Yoga Journal: Entrar profundamente no mundo yogiko exige renúncia aos valores da sociedade capitalista? Se não, de que forma compatibilizar valores tão díspares?
Para responder a pergunta, precisaríamos, primeiramente, definir o que seriam os “valores da sociedade capitalista”. No entanto, se formos considerar o sistema econômico em que vivemos atualmente, diria que não, que não precisamos renunciar a viver nesta sociedade da forma que ela é hoje em dia. O Yoga propõe uma vida na qual ação e contemplação caminhem juntas.
Como não escolhemos nem a época nem o lugar onde nascemos, precisamos nos adaptar à situação em que estamos vivendo, mantendo o estado de paz. Essa arte de viver em paz em meio das mais diversas circunstâncias chama-se kshanti, em sânscrito.
O yogi, motivado pelo foco na liberdade, simplesmente constrói sua relação com a sociedade de maneira única, em harmonia com o dharma (lei universal), independentemente do sistema social, econômico ou cultural no qual tenha nascido. Essa maneira inclui, evidentemente, a praxis da conduta yogika, que abrange preceitos como não-violência, honestidade, compaixão, paciência, contentamento e outros.
Têm pessoas que, seguindo na linha da desobediencia civil proposta por Henry David Thoreau, o primeiro ocidental a se declarar yogi, afirmam que nós não deveríamos pagar impostos para não patrocinar as estripulias do estado. Pessoalmente, não concordo 100% com essa afirmação, uma vez que o Brasil não é uma potência imperialista como os Estados Unidos na época de Thoreau.
Thoreau se negou a pagar impostos para não patrocinar a invasão do México que resultou na morte de inúmeros civis. Ele foi preso e escreveu o ensaio chamado Desobediencia Civil atrás das grades. Esse texto inspirou Gandhi, dentre outros.
Aqui no Brasil, no pior dos casos, um parte do que nós contribuímos para este pacífico país, vai para o bolso de alguns políticos corruptos, mas a outra vai de fato para programas sociais que prestam. Não existem sociedades perfeitas.
Por um lado, todos nós dependemos diretamente da sociedade para viver. Por outro lado, os impostos já estão embutidos nos bens e serviços que você consume, pelo que é impossível não pagá-los. Pessoalmente, prefiro pagar meus impostos a ser preso por sonegá-los. Acho que a minha vida é mais útil desse jeito, e vivo mais tranqüilo.
Em suma, a compatibilização da vida de Yoga e a sociedade capitalista se realiza cultivando os yamas e niyamas, os preceitos do código de conduta yogika, que nos ajudam a viver em paz conosco e harmonia com o mundo, independentemente de época, circunstância ou lugar, e independentemente dos modelos econômicos que a sociedade possa assumir. É por isso que o Yoga não tem idade, mas funciona bem em qualquer momento da aventura humana.
YJ: Sua biografia mostra interesse pelo Yoga desde os 16 anos. Como ocorreu a “descoberta”? Houve circunstâncias especiais?
Lembro que um amigo me apresentou um livro do filósofo Alan Watts, que falava sobre a meditação no mantra Oṁ. Por alguma razão, esse texto, que dizia que para viver em estado de liberdade era preciso “chegar no Oṁ”, me tocou profundamente e me motivou a começar a prática. Assim que fiz as primeiras práticas no Satyananda Niketan, em Montevidéu, senti que havia algo muito bom no Yoga e descobri que praticar, estudar (e, posteriormente, ensinar) o Yoga era minha vocação.
Não lembro de nenhuma “circunstância especial”. Não ouvi sons celestiais, nem anjos tocando trombetas, nem vi luzes no céu. Sou um cara normal. Sempre vi o ensinamento e a prática do Yoga como algo totalmente pé no chão. Lembro que sofri muitas dores ao fazer as primeiras posturas e fiquei agoniado na primeira meditação, mas esses desconfortos sumiram com o tempo. Lembro (como percebo aliás até hoje) da profunda tranqüilidade que me trazia a prática. Lembro que isso me motivou ainda mais a não parar de praticar. Anos depois de ter começado, comecei a ensinar aquilo que vivenciava.
