’. Esse argumento foi usado com muito sucesso por um grupo de professores numa Audiência Pública em defesa do Yoga no Senado, alguns anos atrás. Os defensores do Yoga não precisaram fazer um esforço muito grande para demonstrar aos senadores que havia ‘uma filosofia’ por trás das práticas de ásana. De fato, todos já ouvimos dizer que Yoga tem uma visão filosófica sobre o corpo humano. Mas, o amigo leitor já se perguntou o que significa exatamente isso?

Este texto propõe uma reflexão sobre as diferentes interpretações que surgem ao juntar a filosofia do Yoga com suas práticas ‘físicas’. Coloco esta última palavra entre aspas, para lembrar que a prática de ásana não é e nunca foi uma prática corpórea apenas. Espero, assim, poder ajudar o leitor a compreender mais claramente a relação entre ensinamento e prática. Para a correta compreensão da profundidade da prática de ásana, é necessário entender essa visão filosófica do corpo. Nesse sentido, a reflexão do presente artigo estará centrada em dois assuntos principais: a inteligência do corpo vivo e a relação entre esse corpo e a existência.

 

Para começar, vamos definir o Yoga…

Antes de entrar no assunto ásana e filosofia, cabe fazermos uma pequena reflexão prévia. Acontece que não há unanimidade em relação ao que seja o Yoga. Como escola de vida, o Yoga é um fenômeno profundo e complexo, muitas vezes mal compreendido pelos próprios praticantes e professores. O significado da palavra Yoga tem mudado ao longo do tempo, dependendo da visão ou o interesse de quem a usa. De todas as acepções desse termo, interessa-nos a palavra Yoga como nome de uma escola de vida ou darshana.

A importância que o Yoga tem como escola de filosofia, exposta brilhantemente pelo sábio Patañjali há mais de 2000 anos, já seria suficiente para lhe garantir um lugar de honra na história do pensamento humano. Acima dessa relevância intrínseca, o Yoga é às vezes exposto de uma forma exagerada ou distorcida, que nem sempre coincide com a realidade. Por exemplo, quando se apresentam as técnicas yogikas como panacéia para curar todos os males do mundo moderno está faltando-se com a verdade ou, no mínimo, exagerando bastante.

Hoje em dia, chegamos a um ponto tal, que a distorção do conceito de Yoga é tão grande e visível quanto o próprio sucesso que ele está tendo. A situação do Yoga se complica ainda mais por conta da pressão pouco escrupulosa que o ‘mercado’ está exercendo sobre esse corpo de conhecimento milenar. Por conta dessa pressão, a palavra Yoga passa a significar coisas que não estavam nos planos do filósofo Patañjali e das infindáveis gerações de sábios que vieram depois dele.

Embora não seja bem compreendido, o fenômeno da prática yogika desperta muito interesse. Assim, vemos que proliferam produtos como livros e gravações com os temas Yoga para famílias, para executivos, para golfistas, para estressados e outros similares. Os autores de tais obras se dizem dispostos a ‘revelar todos os segredos desta ciência milenar’. Ora, bem sabemos que aquilo que é essencial à prática yogika não pode ser colocado na forma de um livro ou gravação de qualquer tipo.

A transmissão do Yoga é impossível sem uma exposição e demonstração filosófico-fisiológica direta. É preciso ouvir, ver, compreender, sentir, e depois, reproduzir na própria carne o ensinamento, sempre sob a supervisão e o acompanhamento de um mestre ou professor qualificado. Sem essa orientação, é sabido que o praticante fica exposto a vários perigos, ou ao simples fracasso.

A bem da verdade, o Yoga deveria ser tratado como o que ele é de fato: uma escola filosófica cujo objetivo final é a liberdade. Nesse sentido, o Yoga é digno herdeiro da espiritualidade indiana, fonte na qual bebeu e se inspirou, e da qual nunca se separou. Desta maneira, cabe lembrar que as técnicas do Yoga têm sido utilizadas por todas as formas da espiritualidade da Índia. Pronto! Agora o leitor amigo sabe a que nos referimos ao dizer Yoga.

