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Os Siddhis no Yogasūtra

O que são os siddhis, exatamente? Segundo é narrado em textos clássicos como o Yogasūtra, como resultado das primeiras formas do samādhi, o praticante adquire algumas habilidades, chamadas siddhis ou "perfeições".

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Siddhis são superpoderes?

Segundo é narrado em textos clássicos, como resultado das primeiras formas do samādhi, o praticante adquire algumas habilidades, chamadas siddhis ou “perfeições”.

Ao exercer sayama sobre uma determinada manifestação da natureza, por exemplo, o yogi assimila o siddhi, o poder inerente a ela.

Esses poderes são formas diferentes de relacionar-se com as leis naturais, que visam a estimular o sādhaka, desenvolvendo confiança para assim permanecer motivado para a liberação, mokṣa.

Eles fazem parte da cultura do Yoga e do Tantra, e são mencionados em obras como o Yogasūtra ou o Śivasūtra.

Levitação no século XXI?

No entanto, e por fascinante que o temados siddhis seja para alguns praticantes de Yoga ocidentais, ele é igualmente assaz elusivo: não há nenhum mestre conhecido nas últimas décadas capaz de demonstrar, e muito menos ensinar, de que maneira funcionam ou podem ser aplicados os siddhis.

siddhis

O Maharishi Mahesh Yogi, falecido guru dos Beatles, alegava ter domínio sobre os siddhis da levitação, e supostamente ensinava essas técnicas aos seus discípulos, usando o sūtra III:43 como “fórmula mágica”.

No entanto, o caro procedimento (4500 dólares) não é levitação propriamente dita, mas um treino para saltar sobre um colchão na postura do lótus.

Os discípulos do Maharishi chamam aquilo de yogic flying, e promovem competições par ver quem “voa” mais longe, como pode ser verificado aqui.

YouTube video

Este grupo acredita que se houver um número suficiente de pessoas pulando em padmāsana, a paz irá finalmente reinar no mundo.

Como efeitos colaterais desejáveis dessa “levitação” grupal, sempre segundo os discípulos do Maharishi, a economia mundial também melhora, a pobreza diminui e o terrorismo global é reduzido.

Tudo isso é “cientificamente demonstrado”, com gráficos e pormenores, no vídeo acima.

Além disso, aquele que “levita” mais alto ganha ovações do respeitável público e ainda ganha uma medalha por ajudar a salvar o mundo.

O amigo leitor pode questionar legitimamente qual é a relação causal entre pular feito uma rã com as pernas cruzadas e conseguir a paz mundial e a prosperidade global, mas essa é outra história.

As limitações dos siddhis

Por bem-intencionado e folclórico que o caso acima narrado pareça, nada tem a ver com o siddhi da levitação conforme é explanado na tradição do Yoga.

O próprio Patañjali Mahāṛṣi adverte o leitor no terceiro capítulo (III:38) do Yogasūtra que, “Embora estas sejam perfeições no mundo [dual],
constituem um obstáculo para o samādhi” (te samādhāvupasargā vyutthāne siddhayaḥ).

No sūtra 51, ele ainda afirma tadvairāgyādapi doṣabījakṣaye kaivalyam: “Pela destruição da semente dos condicionamentos e o desapego a esses [siddhis], alcança-se a libertação, kaivalya“.

Portanto, fica claro pela própria recomendação do sábio, que os siddis devem ser deixados de lado.

A descrição dos siddhis

Patañjali dedica uma boa parte do capítulo III dos Sūtras à enumeração e descrição dos diferentes suportes sobre os quais é possível fazer sayama, e as qualidades derivadas dessas contemplações. Apresentamos aqui uma lista parcial desses poderes.

