Para um estudo profundo e uma compreensão clara do Yoga de Patañjali é essencial conhecer pelo menos alguns elementos teóricos e explicações filosóficas do sistema Samkhya [1]. Os conteúdos destas duas escolas são de tal forma semelhantes, que a maior parte das afirmações para um são também válidas para o outro. Contudo, existem duas diferenças essenciais: enquanto o Samkhya é ateu, o Yoga é teísta, já que postula a existência de um ser divino, um “Purusha especial” [2], chamado Íshvara [3]; enquanto que para o Samkhya a única forma de salvação é através do conhecimento metafísico, o Yoga concede às técnicas de meditação uma importância considerável.
Purusha e Prakriti
No Samkhya, a realidade é percebida como a combinação entre duas entidades ou pólos distintos: o ser puro (purusha) e a substância primordial do universo (prakriti). Como resultado dessa interacção, surge a evolução (parináma) de todo o universo material. No Samkhya Káríká [4], Íshvara Krishna ensina-nos que ‘o ser puro é aquele que vê (sákshi), está isolado (kaivalyam), é indiferente, simples espectador inactivo.’ Por outras palavras, purusha é a consciência testemunha, eterna e silenciosa de tudo o que foi, é e será. A prakriti, a natureza, também é real e eterna como o purusha, mas ao contrário do espírito, é dinâmica e criativa.
Quando seus componentes primários (gunas) se manifestam simultaneamente mas em proporções desiguais, a prakriti sai do seu estado inicial de equilíbrio perfeito (alinga, avyakta) e assume especificações condicionadas. Por essa razão podemos dizer que o processo de evolução é conduzido pelos gunas.
Os gunas
Os gunas [5] são três: sattva (harmonia, equilíbrio), rajas (acção, movimento) e tamas (inércia, inactividade). Vijñanabhikshu [6], um dos maiores comentadores do Yoga Sutra, faz-nos uma analogia entre os gunas e as fibras de uma corda: ‘assim como as fibras são inerentes na produção de uma corda, também os gunas são o fundamento e impregnam a prakriti.’
Chitta
Os primeiros e mais subtis elementos ou fenómenos que surgem da prakriti são, por esta ordem: a inteligência (buddhi), o ego (ahamkara) e a mente (manas). Este conjunto constitui o âmago do indivíduo, as três faculdades cognitivas combinadas, referido por Patañjali como consciência distintiva, a mente finita, em sâncrito chitta. Buddhi como a parte mais subtil e transparente da consciência, produz a intuição, o julgamento, o discernimento, o conhecimento, a vontade e o desapego. É também o elemento que faz a ligação entre Purusha e o mundo exterior. Esta função de buddhi será objecto de detalhe mais à frente. Ahamkara produz o sentido de individualização, o que faz o ‘eu’ e o que introduz a distinção entre sujeito e objecto. Manas permite-nos pensar, sentir, desejar e governar os sentidos.
Os gunas e a produção de vrittis
Os gunas são interínsecos à Prakriti e impulsionam a evolução de chitta e de toda a realidade manifesta a partir da prakriti. Como já foi referido, é a inteligência (buddhi), na sua forma de pura “luminosidade” (sattva) que tem a qualidade específica de reflectir o espírito cósmico. A compreensão do mundo exterior só é possível graças a essa reflexão do purusha na inteligência. Mas antes é necessário eliminar a influência de rajas e tamas na produção das modificações (vrittis) na consciência (chitta) e maximizar a presença de sattva, o mais puro dos gunas. Deste modo, a consciência desenvolve o conhecimento discriminativo (viveka khyateh) [7] e o indivíduo consegue ter uma imagem verdadeira de si próprio.
Percebendo melhor a relação Purusha – buddhi
Acerca da relação existente entre o ser e a inteligência, Patañjali (YS. I:41) ensina-nos que ‘quando os vrittis são enfraquecidos, a consciência (chitta) aparenta tomar a forma do objecto da meditação – seja ele o conhecedor (grahita), o processo de cognição (grahana) ou o objecto conhecido (grahya) – como uma jóia transparente. Esta identificação é chamada samapatti ou absorção.’
Por outras palavras, assim como uma flor é reflectida num cristal, buddhi reflecte Purusha. Como nos esclarece Mircéa Eliade, ‘só um ignorante pode atribuir ao cristal as qualidades da flor (forma, dimensões e cores) nele reflectidas, porque quando ela se move, a sua imagem move-se no cristal, embora este permaneça imóvel e inalterado. É uma ilusão acreditar que o espírito é dinâmico porque a experiência mental o é. Na realidade, trata-se apenas de uma relação ilusória (upadhi) que se deve a uma correspondência simpática entre Purusha e buddhi.’ [8]
Bibliografia
– Georg Feuerstein, A Tradição do Yoga, Pensamento.
– Mircéa Eliade, Patañjali e o Yoga, Relógio D’Água.
– Namarupa, Categories of Indian Thought, Spring 2003.
– Pedro Kupfer, Yoga Prático, Dharma.
– Rama Prasada, Patañjali’s Yoga Sutras, Munshiram Manoharlal Publishers Pvt. Ltd.
Notas
1 – Literalmente, significa ‘enumeração’. Deriva da palavra de samkhyá, ‘número’. Tal como o Yoga, é uma das seis escolas clássicas de pensamento do hinduísmo, que trata da classificação dos vários princípios (tattva) ou categorias da existência.
2 – ver YS. I. 24
3 – Nas interpretações tardias do Samkhya e do Yoga Sutra, este modelo arquétipo do praticante de Yoga, adquire o estatuto de deus supremo. Na metafísica tântrica, Ishvara aparece identificado com o bindu, o ponto a partir do qual se expande o Universo.
4 – Texto fundamental do Samkhya Clássico. Ishvara Krishna é o seu autor.
5 – Para além do sistema Samkhya, podemos também encontrar inúmeras referências sobre os gunas e suas características, por exemplo, no Bhagavad Gítá, nomeadamente nos capítulos XIV, XVII e XVIII.
6 – Vijñana Bhikshu é um dos comentadores do Yoga Sutra de Patañjali, do século XVI d.C., autor do Yoga Várttika (‘Tratado de Yoga’) e do Yoga Sara Samgraha (‘Compêndio da Essência do Yoga’), que é uma síntese do seu volumoso tratado.
7 – ‘Com o desaparecimento [destruição] das impurezas através da prática dos membros do Yoga, [brilha] o fulgor da sabedoria (jñana), [que aumenta até chegar] à visão do discernimento.’ YS. II. 28
8 – Patañjali e o Yoga, p. 42.
Obrigado pelo ótimo texto.Claro e de fácil entendimento.