 

E definir os praticantes…

Porém, corresponde ainda fazer uma descrição do praticante de Yoga da atualidade, que às vezes dista bastante do praticante interessado no tema da liberdade acima citado. Assim como não há unanimidade na hora de definir o Yoga, tampouco há homogeneidade no tipo de pessoas que o praticam, nem na comunidade de yogis como um todo. Olhando com atenção para a nação yogika, podemos distinguir, dentre nós, alguns tipos bem definidos, cujo perfil será traçado a seguir:

  1. o yoginasta cético,
  2. o cartesiano-místico,
  3. o moralista e
  4. o capitalista.

Esta lista, devo dizer, é propositalmente incompleta. Peço desculpas aqui pela simplificação. O leitor atento irá compreender mais adiante. Obrigado pela paciência.

 

1. O yoginasta cético.

O yoginasta é o tipo mais freqüente. Confundindo meios e fins, ele enxerga o Yoga como um método de saúde, bem-estar e combate ao estresse. Para ele, os objetivos do Yoga são o bem-estar e, eventalmente, colocar o tornozelo atrás do pescoço. Ele afirma que ‘Yoga é saúde e boa forma’. Esse tipo de yogi vê apenas o lado físico da prática. Mede a prática em função dos seus resultados materiais palpáveis. No entanto, olhando desde a perspectiva do Yoga como escola de vida, essa visão é totalmente reducionista e limitada.

O cético tende igualmente a enxergar a dimensão filosófica do Yoga como um desconfortável discurso moralista. Este yogi também afirma: ‘esqueçamos a filosofia e concentremo-nos nos benefícios palpáveis da prática. Essa tal de filosofia só atrapalha. Afinal de contas, Yoga é técnica’.

Esse tipo de visão pode dar lugar a atitudes de ambição, cinismo e manipulação. A atitude de restringir-se unicamente à experiência exterior traz como resultado a crença de que a repetição das técnicas pode levar o praticante para a meta. Eventualmente, essa atitude pode conduzir a um estado de decepção ou frustração com a própria prática. Se isso acontecer, geralmente a pessoa deixa o Yoga e vai buscar outra disciplina ou atividade. Atualmente, é possível perceber uma migração de alguns praticantes para o método Pilates.

 

O yoginasta nunca conseguirá ir muito além desses efeitos físicos da prática pelo simples motivo que, para ele, a prática está centrada na manutenção da boa forma. Cabe lembrar que somente conseguimos fruir os resultados do Yoga na medida daquilo que aportarmos a ele. Se nossa motivação foi errada, os resultados serão igualmente errados.

2. O cartesiano-místico.

O yogi cartesiano é o tipo de pessoa que declara: ‘os ásanas não são ginástica pois o Yoga inclui um ensinamento filosófico. Eu não pratico apenas exercícios físicos, pois a meta do Yoga é a iluminação. Sou um yogi; não um ginasta. O Yoga tem os ásanas para a saúde do corpo, a meditação para o equilíbrio da mente e a filosofia para a alcançar a iluminação’. Assim, este tipo de praticante tende a ver o Yoga como uma abordagem holística do ser humano, que abrange ‘corpo, mente e espírito’. Como o leitor bem sabe, a palavra holístico é muito usada no meio do Yoga.

Muito embora seja verdade que o objetivo específico da escola filosófica yogika seja o estado de união (com Brahman, o Ser Universal, no caso da visão não-dualista), percebe-se claramente na visão acima citada a dicotomia cartesiana, no qual a ‘parte da filosofia’ teria uma função meramente ideológica. Falta a assimilação. Provavelmente, se perguntarmos a este praticante como acontece essa integração corpo-mente-espírito, ouviremos uma resposta vaga ou pouco convincente. Os perigos, quando não há uma experiência real de união psicofísica, são o inchaço do ego (‘egotite’), e a tendência a fantasiar (vikalpa).

 

3. O moralista.

O terceiro tipo de praticante, o moralista, tem uma visão crítica do cartesiano. Ele afirma: ‘sejamos realistas e humildes. A união com o Divino está além das possibilidades de pessoas como nós. É preciso complementar a disciplina física com os preceitos éticos e deixar a iluminação para os renunciantes’.