YJ: O Yoga dá ao ser humano a oportunidade de se descobrir e se realizar plenamente. Como trilhar esse caminho até o fim?
Em verdade, não há um “fim” no caminho do Yoga, como pode haver, por exemplo, quando você se dedica à tarefa de construir uma casa. Você começa pelo alicerce, segue pelas paredes, termina com o telhado e a pintura e depois pode descansar. Não acontece exatamente desse jeito com o Yoga, pois a relação dele com a vida humana é muito mais dinâmica.
Olhar para o Yoga como uma meta a ser atingida pode criar um estado de ansiedade. Já vi pessoas permanentemente tensas por acharem que o Yoga iria lhes dar uma certa experiência de êxtase ou paz, a partir da qual não haveria mais sofrimento. Mas isso é uma ilusão, algo que simplesmente não acontece.
O Yoga é um processo permanente de atualização do conhecimento no cotidiano, de lapidação constante do caráter e de aplicação do ensinamento na vida real. Por isso, não pode ter um final. A prática de Yoga termina quando a vida da pessoa chega ao fim. Nunca antes.
YJ: Com base nos ensinamentos do Yoga, quais são os elementos essenciais para a construção do processo espiritual?
Uma das coisas que mais chama a atenção no mundo do Yoga é a grande variedade de métodos, técnicas e ensinamentos. Muitas vezes, esses ensinamentos são antagônicos. A idéia que tem por trás dessa miríade de práticas e professores é justamente que cada pessoa tem um caminho pessoal e uma forma única de trilhá-lo e que, no fim, todos chegamos no mesmo estado, que é a liberdade. Então, não importa, em última análise, que mestre você segue ou que mantra você faz, mas como você vive a sua vida e que ações concretas você faz para melhorar a sociedade em que vive.
Já visitei muitos mestres na Índia e não perco a chance de continuar aprendendo, muito embora não esteja mais à procura de um mestre. Achei esse mestre em Swāmi Dayānanda, uma alma realizada que trabalha incessantemente pela preservação da cultura indiana e para dar educação e saúde aos menos favorecidos.
Ele é um exemplo vivo do quanto é importante um yogi sair do plano da teoria, ou do plano da prática sobre o tapetinho, para sacudir o espírito público questionando os dogmas do hiperconsumo, a indiferença e a injustiça, propondo ações concretas para melhorar a vida dos necessitados. Ele é a minha fonte de inspiração, além de ser um ótimo piadista.
As pessoas se surpreendem muitas vezes com o bom humor de Swamiji, pois vão ao encontro dele imaginando num mestre sisudo que fala sobre coisas importantes, e encontram um velhinho sorridente que canta mantras rindo às gargalhadas e diz as verdades mais pungentes sem perder o bom astral, e convidando cada um para fazer a sua parte. Então, é no meu mestre que vejo os elementos para a “construção do processo espiritual”: bom humor, comprometimento com o bem comum, respeito pelo outro e amor pelo ensinamento.
YJ: São mais de 30 anos de dedicação ao Yoga, seja como praticante, seja como formador de professores. Conte-nos algumas passagens dessa trajetória.
O que mais me marcou foram alguns encontros com yogis, dos quais aprendi tanto pelas palavras como pelos exemplos de vida. O satsaṅgam, a reunião em boa companhia, é algo essencial para manter o foco na prioridade do Yoga, que é viver em mokṣa, liberdade.
Então, se for fazer uma retrospectiva, o que mais me inspirou e motivou para continuar adiante, foram justamente os exemplos de praticantes realizados que tive a fortuna de encontrar no meu caminho. Ler as biografias dos grandes yogis e aprender como eles superaram suas próprias dificuldades é outra boa fonte de inspiração.
