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Karma é fatalidade?

Na tradição shivaísta, Garuda, o deus-águia, aparece como guardião do deus Shiva. No Shiva Purana conta que, uma vez, Garuda, montava guarda no alto do Monte Kailash

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Na tradição shivaísta, Garuda, o deus-águia, aparece como guardião do deus Shiva. Um antigo texto chamado Shiva Purana conta que, uma vez, Garuda, montando guarda no alto do Monte Kailash, morada de Shiva, reparou num pequeno pássaro que cantava entre as rochas. O poderoso deus-águia ficou maravilhado pelo contraste entre a majestade da vasta cordilheira do Himalaia e a delicadeza dessa pequena criatura. Disse para si mesmo: ‘Que maravilhosa é natureza! A mesma Consciência que criou as imensas montanhas, fez igualmente este pequeno pássaro, e ambos são igualmente admiráveis’.

Nesse mesmo momento, Yama, o Senhor da Morte, apareceu na distância, cavalgando seu búfalo negro. Garuda reparou que o deus da Morte, ao se aproximar, olhou com curiosidade para o pequeno pássaro ao passar, mas continuou andando, pois ia ao encontro de Shiva. Considerando aquele olhar de Yama como um presságio da morte para o pequeno pássaro, Garuda, cujo coração é cheio de compaixão, decidiu salvá-lo. Pegando com delicadeza o frágil pássaro entre suas poderosas garras, voou para muito longe, até a beira do rio Ganges. Lá, encontrou um lugar que lhe pareceu suficientemente seguro, com abundante água, vegetação e alimento. Deixando o pássaro sobre uma rocha, retornou para seu posto no alto do Monte Kailash.

Quando o Senhor da Morte estava retornando do seu encontro com Shiva, Garuda perguntou-lhe: ‘Yama, quando você chegou, observei que se deteve para observar aquele pequeno pássaro. Posso saber porque?’ Yama respondeu: ‘Quando olhei para o pássaro, soube que ele iria imediatamente encontrar a morte nas mandíbulas de uma serpente píton. Como esse tipo de serpente não vive aqui, no alto do Monte Kailash, achei isso muito curioso’. Novamente, Garuda maravilhou-se, desta vez, pela inevitabilidade do karma.

Definindo o karma.

Lendo esta historinha, podemos pensar que karma seja uma espécie de destino inevitável. No entanto, a idéia de karma como destino ou fatalidade está longe do que esta palavra sânscrita realmente significa. Karma quer dizer ‘ação’, e define não apenas as coisas que fizemos e fazemos, mas igualmente os resultados que derivam dessas ações. Esse termo é usado para definir o princípio de causa e efeito que rege todas as relações no universo. Esse conceito abrange absolutamente todos os feitos dos homens e suas conseqüências ao longo do tempo, em nível coletivo e individual.

A doutrina do karma é uma das mais profundas contribuições do pensamento oriental à humanidade nos campos da metafísica, a ética, a espiritualidade e a visão da relação entre o homem e o universo. Podemos definir o karma como uma lei de responsabilidade pessoal, da qual ninguém pode fugir, e que funciona por si mesma. A lei do karma nos ensina que qualquer ação que façamos inevitavelmente produzirá frutos. Dependendo da natureza das nossas ações, esses frutos serão bons ou não.

A intenção daquele que age determina o caráter moral da ação e suas conseqüências. Por exemplo, ferir alguém sem intenção não gera uma retribuição negativa no futuro. A visão que surge da lei do karma está baseada na razão e não na fé cega: ela fornece uma explanação razoável e racional para o sofrimento humano, já que se considera que o karma opera autonomamente, guidado pelo livre arbítrio de cada um e que, conseqüentemente, aquilo que somos hoje é o resultado do que fizemos ontem. Portanto, não há fatalidade ou destino marcado.

Podemos distinguir as seguintes regras na lei do karma:

1. Atos bons produzem frutos bons. Atos errôneos produzem resultados errôneos.

2. Boas ações conduzem à felicidade. Ações contra o bem comum levam ao sofrimento.

3. Quem age bem, torna-se bom. Quem age equivocadamente, sofre e faz sofrer.

4. Os resultados das ações são limitados. Portanto, os karmas se esgotam, cedo ou tarde.

5. Cada um constrói sua própria vida e seu próprio destino.

6. Aquele que realiza uma ação colhe inevitavelmente seus resultados.

Liberdade, ação e conseqüência.