Em alguns casos, o praticante moralista nem sequer considera que a prática de ásanas tenha algum valor. É o exemplo dos sectários, que repetem obsessivamente um mantra e se forçam a seguir os preceitos da conduta yogika como um rígido código. O perigo desta abordagem é que a pessoa acumule uma tremenda tensão dentro de si, pois seguir regras sem havê-las compreendido e integrado naturalmente, pode levar a terríveis distorções de conduta.

O triste caso dos padres pedófilos é um exemplo que, infelizmente, tem sua versão yogika na incompreensão do brahmacharya. Às vezes, este preceito de coerência relacional é apresentado como celibato puro e simples, e como condição indispensável para o sucesso na prática. Se a pessoa não está preparada para renunciar à própria sexualidade, é bem provável que a auto-repressão produza efeitos altamente indesejáveis. Pode igualmente acontecer que a vida da pessoa se torne uma mentira de cabo a rabo, como demonstra o exemplo daquele ‘mestre’ indiano que exigia a abstinência sexual dos seus alunos, mas engravidou uma das suas discípulas.

 

4. O capitalista.

Sendo sinceros, podemos reconhecer que existe uma tremenda dose de ciúmes, rivalidade, intrigas e competição no mundo do Yoga. Se há algo que diferencia este grupo humano dos demais grupos, esse algo não é o elevado dos nossos ideais, nem o irrepreensível da nossa conduta, mas o verniz ‘espiritual’ do nosso discurso. Existe uma ‘atitude capitalista’ da parte de muitos professores em relação ao ensino desta disciplina. Assim, testemunhamos que existe uma competição entre as escolas que, não raramente, privilegia o sucesso econômico (quantidade de alunos, lucro, mais-valia) sobre a transformação interior ou a compreensão da filosofia yogika por parte dos praticantes.

O foco de certos professores está mais no resultado econômico do que na transmissão do Yoga. Esta situação faz florescer tanto as virtudes como os vícios do capitalismo na nossa comunidade. Por um lado, é bom que muitas pessoas se beneficiem com a prática. Por outro, paradoxalmente, vemos o surgimento de uma geração de professores neuróticos pela competição e o sucesso financeiro, que vivem suas vidas muito longe do objetivo original do Yoga. Diante desta situação, alguns professores percebem a importância do código de conduta como uma força equilibrante que pode ajudar a manter uma convivência tranqüila consigo próprios e com os colegas. Não obstante, o conflito para integrar a filosofia, a ética e a prática de ásanas (e as demais técnicas), permanece vigente.

O praticante objetivo.

Em alguns casos, esses diferentes papéis se sobrepõem na mesma pessoa. Porém, em todos eles, temos o seguinte consenso: todos estes praticantes acham que a filosofia é algo que é acrescido ao ásana, como o queijo ralado se coloca sobre o espaguete. Diferentemente dessas opiniões, penso que a filosofia não deveria ser vista como algo externo à prática. Nesse sentido, diria que a filosofia é intrínseca ao ásana.

Enquanto a filosofia yogika não for vista em sua dimensão real e a experiência de praticar ásanas não estiver totalmente integrada com a conduta ética, o Yoga na vida real continuará sendo algo alheio à experiência do praticante. Para vencer esse obstáculo, é necessário ter uma integração entre conhecimento, prática e conduta.

Se o amigo leitor concordou com esta visão, então, deve concluir neste ponto que existe um outro grupo de praticantes: os objetivos. Se estas afirmações e as que vêm a seguir, fizerem sentido para si, então você é um praticante objetivo, que não busca no Yoga algo que o Yoga não pode dar e que estuda e aplica as técnicas concentrado em alcançar o estado de moksha, a liberdade, antes de tudo.

 

Ainda, faltou definir a filosofia…

Agora, cabe dar uma definição para a palavra filosofia, informação sem a qual não poderemos continuar. A palavra filosofia pode ter vários significados diferentes. Dos múltiplos significados que ela possui, interessa-nos apenas um: o que estabelece a relação entre visão e ação. Nesse sentido, filosofia é um tipo de pensamento reflexivo através do qual o humano procura compreender a si mesmo, bem como a realidade à sua volta. Essa reflexão é o que irá determinar a maneira de realizar ações específicas e medir as conseqüências éticas, políticas ou psicológicas que essas ações venham a ter.