परिणामत्रयसंयमाद् अतीतानागतज्ञानम् ॥ १६ ॥
pariṇāmatrayasaṁyamād atītānāgatajñānam ॥ 16 ॥

Fazendo saṁyama sobre as três transformações
surge o conhecimento do passado e do futuro.

pariṇāma = evolução, transformação
traya = tríplice
saṁyama = meditação
atīta = passado
anāgata = futuro
jñānam = conhecimento

O yogi, vivendo conscientemente, já não se distrai nem surpreende com nada pois, conhecendo a natureza da mente, e havendo compreendido no passado como ela funciona, consegue antecipar o futuro. As “três transformações” que o presente sūtra menciona são as três fases do pariṇāma listadas no 13.

शब्दार्थप्रत्ययानामितरेतराध्यासात्
सङ्करस्तत्प्रविभागसंयमात्सर्वभूतरुतज्ञानम् ॥ १७ ॥
śabdārthapratyayānāmitaretarādhyāsāt
saṅkarastatpravibhāgasaṁyamātsarvabhūtarutajñānam ॥ 17 ॥

Palavra, objeto e ideia confundem-se devido à superimposição.
Praticando saṁyama [sobre a diferença entre eles, surge]
o conhecimento da linguagem de todos os seres.

śabda = som, palavra
artha = objeto
pratyaya = ideia, conceito
itara-itara = um no outro
adhyāsāt = superimposição

saṅkara = confusão
tat = estes
pravibhāga = distinções, diferenciações
saṁyama = meditação
sarvabhūta = todos os seres
ruta = linguagem, idioma, fala
jñānam = conhecimento

संस्कारसाक्षात्करणात्पूर्वजातिज्ञानम् ॥ १८ ॥
saṁskārasākṣātkaraṇātpūrvajātijñānam ॥ 18 ॥

Pela percepção direta do saṁskāra, [surge]
o conhecimento dos nascimentos prévios.

saṁskāra = impressões subconscientes
sākṣāt = direto, imediato
karaṇa = percepção, experiência
pūrva = passado
jāti = nascimentos
jñānam = conhecimento

प्रत्ययस्य परचित्तज्ञानम् ॥ १९ ॥
pratyayasya paracittajñānam ॥ 19 ॥

[Contemplando] os conteúdos mentais
surge a compreensão das mentes dos demais.

pratyayasya = das ideias, noções, conceitos
para = outrem
citta = psiquê
jñānam = conhecimento

न च तत्सालम्बनं तस्याविषयीभूतत्वात् ॥ २० ॥
na ca tatsālambanaṁ tasyāviṣayībhūtatvāt ॥ 20 ॥

Porém, a base subjazente [i.e., o saṁskāra] a essa
compreensão fica fora do alcance da observação.

na = não
ca = porém
tat = esse, aquele
sālambanaṁ = com apoio
tasya = seu
aviṣayīn = fora do alcance
bhūtatvāt = ser, estar

कायरूपसंयमात्तद्ग्राह्यशक्तिस्तम्भे
चक्षुःप्रकाशासम्प्रयोगेऽन्तर्धानम् ॥ २१ ॥
kāyarūpasaṁyamāttadgrāhyaśaktistambhe
cakṣuḥprakāśāsamprayoge’ntardhānam ॥ 21 ॥

Pelo saṁyama sobre a forma do corpo, [o yogi] pode suspender
a percepção da sua luz, permanecendo invisível aos olhos de outrem.

kāya = corpo
rūpa = forma
saṁyama = meditação
tat = esse
grāhya = que pode ser percebido
śakti = poder

stambhe = suspenso, interrompido
cakṣuḥ = olho, olhar
prakāśa = luz, iluminação, características perceptíveis
asamprayogaḥ = desconectado, interrompido, suspenso
antardhānam = invisibilidade, desaparecimento

एतेन शब्दाद्यन्तर्धानमुक्तम् ॥ २२ ॥
etena śabdādyantardhānamuktam ॥ 22 ॥

Pelo mesmo processo é explicada a suspensão dos sons e demais
[capacidades do corpo de ser percebido: cheiro, tato e paladar].