Algo que me leva adiante com o ensinamento do Yoga é ver o quanto ele é valioso para todos, e o quanto o professor pode ajudar os praticantes, em todos os aspectos da vida. Porém, o que considero mais importante é saber que o exemplo nas ações em benefício da sociedade como um todo, como a nossa militância em prol do meio ambiente, funciona como um catalisador que inspira mais e mais pessoas a fazerem o mesmo. A palavra empurra, mas o exemplo arrasta. Se quiser ver alguma mudança acontecendo, torne-se essa mudança.
Algumas anedotas: o entusiasmo pela prática me levou a viver situações engraçadas, como praticar āsanas dentro de um trem na Índia, com algumas dezenas de indianos curiosos olhando para mim. Uma vez, estava meditando de manhã numa praça no Rio de Janeiro e uns missionários evangélicos tentaram interromper a minha meditação. Imaginavam que eu estaria possuído pelo demônio.
Lembro que, numa outra ocasião, estava levando um grupo de praticantes para a Índia. Viajávamos num daqueles aviões enormes e, para aliviar o desconforto da viagem, alguns de nós fomos para um espaço aberto à frente das portas e começamos a fazer alguns alongamentos em pé mesmo. Para a nossa surpresa, um pequeno grupo de turistas japoneses se juntou a nós. Sem dizer uma palavra, eles copiavam exatamente o que nós faziamos. Foi a primeira (e única) aula que dei em japonês.
Entrevista concedida ao site www.yogajournal.com.br, da revista Yoga Journal.
Caro Pedro,
Gostei muito da sua entrevista! Permita-me sugerir um assunto para que apresente o seu ponto de vista. Yoga e os Zen-pastéis… explico, há alguns anos que sou praticante e entusiasta do yoga, já me deparei com diversos professores no caminho.
E, não raramente, ando me deparando com sujeitos que estão sem muita energia, com uma passividade diante da vida, entre os meus amigos denominamo-os de zen-pastel. Invariavelmente, esses indivíduos evocam os yamas e niyamas para dar um pano de fundo retórico/racional para seus comportamentos.
De fato, não creio que o yoga é uma desculpa para o indivíduo não ser ativo no mundo, não defender suas ideias, não assumir uma posição diante da realidade dos fatos, maya se preferir.
Um abraço!
uma pessoa como vc vale por mil corruptos! parabéns e obrigado pelo exemplo de conduta e vida! Abraço. Fortaleza te aguarda em 2013!
“Aqui no Brasil, no pior dos casos, um parte do que nós contribuímos para este pacífico país, vai para o bolso de alguns políticos corruptos, mas a outra vai de fato para programas sociais que prestam.”
No pior dos casos? Uma parte? O Sr. quis dizer a maior parte, não é? Pacífico país? Programa social que presta? O Sr. está falando do Brasil? Com todo respeito que tenho pelo Sr.: O Yoga pode até ser da vida real, mas, essa parte do texto…
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Sim, João, concordo com você: é difícil estimar de fato quanto do que pagamos em impostos vai para programas sociais “que prestam” e quanto vai para o ralo da corrupção. Isso, para não falar nos programas sociais que não prestam. No entanto, isso não nos exime de fazer a nossa parte, compreende?
Eu pago meus impostos sim, mas pago indignado. Pago mas não me queixo. Isso não significa que concorde com a política espúria que se pratica atualmente. Mas penso que você não pegou a ironia do “pacífico país” e dos “programas sociais que prestam”.
Não acho que este país seja pacífico. Escrevi isso à guisa de ironia, para não ter que colocar outra coisa. E, sobre os programas sociais, entendo que algum benefício podem ter, apesar de que não concordo com o paternalismo e as esmolas do presente governo.
Namaste.
Namastê!
Fantástica entrevista Pedro! Suas palavras ressoam de dentro do Ser, e com certeza vibram em nós com a mesma intensidade e profundidade! Grato pelo exemplo!
Paz!