A filosofia que o filósofo filosofa só se torna filosofia no ato de filosofar, assim como a linguagem musical adquire vida somente quando o músico toca seu instrumento e ‘faz’ a música. É seguindo essa lógica que podemos dizer que o yogi filosofa ao praticar ásana.

 

Filosofar ao ásanar?

Isso significa que o praticante, depois de ter adquirido um certo domínio corporal, começa a pensar na vida enquanto pratica? Significa que o yogi fica meio enfastiado enquanto passa de um ásana para o seguinte e permite que sua mente vagueie por assuntos ‘filosóficos’? O que torna o yogi um filósofo?

É bom lembrar que o yogi não filosofa praticando para matar o tempo (nem para manter a boa forma). O yogi filosofa na prática assim como qualquer ser humano naturalmente filosofa ao extasiar-se perante o nascer do sol, a imensidão do firmamento, ao testemunhar o nascimento de uma criança ou ao completar um processo de cura. A Shvetashvatara Upanishad, inicia belamente, colocando estas questões: ‘Qual é a nossa origem? De onde nascemos? Por que vivemos?’ Essas perguntas estabelecem o início de toda filosofia, de toda jornada pelo autoconhecimento.

Filosofar é um elemento fundamental da condição humana. Basicamente, filosofamos porque somos humanos. A filosofia é tão inerentemente humana que podemos dizer que não há humanidade sem filosofia. A filosofia é a essência à qual nos mantemos fiéis, mesmo se essa essência for ‘eu não gosto desse papo filosófico’. A respeito do filosofar, disse o grego Epicuro, na Carta sobre a Felicidade:

‘Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou, ou que já passou, a hora de ser feliz.

Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: quem está envelhecendo, sentir-se-á rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram. [A filosofia é igualmente útil] para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir. É necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la…’

Aqui, o sábio grego indica a felicidade como o objetivo supremo da existência humana. Em sânscrito, esse objetivo chama-se ananda, suprema plenitude ou felicidade. Negar esse objetivo é negar a própria condição humana. Epicuro nos mostra que esse estado conduz à ‘saúde do espírito’. Então, qual é a relação entre Yoga e filosofia? Já afirmamos no início que, para compreender a dimensão filosófica do ásana, precisamos olhar filosoficamente para o corpo. Apenas se o corpo for compreendido nessa perspectiva, poderemos perceber a verdadeira dimensão do ásana.

 

O corpo vivo.

Neste momento, amigo leitor, você está aqui, com esta revista em mãos. Como vivencia seu corpo agora, neste lugar? Olhando para o corpo, podemos perceber que não o vemos como se estivéssemos fora dele. Toda experiência corpórea é vivida desde dentro do corpo. Ou seja, vivemos encorpados. Filosoficamente falando, o corpo não é visto como um objeto, mas como o lugar no qual vivemos, como a nossa casa ou, para usar uma imagem cara à nossa tradição, como o Templo do Divino.

Na visão da filosofia não-dualista, o físico é a corporificação do Eu, e não pode existir sem ele. Uso a palavra Eu para traduzir atma, o princípio auto-organizador do Ser. O corpo humano não é apenas matéria inconsciente ou uma carcaça habitada pela mente, mas uma realidade vibratória animada pela consciência do Eu; o mesmo Eu que anima o universo. Por isso, deveríamos deixar de ver o corpo como algo diferente do ser ‘interior’. Pense no corpo como um conjunto vivo de átomos conscientes, construído como espelho do Eu.

Como Eu corporificado, esta estrutura física viva e consciente se relaciona com o mundo. Tocar é ser tocado. Abraçar outra pessoa é ser abraçado por ela. O abraço não é o contato físico de dois corpos, mas o encontro de dois seres vivos. E, quando dois seres se encontram, não há duas dualidades corpo-mente tocando-se. Se você vive como Eu no corpo vivo, não há dualidade corpo-mente. Não há separação. A separação surge quando olhamos para a vida desde a perspectiva da ignorância existencial, identificados com os desejos e aversões do nosso pequeno ego.

O corpo existe porque existe o Eu. Com já vimos, o corpo é o resultado da densificação do Eu. Neste ponto, surge o seguinte paradoxo: o corpo vivo possui sua própria inteligência. E essa inteligência corporal parece anteceder, por momentos, a análise que a mente ou o ego fazem a cada momento.