etena = por este
śabdādi = som e outros
antardhānam = suspensão, parada
uktam = é explicado

सोपक्रमं निरुपक्रमं च कर्म तत्संयमादपरान्तज्ञानमरिष्टेभ्यो वा ॥ २३ ॥
sopakramaṁ nirupakramaṁ ca karma
tatsaṁyamādaparāntajñānamariṣṭebhyo vā ॥ 23 ॥

As ações produzem frutos imediatos ou futuros.
[Meditando sobre] elas, o yogi antecipa seus resultados.
Assim, conhece o momento da sua morte e seus sinais.

sopakramaṁ = imediato, ativo, de rápida frutificação
nirupakramaṁ = dormente, inativo, de frutificação lenta
ca = e
karma = ação
tat = essas
saṁyama = meditação
adaparānta = morte
jñāna = conhecimento
ariṣṭebhyaḥ = através de sinais, presságios
= ou

मैत्र्यादिषु बलानि ॥ २४ ॥
maitryādiṣu balāni ॥ 24 ॥

[Meditando sobre] a amizade e outras [virtudes, o yogi] se fortalece.

maitri = amizade
ādiṣu = e outras, demais, etcetera
balāni = força

बलेषु हस्तिबलादीनि ॥ २५ ॥
baleṣu hastibalādīni ॥ 25 ॥

[Ao fazer saṁyama] nas forças
[surge] a força do elefante.

baleṣu = sobre as forças
hastibalādīni = a força do elefante

प्रवृत्त्यालोकन्यासात्सूक्ष्मव्यवहितविप्रकृष्टज्ञानम् ॥ २६ ॥
pravṛttyālokanyāsātsūkṣmavyavahitaviprakṛṣṭajñānam ॥ 26 ॥

Dirigindo o foco da luz interior surge o conhecimento
de objetos sutis, ocultos ou distantes.

pravṛtti = atividade sutil, luz da percepção
aloka = luz, iluminar, tornar visível
nyāsāt = direcionar, focar, concentrar
sūkṣma = sutil
vyavahita = escondido, oculto
viprakṛṣṭa = distante, remoto
jñānam = conhecimento

भुवनज्ञानं सूर्ये संयमात् ॥ २७ ॥
bhuvanajñānaṁ sūrye saṁyamāt ॥ 27 ॥

Pelo saṁyama sobre o Sol, conhece-se o Cosmos.

bhuvana = universo, cosmos
jñānaṁ = conhecimento
sūrya = sol
saṁyamāt = prática de saṁyama: concentração, meditação e samādhi

चन्द्रे ताराव्यूहज्ञानम् ॥ २८ ॥
candre tārāvyūhajñānam ॥ 28 ॥

[Através do saṁyama sobre] a Lua adquire-se
o conhecimento da posição das estrelas.

candra = lua
tāre = das estrelas
vyūha = sistema, arranjo ou posição
jñānam = conhecimento

ध्रुवे तद्गतिज्ञानम् ॥ २९ ॥
dhruve tadgatijñānam ॥ 29 ॥

[Aplicando saṁyama sobre] a estrela polar, conhecimento
sobre o movimento dos corpos celestes pode ser obtido.

dhruve = a estrela polar
tadgati = seus movimentos
jñānam = conhecimento

नाभिचक्रे कायव्यूहज्ञानम् ॥ ३० ॥
nābhicakre kāyavyūhajñānam ॥ 30 ॥

[Meditando] sobre o cakra do umbigo [manipura,
ganha-se] conhecimento dos sistemas do corpo.

nābhicakre = sobre o centro energético da região do umbigo
kāyavyūha = dos sistemas do corpo físico
jñānam = conhecimento

कण्ठकूपे क्षुत्पिपासानिवृत्तिः ॥ ३१ ॥
kaṇṭhakūpe kṣutpipāsānivṛttiḥ ॥ 31 ॥

[Exercendo saṁyama] no poço (centro) da
garganta, cessam a fome e a sede.

