Ética, Pratique

Gentileza gera anugraha

O Profeta Gentileza estava em plena atividade quando eu morava em Saquarema, no final dos anos 1980 e início da década de 1990. Nascido José Datrino, este paulista de Cafelândia teve uma epifania que o levou a ajudar vítimas de um incêndio na cidade de Niterói e, depois disso, dedicou o resto da sua vida a confortar os demais com palavras e ações amorosas.

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O Profeta Gentileza estava em plena atividade quando eu morava em Saquarema, no final dos anos 1980 e início da década de 1990. Nascido José Datrino, este paulista de Cafelândia teve uma epifania que o levou a ajudar vítimas de um incêndio na cidade de Niterói e, depois disso, dedicou o resto da sua vida a confortar os demais com palavras e ações amorosas. Um verdadeiro exemplo de dharma em movimento.

Diz a Wikipédia sobre esta grande alma: “Desde sua infância José Datrino era possuidor de um comportamento atípico. Por volta dos treze anos de idade, passou a ter premonições sobre sua missão na terra, na qual acreditava que um dia, depois de constituir família, filhos e bens, deixaria tudo em prol de sua missão. Este comportamento causou preocupação em seus pais, que chegaram a suspeitar que o filho sofria de algum tipo de loucura, chegando a buscar ajuda em curandeiros espirituais.”

Se o Profeta Gentileza tivesse nascido na Índia, certamente seria considerado um sábio e santo, e jamais seus pais teriam pensado que ele era louco. Quando eu chegava de ônibus na rodoviária do Rio de Janeiro, via os esplendorosos murais que ele pintava ao longo do Viaduto do Cajú e me perguntava o que isso significaria, e quem teria deixado essas mensagens.

O adágio que mais se repetia naquelas inscrições, recentemente restauradas, era “Gentileza gera Gentileza. Amor”. Vim saber dele muito tempo depos, quando já havia falecido. Porém, o legado dele, a importância de tratar os demais com consideração e respeito, continua.

Quando pensamos em emoções, atitudes ou virtudes, e a maneira em que elas são vividas e sentidas nas diversas culturas, reparamos que elas podem ter distintas nuanças, como as das cores usadas por diferentes pintores. De cada paleta surgem diferentes universos de cor, que são similares entre si e, no entanto, absolutamente únicos. Assim, não há uma tradução direta e exata com uma única palavra para designar esse tipo de emoção ou atitude, de cultura para cultura.

Há duas palavras para dizer gentileza em sânscrito, todas ligadas à vida de Yoga: prasada e anugraha. Prasada é o termo mais freqüente usado na língua sânscrita para denotar graça ou gentileza. Essa palavra deriva da raiz sad, que significa “estabelecer-se” ou “sentar”.

Prasada tem dois sentidos: por um lado, designa qualidades como gentileza, serenidade e bom-humor enquanto que, por outro, ainda significa calma, pureza e clareza. Se este termo está ligado sempre as manifestações mais harmoniosas da divindade, é por que a gentileza, a graça e as demais qualidades são de fato divinas.

A segunda maneira de dizer gentileza é anugraha. O Bhagavata Purana usa repetidas vezes o termo anugraha como expressão da compaixão de Ishvara por todas as criaturas. Adi Shankaracharya, ao longo de toda sua obra, igualmente menciona anugraha como a graça que possibilita a libertação, a saída do samsara, o ciclo de nascimentos e mortes.

O oposto de anugrahanigraha, que pode ser compreendido como obstrução para a liberdade, ou ficar preso aos condicionamentos. Seja qual for a palavra que usarmos em sânscrito para dizer gentileza, essa gentileza tem duas dimensões: a divina em relação ao humano, e a da convivência entre os humanos.

A gentileza, seja como prasada, seja como anugraha, sempre aparece nos textos de Yoga ligada ao estado de graça produzido pela contemplação, o êxtase ou o arrebato devocional. Gentileza é aquilo que naturalmente surge quando a pessoa amadurece emocionalmente ou se aproxima desse estado de consciência que é moksha, a liberdade. Como todas as demais virtudes, a gentileza é um efeito colateral da maturidade emocional.