Por exemplo, você teve que parar antes para pensar na postura que seu corpo está assumindo agora? Isso simplesmente aconteceu, não é mesmo? Você chegou neste lugar e ficou nesta posição para ler. A existência nesta vida é, antes de tudo, assunto do corpo.

 

A inteligência do corpo na prática, no tempo e no espaço.

O Eu não está restrito nem é limitado por tempo ou espaço. O corpo, por seu lado, sim, tem limitações visíveis. Essas limitações são dinâmicas e têm seu próprio ritmo, pautado pelos processos de crescimento, aprendizado, fortalecimento, maturidade, doença, envelhecimento e morte física.

A prática de ásana enriquece a relação Eu-corpo no sentido que, ao ampliar e aprofundar a mobilidade física, caminha-se em direção à expansão da consciência. Assim, fica mais fácil compreender a si mesmo como o Eu que não se restringe à experiência corpórea apenas. Aumentar a mobilidade não é algo que apenas acontece no espaço físico; a expansão do corpo o próprio espaço físico, crescendo. A expansão que acontece ao praticar ásanas é uma extensão da própria mobilidade do corpo.

A filosofia do Yoga nos ensina que as experiências negativas ficam alojadas nos tecidos corporais e na mente subconsciente, não de maneira inerte, mas de forma dinâmica. O medo de repetir essas experiências restringe os movimentos físicos, respiratórios e energéticos, criando padrões de tensão crônica. A prática de ásana pode dissolver essas couraças e apagar o passado dos nossos ossos, músculos e nervos. Essa qualidade da prática cria uma energia nova, através da qual nos conectamos mais facilmente com a nossa essência.

Ao praticar ásanas, deixamos de lado todas as demais tarefas cotidianas. Paramos tudo o que estávamos fazendo, vamos para a sala e estendemos nosso tapete. A prática começa e termina sobre aquele retângulo de borracha. O movimento no espaço fica restrito ao lugar onde a prática acontece. Não há viagem, não há deslocamento físico.

No entanto, dentro desse espaço reduzido, movemos o corpo em todas as direções possíveis, observando conscientemente os padrões respiratórios e de mobilidade, e as eventuais dificuldades ou facilidades que o corpo apresenta. Observando esses padrões, identificamos possíveis bloqueios ou cicatrizes e reconhecemos os sinais que as experiências passadas deixaram impressas no corpo.

Respiramos através do fácil e do difícil e reconstruímos a visão de nós mesmos como entidade vivente, plena e simples, nascida por causa da presença do Eu, e que existe justamente pela presença daquilo que essencialmente somos. Desta forma, investigando conscientemente movimento, permanência e respiração, eliminamos todos os obstáculos que os hábitos inconscientes e as marcas do passado impõem à nossa espacialidade. A prática torna-se um momento para a reflexão sobre aquilo que somos. O corpo e a vitalidade se libertam das couraças.

Durante e após a prática, seu coração está em paz. Isso pode parecer banal para quem já pratica, mas, olhando de perto você verá que essa paz no coração muda a sua percepção do tempo. Se antes você estava irritado ou ansioso por chegar na sala e teve, por exemplo, que atravessar um engarrafamento, ao sair da prática a mesma situação se revela como algo mais fácil de se fazer. Assim, você se torna mais preparado para aceitar e acompanhar o fluxo dos acontecimentos com mais tranqüilidade.

A irritação no trânsito que às vezes sentimos antes da prática se manifesta, muitas vezes, como a vontade de que o tempo passe rapidamente, ou como uma espécie de ansiedade por deixar o presente para trás. Esse sentimento de frustração, que pode assumir várias formas (a tendência a projetar-se no futuro ou a viver no passado), nos impede de viver no agora. Nos rouba o sossego e, junto com ele, a felicidade que estamos buscando.

Ao eliminarmos essa ansiedade, nos tornamos aptos para viver nessa dimensão da temporalidade que é o presente infinito. Essa mudança na percepção do tempo nos possibilita compreender aquilo que as Upanishads chamam de imortalidade (amrtam). Obviamente, isso não significa que viveremos neste corpo físico para sempre.