A lei do karma nos ensina que somos dotados de livre arbítrio e que cada um é responsável por seus próprios atos, e arquiteto do seu próprio destino. Precisamos aprender a usar a nossa liberdade em consonância com o bem comum, de maneira que possamos evitar machucar, ferir ou fazer sofrer os demais seres vivos: homens, animais e plantas.

Um antigo texto védico chamado Shatapatha Brahmana (VI:2:2:27), afirma que ‘todos os homens nascem neste mundo moldados por si mesmos’. Isso significa que cada um traça seu próprio destino. As ações passadas podem condicionar o presente, mas nunca determinar o futuro de maneira fixa ou inamovível.

Aceitar com gratidão os resultados das nossas ações, quaisquer eles forem, é a essência do Karma Yoga, o Yoga da ação consciente. Podemos escolher o que fazemos, mas não temos escolha sobre os resultados das nossas ações, pois elas já aconteceram. Isso é regulado pela lei do karma. Não existem nem julgamento, nem juiz. Somente leis imutáveis.

Podemos usar nossa liberdade para definir o que fazemos, mas não temos escolha nem liberdade em relação aos resultados das nossas ações. Porém, o grande problema é que não sabemos disso, e ficamos o tempo todo tentando manipular os resultados. Ficamos constantemente tentando mudar aquilo que não pode ser mudado. Isso é uma fonte de infelicidade e sofrimento contínuo e nasce, em última análise, da incapacidade de perceber que existe uma limitação em nossos poderes, e uma diferença entre o que pode e o que não pode ser mudado.

Um mundo para chamar de seu?

É preciso compreender que não estamos no controle de nada. Nós não acrescentamos nem um só grão de areia às praias, não contribuímos com uma só gota de água à imensidade dos oceanos, nem sequer construímos nosso próprio corpo. Essas realidades foram recebidas por nós, seres vivos, junto com o presente da vida. Constatando isto, compreendemos que:

1. não controlamos a natureza,

2. não controlamos o que os demais fazem, e

3. não controlamos nossas próprias emoções.

Podemos aprender, sim, a administrar as emoções, mas não as controlamos. Não podemos nadar contra a corrente. Precisamos aprender a relaxar, respirar e ir com o fluxo. O mesmo vale em relação à maneira mais saudável de lidar com nossas emoções. Compreendendo isto, e honrando a fonte do oceano das emoções, poderemos eliminar as resistências internas e fontes de conflito, compreendendo que há coisas que precisamos aceitar como são por não podermos mudá-las (os resultados das ações), e que há coisas que podemos sim modificar (a escolha das ações que estamos fazendo agora).

Quando compreendemos que as leis da natureza regulam os resultados das ações, relaxamos, e vemos tudo como expressão da graça da criação. Assim aprendemos a aceitar em paz e com gratidão o que estiver fluindo em nossa direção, relaxamos e aceitamos tudo o que vem e vai, tudo o que ganhamos ou perdemos. Nunca cresceremos interiormente se não soubermos aceitar, se não pararmos de nos defender ou atacar, se não pararmos de ver o mundo como um lugar hostil.

Aceitação é a chave.

A atitude de aceitação grata é o que abre o coração. Deveríamos aprender a aceitar, e esquecer crenças e padrões mecânicos como ‘eu deveria ter feito isto’, ‘estou arrependido’, etc. Ao invés disso, poderíamos pensar ‘isto é o que eu fiz ou disse, e foi o melhor que podia fazer ou dizer, dadas as circunstâncias’, ou ‘sou totalmente perfeito dentro da minha imperfeição’.

Ao mesmo tempo, precisamos ter certeza de não estarmos fugindo às nossas responsabilidades, nem escapando das funções que devemos desempenhar, pois tanto as responsabilidades quanto as funções nos ajudam a crescer. Somente poderemos ser felizes ao aceitarmos as coisas como são, e aceitarmos a realidade como ela é. Assim, poderemos viver uma vida feliz e livre de conflitos, agindo de modo consciente, em harmonia com os valores universais e compreendendo as leis naturais, que regem toda a existência. Namaste!

Publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal: www.eyoga.com.br

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

2 respostas para “Karma é fatalidade?”

  1. Pedro, é sempre muito bom ler seus textos. Obrigada por nos ajudar a entender tamanho conhecimento! Grande beijo. Namaste!

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