Nesse sentido, creio que a nossa sociedade poderia ser mais feliz se descobrisse o valor da gentileza. Para isso, como ensinou o Profeta Gentileza, todos nós devemos fazer a nossa parte no sentido de tornar o mundo um lugar mais agradável.

Assim, podemos pensar em nos colocar na pele dos demais e trabalhar pequenas atitudes, como ceder a passagem no trânsito, não querer sempre chegar em primeiro lugar, ajudar desinteressadamente os necessitados, deixar os outros vencerem de vez em quando, e não sermos tão duros com nós mesmos. Namaste!

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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12 respostas para “Gentileza gera anugraha”

  1. Hesitei antes de escrever isso, mas é que o Profeta Gentileza não era bem assim! E é justamente a comparação com os santos da Índia que sempre me fez ter medo dele! Nasci em Tunis e cresci na Índia, habituei-me, desde cedo, aos sadhus que passavam em frente de casa. Alguns muito sérios, outros muito risonhos, alguns legítimos buscadores, outros charlatães, de vez em quando um que exalava santidade! Depois de algum tempo é muito fácil discerní-los.
    Havia coerência tanto entre os santos, quanto entre os mais óbvios vigaristas! O Gentileza não tinha coerência! O homem era louco! Começava falando lentamente e, de repente, sem transição de sintaxe, começava a berrar, alucinado! Nunca percebi nele nem equilíbrio, nem discernimento, nem verdadeira nobreza de visão. Suas palavras adocicadas lembram-me esses pastores evangélicos que citam “amai o pecador, mas odiai o pecado”, somente para justificar seus próprios preconceitos!
    Pedro, o Gentileza era apegado a coisas irrelevantes e códigos de conduta ultrapassados, cujo descarte um homem verdadeiramente espiritualizado pode até lamentar, mas do qual nunca faria o centro da sua mensagem. Gentileza bradava violentamente contra mulheres que usavam calças compridas, ou que trabalhavam fora, ou que usavam maquiagem! Essas últimas ele chamava de “prostitutas da Babilônia” e ele costumava humilhar adolescentes abraçadas aos seus namorados e efeminados que passassem por ele!
    A imagem que se pinta dele hoje é muito bonitinha e, claro, pregar o amor é sempre louvável. Mas eu tenho medo dessa gente que vende uma imagem de cordeirinho, mas alimenta paixões corrosivas em relação aos seus semelhantes!
    Swami Chinmayananda, meu primeiro professor de Vedanta, era um santo de verdade! Falava enérgicamente, com convicção, mas nunca o vi cobrar de ninguém uma determinada conduta. Com ele eu aprendi que o verdadeiro homem de Deus tem um comportamento que espelha a nobreza do que diz crer, mas não cobra de ninguém uma perfeição impossível para um coração humano. E que sua virtude mais óbvia é uma generosa aceitação do outro. Uma sincera tolerância.
    Paz a todos!

    1. Interessante!! Acredito que ele passava a mensagem,mas não conseguia viver…

  2. Com o devido respeito as obras do profeta Gentileza, nem sempre êle foi assim tão gentil. O ano devia ser 1970 ou 71 e ao deixar minha mãe na praça XV p/ ir a Niteroi, vejo com o carro ainda parado o profeta sacudir minha mãe pelo braço esbravejando contra ela.
    Salto do carro correndo p/ apartar e acudir minha mãe que aquela altura gritava Socorro. Ao chegar já se afastava o profeta, e ao perguntar a minha mãe o que acontecia disse ela que ele começou a esbravejar por que ela estava com os braços nus, vestia ela então um vestido leve p/ o calor carioca que era de alça comum, visto que ia trabalhar, nada excepcional nem decotado.
    Eu um meninote de 14 anos, indignado tentei ir atrás do maluco, no que fui impedido por minha mãe. O fato foi motivo de risadas na familia durante muito tempo, e nos fazia lembrar sempre o ditado ¨faça o que digo mas não faça o que faço¨.