Significa que nos tornamos conscientes da limitação espaço-temporal e de que o Eu que somos, não sofre com ela. Nos tornamos conscientes de que quem sofre não é o Eu, mas o ego. Portanto, aprendemos a não fugir mais do presente. Assim, a prática de ásana não apenas expande a nossa percepção da espacialidade, mas igualmente a nossa noção de temporalidade, nos dando uma vida de paz e tranqüilidade.

 

Corpo e existência.

O corpo vivo, usando sua inteligência, existe harmoniosamente no mundo. O corpo exerce sua inteligência antecedendo as manobras e fantasias do ego julgador. Praticar ásanas é, nesta perspectiva, harmonizar-se com o Eu, cultivando essa inteligência que é inata ao corpo. Resumindo, podemos dizer que existe uma conexão direta entre o corpo e o Eu, que passa longe das coisas da mente ou do ego. Mente e ego também têm suas conexões com o corpo, mas elas são de outro tipo.

Assim, praticar ásanas é exercer corporalmente a nossa existência como seres humanos. Isso significa trabalhar conscientemente sobre nossos bloqueios e condicionamentos. Assim, a prática de ásana, bem entendida, facilita o caminho para a liberdade, no sentido que ‘limpa’ o corpo da identificação com as preferências e aversões do ego.

O resultado da prática correta de ásana é uma abertura do corpo físico na qual aprendemos a escutar o Eu e na qual é possível refletir sobre o ensinamento daquilo que já é conhecido: para além dos gostos e desgostos do ego, para além das dúvidas da mente, você é o Eu real, que se manifesta como uma pessoa simples e tranqüila e que é capaz de viver no tempo presente, integrando passado e futuro, e apreciando intensamente o fato de estar vivo.

O estado de Yoga consiste apenas em ser a pessoa que você é. Ao nascer, você recebeu de presente este corpo, com todas suas ferramentas: mente, ego e inteligência. Como pessoa, você é consciente de todos seus sentimentos, cognições e lembranças. Para concluir, gostaria de citar um dos mais belos ensinamentos do meu mestre, Swami Dayananda. Ele ensina que, mantendo-se nesse estado de Yoga,

‘você reduz todas as situações a simples fatos. Quando você aceita as situações, elas se tornam simples fatos para você. Quando rejeita as situações, você se torna uma personalidade. O fato é que você é uma pessoa com um corpo, sentidos, uma mente e fora, como objeto de seus sentidos, está o mundo. Quando você apenas vê fatos, você é uma pessoa que não exige nem necessita de coisa alguma. Quando você é uma pessoa que exige ou necessita de alguma coisa, nesse momento está interagindo com o mundo. Quando apenas aprecia o mundo, você é somente você mesmo, e o mundo é como ele é’.

Essa persona yogika à qual Swamiji se refere, é alguém essencialmente humilde. A palavra humilde tem um significado muito lindo: deriva do latim humus, que significa chão, terra. Ser humilde, no sentido original da palavra é perceber-se conectado com a terra. É sentir que somente conseguiremos manter os pés no chão, no mundo real, quando deixarmos nosso orgulho e a identificação com as vontades do ego para trás. Nesse sentido, os ásanas podem ajudar, desde que praticados com a atitude adequada. Boas práticas e namaste!

Texto publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal. Visite o website da revista clicando aqui: www.eyoga.com.br.

Website | + posts

Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
Biografia completa | Artigos

suryabhedana

Sūryabhedana: a Respiração Solar

Pedro Kupfer em Prāṇāyāma, Pratique
  ·   1 minutos de leitura

O que traz paz ao dia-a-dia?

Pedro Kupfer em Pratique, Yoga na Vida
  ·   2 minutos de leitura

5 respostas para “Filosofar o ásana?”

  1. Parabéns pelo artigo, bastante exato nas descrições dos tipos psicológicos que se envovem com a prática do Yoga. Acho que essa ideia de uma filosofia posta sobre a prática como uma justificativa racional de certos exercícios físicos tem a ver com uma certa leitura moderna da filosofia.
    Achei muito legal você ter citado o Epicuro porque acredito que ele está situado em uma posição anterior a virada metafísica que deu origem a esse pensamento moderno. Talvez a questão não esteja em uma diferença entre a “filosofia oriental” e a “filosofia ocidental”, mas sim entre uma filosofia moderna, que põe a metafísca como sendo o ponto principal (dai a ênfase na pura especulação racional) e uma filosofia antiga, que entende que a metafísica só faz sentido quando misturada com a ética.
    Um grande abraço e mais uma vez parabéns. Que a paz te acompanhe!