kaṇṭha = garganta
kūpe = no poço
kṣut = fome
pipāsā = sede
nivṛttiḥ = cessar, retrair

कूर्मनाड्यां स्थैर्यम् ॥ ३२ ॥
kūrmanāḍyāṁ sthairyam ॥ 32 ॥

[Pelo saṁyama sobre] kūrmanāḍī [meridiano
da traquéia, surge] a estabilidade [emocional].

kūrmanāḍyāṁ = sobre kūrmanāḍī, o “meridiano da tartaruga”, na região da garganta
sthairyam = estabilidade, firmeza

मूर्धज्योतिषि सिद्धदर्शनम् ॥ ३३ ॥
mūrdhajyotiṣi siddhadarśanam ॥ 33 ॥

[Meditando na] luz do alto da cabeça [sahāsrara]
obtém-se a visão dos seres perfeitos.

mūrdha = parte mais alta da cabeça
jyotiṣi = luz
siddha = seres perfeitos, mestres
darśanam = visão

प्रातिभाद्वा सर्वम् ॥ ३४ ॥
prātibhādvā sarvam ॥ 34 ॥

Ou [o conhecimento de] todas as coisas surge da intuição.

prātibhā = insight, luz da intuição, iluminação
= ou
sarvam = tudo

हृदये चित्तसंवित् ॥ ३५ ॥
hṛdaye cittasaṁvit ॥ 35 ॥

[Pelo saṁyama] sobre o coração,
[obtém-se] conhecimento total de psiquê.

hṛdaye = coração
citta = psiquê
saṁvit = conhecimento completo, total

सत्त्वपुरुषयोरत्यन्तासंकीर्णयोः प्रत्ययाविशेषो भोगः
परार्थत्वात्स्वार्थसंयमात्पुरुषज्ञानम् ॥ ३६ ॥

sattvapuruṣayoratyantāsaṁkīrṇayoḥ pratyayāviśeṣo bhogaḥ
parārthatvātsvārthasaṁyamātpuruṣajñānam ॥ 36 ॥

Sattva [a psiquê purificada] e Puruṣa são absolutamente diferentes.
Apesar [disso], a base das experiências é comum a ambos.
Pelo saṁyama sobre si mesmo, devido à busca mais elevada,
[revela-se] o conhecimento da Consciência.

sattva = pureza mental e emocional, harmonia
puruṣa = Ātma, Ser, Consciência
yoḥ = entre
atyanta = completamente, de maneira total
asaṁkīrṇayoḥ = apesar da diferença
pratyayaḥ = com uma base comum
aviśeṣaḥ = não diferente
bhogaḥ = experiência, desfrute
parārthatvāt = devido à busca mais elevada
svārtha = pelo seu próprio
saṁyamāt = devido à meditação, por causa do saṁyama
puruṣa = Ātma, Ser, Consciência
jñānam = conhecimento

॥ हरिः ॐ ॥

+ sobre o
Yogasūtra aqui

॥ हरिः ॐ ॥

Recomendamos esta leitura de John Zubrzycki para quem quiser compreender o vínculo entre a espiritualidade e a mágica na Índia: Empire of Enchantment.

A imagem que ilustra este artigo foi extraída da capa desse livro.

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

5 respostas para “Os Siddhis no Yogasūtra”

  1. Sou totalmente leiga neste assunto,mas consegui captar coisas bem interessantes neste seu artigo ,parabéns !

  2. Muito bom, Pedro. Muito obrigado pelos esclarecimentos… Fiz o curso de Siddhis da MT, e esse conteúdo que você apresenta aqui agregou conhecimento para mim! Saudações amigo!

  3. Harih Om

    “Praticando Samyama sobre o agora, alcança-se a descomplicada liberação”

    Om)))

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