  3. Ainda hoje falava sobre o Profeta Gentileza em uma conversa com amigos. Vejo nele um líder cheio de amorosidade e sabedoria. A profundidade de suas convicções era tanta que podemos dizer que também foi um grande libertário. Ensinava-nos a demonstrar gratidão sem que para isso demonstrássemos servidão.
    Para ele, dizer muito obrigado ou por favor deveria ser substituído por muito grato e por gentileza, pois ser grato é diferente de ser agradecido e pedir uma gentileza é diferente de pedir um favor. A ideia de estar em divida com alguém fica implicita na maneira como o ser se expressa e portanto, a gratuidade dos gestos de solidariedade, amorosidade e generosidade diminuídos.
    Ele foi realmente um grande filósofo. Parabéns pela lembrança e grata por ter me dado a oportunidade de aprender um pouco mais sobre este grande ser humano.
    Namaste!

  4. NOIS TODOS PODERIAMOS SE COMO ELE..
    PORQUE GENTILEZA GERA GENTILEZA .
    É ASSIM VAMOS TE UM MUNDO MELHOR *—*

    MUITO OBRIGADO .
    GENTILEZA PELA SUA FORÇA DE VOLTADE PARA FAZER UM MUNDO MELHOR .

    FICA COM DEUS FICA NA PAZ DESCANSE EM PAZ

    BY ; LUCYANNA SANTOS

  5. Ja cantava Marisa Monte:
    Apagaram tudo
    Pintaram tudo de cinza
    A palavra no muro
    Ficou coberta de tinta
    Apagaram tudo
    Pintaram tudo de cinza
    Só ficou no muro
    Tristeza e tinta fresca
    Nós que passamos apressados
    Pelas ruas da cidade
    Merecemos ler as letras
    E as palavras de Gentileza
    Por isso eu pergunto
    A você no mundo
    Se é mais inteligente
    O livro ou a sabedoria
    O mundo é uma escola
    A vida é o circo
    Amor palavra que liberta
    Já dizia o Profeta.

  6. Namaste Pedro 🙂
    Este texto veio mesmo na altura certa. Que possamos todos sintonizar constantemente na Gentileza. Que eu o possa fazer sempre sem esperar Gentileza em troca.
    Imensamente grata,
    Sara.

  7. Olá Pedro! Obrigada pelo texto! Vejo gentileza como uma forma de amor. E sendo cristã, quando li “(…) essa gentileza tem duas dimensões: a divina em relação ao humano, e a da convivência entre os humanos”, logo relacionei àquela passagem bíblica onde alguém pergunta para Jesus qual dos mandamentos é o mais importante, e Ele responde: Amar Deus (que é o Alfa e o Omega) acima de todas as coisas, e amar o próximo como você ama a si mesmo.
    Se analisármos, todos os outros mandamentos são essencialmente dependentes destes dois, pois o amor gera paz em nós e no mundo… Mais ainda, o esforço necessário para atingí-los é grande, é uma dedicação de vida inteira para que eles sejam não só alcançados, mas também mantidos, constantes. O desafio para nós então, é meditarmos na necessidade de trazer amor para o mundo de maneira mais prática, de forma expressiva, no sentido de cotidiano, contínuo, natural e orgânico…
    Namastê.

  8. Maravilhoso!
    Vi ontem uma camiseta assim! Desconhecia a história dessa iniciativa, e também a visão de Shankaracharya.
    Concordo plenamente que nossa sociedade seria mais feliz . Como você disse, me sinto feliz e desprendidada quando consigo praticá-la.
    Grata pela gentileza do texto.
    Namaste!

  9. Namaste Pedro,
    Não estou sentindo muita gentileza por parte de algumas pessoas onde estou no momento.
    Foi uma verdadeira prasada ler teu texto!
    BeijOM Amélia.

  10. Bravo! Precisamos mesmo de mais gentileza sim! Obrigado pelo texto. Namaste! Fernando.

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