  2. Yogi é , no meu sentir; apenas um humilde admirador do universo , do universo fora e dentro de nós!

    ?De Brahman até a minúscula erva , a criação ( Srsti) existe para beneficio do espírito, até que ele desabroche no conhecimento Supremo?.; Sankhya Sutra, III, 47.

    Seja qual for a forma ou a direção que escolheu para caminhar ; mais cedo ou mais tarde , todos nos encontraremos no simples Om!

    OM ITI IDAM SARVAM!

  3. Belo texto Pedro. Ele suscita algumas questões pertinentes à prática de yoga na atualidade. Porém, achei o texto um pouco radical ao taxar e nomear tipos de pessoas (céticos, moralistas objetivos). Acredito que cada ser humano é único e deve ser respeitado como tal. Talvez os seres iluminados que experienciaram o Eu, a liberdade ou qualquer palavra que se encaixe no estado absoluto, podem Saber e estar completamente livre de dúvidas. É fundamental estabelecer o que é o Yoga, mas não podemos estabelecer o que é a experiência de cada um, pois estes estão caminhando de alguma forma. Dizer:”O yoginasta nunca conseguirá ir muito além desses efeitos físicos da prática pelo simples motivo que, para ele, a prática está centrada na manutenção da boa forma”, é um pouco radical e de difícil entendimento, pois muitos começam céticos ou mesmo entendendo yoga como ginástica, e depois avançam para “algo mais profundo” com o decorrer da prática e de sua experiencia pessoal.
    Desculpe-me por alguma coisa.
    grande abraço.
    João.

  4. Yoga: filosofia e corpo. Quando se estuda filosofia, na maneira ocidental, normalmente se vê os caras falando de essência e aparência, de epistemologia, ou, o estudo sobre o conhecimento, ou de ontologia, ou o estudo sobre o ser. Depois existe uma discussão sobre a progressão, o progresso, se há um sequenciamento progressivo na história do pensamento, depois vem alguns mais inteligentes e menos megalomaníacos e dizem que a história é descontínua. Afinal de contas o que significa para a história da razão Auschwitz? Toda discussão filosófica me refiro ainda ao Ocidente se baseia na diferença entre o sensível e o inteligível, esse último ganhou um privilégio imenso assim que ela começou. Por que? Porque Platão assim estabeleceu; começa então o desvalor do corpo: do tato, da visão, do cheirar, do ouvir, do sentir em geral, e tudo se voltou ao pensar. E dividiu o mundo em dois: um mundo aparente e um mundo real. Uma pena que a divisão, essa separação não ficou meramente convencional, e a parvoíce disso se alimenta. O cristianismo assim o imita e tudo o que se refere ao corpo é sujo, é imoral, é pecado, é maldito, essa história a gente já sabe. Até porque há entre os hindus aqueles que renegam o corpo também, e o vêem como um amontoado de carne, sangue e outras gosmas. Não ocasionalmente seria difícil perceber o que isso acarretou, e entender como sofremos com a repressão e não educação dos instintos e por que de tanto apego à memória, poderíamos entender aqui, à mente.
    E desprezando o corpo, passamos a história sem nos compreender de verdade. Do silogismo ?o homem é o animal racional?, só enaltecemos ?o homem é racional?. Isso pra falar de filosofia! (Sem falar em psicologia ou sociologia). E não são poucas as doutrinas que disseminam essa desatenção à existência do e no corpo. Daí a obesidade, a anorexia, os maníacos de todo tipo. Portanto, não se trata apenas de saúde, de ventura, nem de vaidade, mas de existência. O corpo no sentido de sua existência. O problema da palavrinha eu, e da identificação total desse eu com o pensamento, o penso logo existo cartesiano, ou mesmo o ?eu sou? cartesiano, é um engano, um distúrbio da realidade! Ironicamente apesar de suas meditações, puramente especulativas e teóricas. Interessante seria pensar a gramática sem essa palavrinha!
    A palavra ?Philosophia? é formada pelas palavrinhas gregas philos, que vem de philia e quer dizer amigo, amizade e pela palavrinha sophos, que quer dizer sabedoria, portanto o filósofo é o amigo da sabedoria (ver Colli, O Nascimento da Filosofia, ed. 70), não mais o sábio. Nesse sentido a filosofia ( a grega, a ocidental) é a razão sobrepujando o mito, a poesia, a phisys, considerando tudo isso como irracional. Nesse sentido também é que o Ocidente não considera que Oriente tenha filosofia, e gostaria muito, muito de arrancar suas raízes daí, e se arvorar altivo de toda originalidade do conhecimento. Pois bem, o Oriente tem e segue com a grandeza da SABEDORIA, QUE É JUSTAMENTE COMO VOCÊ FALOU: VISÃO PARA A AÇÃO. E então toda reverência lhe seja dada. Não restrita apenas à ineficaz discussão dialógica. Teríamos que perceber que o ocidente se destradicionalizou, teríamos que buscar entender esse enorme problema, que tem a ver com a destruição do mito pela razão, uma perda de base comum, portanto entender porque tanta desorientação, tanta dissipação entre o sentir e o pensar. Talvez um caminho seja perceber que o pensamento não é todo lógico: que é intuitivo, fantasioso, e que a razão é um instrumento ao nosso favor. Por isso devemos nós ocidentais ter cuidado, zelo com essa ?sabedoria?, e não apenas filosofia, apesar de toda paixão à ela: ?Examinando-se todas as acepções de um termo sânscrito qualquer, pode-se observar o pensamento indiano em funcionamento como se ele fosse visto por dentro. Essa técnica corrige os inevitáveis erros de interpretação que surgem, mesmo nas melhores traduções, resultantes da enorme gama de associações diferentes evocadas pelos termos europeus. Na verdade, não temos equivalentes verbais precisos para traduzir o sânscrito, mas apenas aproximações enganosas nas quais repercutem associações ocidentais, que são necessariamente diferentes daquelas do universo indiano. Este fato tem levado o Ocidente a todo tipo de falsas deduções sobre a natureza, os meios e os propósitos do pensamento oriental. Mesmo o intérprete mais fiel encontrar-se-á divulgando dados errôneos simplesmente porque suas palavras, uma vez pronunciadas, caem inexoravelmente no domínio do contexto europeu. Apenas consultando continuamente o dicionário sânscrito é que se começa a perceber a talagarça onde se inserem as frases que, por séculos, serviram de veículo ao pensamento vivo da Índia.? (Zimmer. Filosofias da índia, p. 43. Ed. Palas Athenas) (Grifado por mim).

    Não sei se a minha pequena cultura em filosofia me levou a tomar a sério a cultura yoguica e a sabedoria oriental, mais especificamente a me tornar adepta à FILOSOFIA do Yoga, sei que me vejo entre essas leituras e estudos, e posso dizer que há muitos obstáculos a remover.
    Porém, realmente há inúmeros perigos nesse caminho: livros ruins, charlatões, misticismo exacerbado. (O cartesiano-místico, muito engraçado! Senão trágico!).
    Mas descobrir que de algum modo se pode sentir paz e que é possível ?fazer bem? alguma coisa, talvez entender pessoalmente, quero dizer, não teoricamente, não abstratamente, o que são virtudes só consegui e consigo através dessa união, da busca dessa união que é Yoga.
    ?Eu não sou ego nem razão.
    Nem mente nem pensamento.
    Nem a palavra que se ouve ou se pronuncia.
    Nem visão nem perfume.
    Nem na luz nem no vento estou,
    Nem da terra nem no céu. Eu sou Siva.
    Em forma de consciência e bem-aventurança,
    eu sou Siva.? (Atma Satkam. Visões do Yoga. Trad. Pedro Kupfer)

    Por fim, agradeço afetuosamente sua disposição por nos fazer entender da melhor maneira essa sabedoria.

    Shanti Om,
    Namastê.

  5. Mais uma vez , meu querido e grande professor, obrigado pelas palavras iluminadoras. É tudo nosso! Namaste!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *