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Amṛtabindu, o Néctar da Imortalidade

A Amṛtabindūpaniṣad é um antigo texto védico, vinculado ao Kṛṣṇa Yajurveda, uma das quatro grandes coleções de mantras que constituem o alicerce da tradição védica e, por extensão, de todas as formas de Yoga. Ela é considerada uma Upaniṣad menor. Ou seja, pertence àquele grupo das Upaniṣads que não foram comentadas pelo grande sábio Ādi Śaṅkarācārya. Por outro lado, também é classificada como uma Yogopaniṣad, ou uma Upaniṣad do Yoga.

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Introdução à Amṛtabindu

सर्वभूताधिवासं यद्भूतेषु च वसत्यपि
सर्वानुग्राहकत्वेन तदस्म्यहं वासुदेवः 
“Sou Aquele que é o lar de todos”,
diz o sábio, “Aquele que vive por igual,
como a Graça, em todos os seres.
Sou Vāsudeva, que vive em todos.” 

A Amṛtabindūpaniṣad é um antigo texto védico, vinculado ao Kṛṣṇa Yajurveda, uma das quatro grandes coleções de mantras que constituem o alicerce da tradição védica e, por extensão, de todas as formas de Yoga.

Ela é considerada uma Upaniṣad menor. Ou seja, pertence àquele grupo das Upaniṣads que não foram comentadas pelo grande sábio Ādi Śaṅkarācārya. Por outro lado, também é classificada como uma Yogopaniṣad, ou uma Upaniṣad do Yoga. 

Esta é a mais importante das chamadas Bindūpaniṣads, aquelas cujos nomes incluem a palavra bindu. Esse subgrupo de Upaniṣads, que totalizam cinco, são as seguintes: Amṛtabindu, Brahmabindu, Tejobindu, Nādabindu e Dhyānabindu. Estima-se que a Amṛtabindu date do século I a.C.  

A Gota do Néctar da Imortalidade” 

O nome Amṛtabindu significa “A Gota do Néctar da Imortalidade”. Bindu quer dizer “gota” ou “ponto”. A palavra amṛta aponta para aquilo que, como não nasceu, não está sujeito à morte. Essa palavra refere-se ao conhecimento do Ser Ilimitado, ou ao reconhecimento de si mesmo como o sendo o próprio Ilimitado. 

Literalmente, amṛta quer dizer “imortalidade” ou “néctar da imortalidade”. Imortalidade, vale lembrar, é o nome dado na antiga linguagem das Upaniṣads ao objetivo do Yoga, chamado noutras escrituras, como a Bhagavadgītā ou o Yogasūtra, de mokṣa, “liberdade”, ou kaivalya, “separação” (das fontes do sofrimento). 

Assim, o nome Amṛtabindūpaniṣad aponta para a essência do conhecimento libertador: a gota é a síntese. A imortalidade é o reconhecimento de si mesmo como Invariável, como alguém que não está limitado por nascimento nem morte.

O termo Upaniṣad quer dizer “sentar perto”, e pode ser interpretado de duas maneiras: sentar perto de um sábio para ouvir o ensinamento, ou melhor ainda, estar perto, estar em presença da visão libertadora. Assim, traduzindo o nome Amṛtabindūpaniṣad temos “A Upaniṣad da Gota do Néctar da Imortalidade”.

Diferentemente de muitas outras Upaniṣads, a Amṛtabindu não tem associada a ela um ṛṣi (sábio) conhecido, nem é composta na forma de um diálogo.

Consta de estrofes duplas de 32 sílabas cada uma, organizadas na métrica conhecida como anuṣṭhubh, que é a mais popular e frequente nos śāstras. A única exceção é a vigésima estrofe, que está composta na métrica triṣṭhubh. 

Cada estrofe é considerada um mantra. Existem duas versões desta Upaniṣad: uma com 22 mantras, e outra com 38. Apresentamos aqui a primeira delas. A segunda versão apresenta mais detalhes sobre concentração, meditação e outras técnicas de Yoga. 

Algumas palavras especiais, chamadas lakṣaṇas, são usadas na Amṛtabindu para apontar para o Ilimitado: na não-manifestação, usamos o apontador Brahman.

Na forma da totalidade de criação, o Ilimitado é referido como Īśā ou Īśvara. Na forma da individualidade, do ser vivo encarnado num corpo, ainda é chamado de Ātma ou Puruṣa. 

A presente Upaniṣad usa os termos Brahman (a partir do sexto mantra) e Ātma (a partir do mantra 11) e ainda, no último mantra, Vāsudeva, “o excelente deva”, como apontadores para o Ilimitado.

O Mantra da Paz.

O texto inicia e conclui-se com a invocação da paz, śāntipāṭhaḥ, cujo verso inicial é Oṁ bhadraṁ karṅebhiḥ.

Esse mantra mostra a interdependência entre o ser humano e a natureza, e fala de maneira muito poética e ao mesmo tempo muito precisa, sobre como os humanos precisamos ter uma atitude proativa em relação ao meio-ambiente, uma vez que, se dermos as costas para o lugar onde nascemos e vivemos, a própria existência da humanidade ficará em xeque.

Esta invocação da paz é tão importante que colocamos um comentário separado sobre ela no início desta tradução, para que o amigo leitor possa compreendê-la em toda a sua extensão, profundidade, beleza e poder transformador.

A Mente e os Condicionamentos.

Após essa invocação, a Upaniṣad inicia fazendo uma análise da mente humana e das suas características únicas. Assim, começa a instrução no primeiro mantra com estas palavras:

mano hi dvividhaṁ proktaṁ śuddhaṁ cāśuddhameva ca
aśuddhaṁ kāmasaṁkalpaṁ śuddhaṁ kāmavivarjitam

“Diz-se que a mente é de dois tipos: pura e impura. Quando é governada pelos desejos, ela é impura; com os desejos sob controle, a mente é pura”.

O segundo mantra afirma que a mente é tanto a causa dos condicionamentos e o sofrimento quanto da libertação, mokṣa:

mana eva manuṣyāṇāṁ kāraṇaṁ bandhamokṣayoḥ
bandhāya viṣayāsaktaṁ muktyai nirviṣayaṁ smṛtam

“É dito que a mente pode escravizar ou libertar. A mente, apegada aos desejos, conduz à escravidão. Separada dos objetos dos sentidos, conduz à liberdade”.

Depois de apresentar as diferenças entre uma mente pura e uma mente impura nesse segundo mantra, o terceiro ensina:

yato nirviṣayasyāsya manaso muktiriṣyate
ato nirviṣayaṁ nityaṁ manaḥ kāryaṁ mumukṣuṇā

“Como a libertação é o resultado de uma mente sem desejos pelos objetos dos sentidos, aquele que procura a liberdade deve constantemente livrar a mente [da influência] dos sentidos”.

O grande sábio Rāmaṇa Mahāṛṣi, de Tiruvannamalai, ensinou-nos que “a mente é um poder magnífico. O nosso destino na vida é determinado por aquilo que fazemos com esse poder”. Portanto, é preciso gerir adequadamente os movimentos da mente, para podermos compreender a nossa real natureza. 

O Desapego.

O quarto mantra fala da importância do desapego, passo essencial no processo do autoconhecimento, usando estas palavras:

nirastaviṣayāsaṅgaṁ saṁniruddhaṁ mano hṛdi
yadā’’yātyātmano bhāvaṁ tadā tatparamaṁ padam

“Uma vez que o apego aos sentidos é aniquilado e a mente é totalmente recolhida no coração, esta reconhece a sua própria natureza e [é alcançado] esse supremo objetivo”.

Nesse processo de autodescoberta, é essencial o cultivo do sādhana catuṣṭayaṁ, as quatro qualificações necessárias para mokṣa, a liberdade:

  1. Vivekaḥ, discernimento,
  2. Vairāgyaṁ, desapego,
  3. Śamādiṣaṭkasampattiḥ, o grupo das seis virtudes:
    a) Śama, comando sobre a mente,
    b) Damaḥ, controle sobre os sentidos,
    c) Uparatiḥ, quietude, relaxamento,
    d) Titikṣa, paciência, tolerância,
    e) Śraddhā, confiança no ensinamento,
    f) Samādhanaṁ, concentração,
  4. Mumukṣutvaṁ, foco, desejo e motivação para a libertação.

Essas quatro qualificações nos outorgam adhikāritvaṁ, a competência necessária para que possamos completar o processo. 

Os Riscos da Erudição Vazia.

Na continuação, o mantra cinco diz o seguinte:

tāvadeva niroddhavyaṁ yāvadhṛdi gataṁ kṣayam
etajjñānaṁ ca dhyānaṁ ca śeṣo nyāyaśca vistaraḥ

“A mestria sobre a mente dissolve-a no coração. Isso é Conhecimento, e isso é também meditação. Tudo o mais é argumentação e falatório desnecessário”.

O ego é apenas uma sucessão de pensamentos em forma de autorreferências, desejos ou aversões. Sabiamente, o mantra nos lembra que toda essa variedade de ideias são apenas projeções sem substância nem existência próprias, quando separadas do Ser. 

Para podermos conhecer a nós mesmos, é necessário transcender os limites do ego. Contraposto ao ego, aparece aqui o coração, um dos temas mais ubíquos das Upaniṣads. O coração é a referência física de Ātma.

Qualquer descrição que possa ser feita de Ātma será, necessariamente, uma ideia na mente, um conceito grudado na memória, e não Ātma propriamente dito. Nenhum pensamento, nenhum conceito, por bonito ou sedutor que seja, consegue “apreender” o Ser. Pensamentos e conceitos, portanto, devem ser deixados de lado para que a visão de si mesmo possa ter lugar.

A Visão. 

A partir do sexto mantra, começa a exposição de Brahmavidyā, o autoconhecimento. Assim, o sexto mantra diz:

naiva cintyaṁ na cācintyaṁ na cintyaṁ cintyameva ca pakṣapātavinirmuktaṁ brahma sampadyate tadā

“[Brahman] não é concebível [pois não é um objeto]; nem é inconcebível [pois não é inexistente]. Embora não possa ser objeto do pensar, deve ser conhecido. Brahman, livre de parcialidade, é assim alcançado”.

Por paradoxal que este mantra pareça, a meditação no Ilimitado não é uma tarefa impossível. Para meditar no Ser, basta apenas ser. Ser o que somos. Permitir que a mente siga o seu rumo e perceber que para além dela, há silêncio. Nesse silêncio, encontramos a paz e a felicidade. 

Assim como há inúmeros reflexos da lua em corpos de água na terra, da mesma maneira, há inúmeras manifestações do Ser Uno, Ātma, na forma das miríades de individualidades. A natureza do Ser é revelada dessa maneira na Upaniṣad. 

A Upaniṣad aborda tanto a relevância do estudo quanto a importância da prática meditativa: ambos têm como objetivo o reconhecimento de mesmo como, Ātma, o Ser Uno, bem como perceber o Ser em todas e cada uma da pluralidade das manifestações da criação, tanto os seres vivos quanto os objetos inertes. 

O estudo nos dá a base, a partir de metáforas, parábolas e inspiradoras palavras. A prática contemplativa nos dá antaḥkaraṇaśuddhi, a purificação psíquica, e ainda nos revela a natureza sáttvica da mente, que seria um “reflexo” harmonioso de Ātma na psiquê.

Oṁ Aponta para o Ilimitado.

Como as demais Bindūpaniṣads, a Amṛtabindu coloca a ênfase na prática da meditação no Oṅkāra, o mantra Oṁ, à guisa de nididhyāsana, a contemplação do Ser. Desta forma, o sétimo mantra propõe-nos a absorção meditativa no sagrado Oṅkāra, da seguinte maneira:

svareṇa saṁdhayedyogamasvaraṁ bhāvayetparam
asvareṇānubhāvena nābhāvo bhāva iṣyate

“Deve-se praticar a meditação através do som [Oṁ]. [Depois], sem o som, deve-se meditar no Ilimitado. Pela meditação sem som, o Existente não fica ausente”. O mesmo tema voltará no mantra 17, desde outro ângulo.

O grande problema humano é a identificação com o corpomente, a ideia de ser tão bom, ou tão limitado, ou tão forte ou fraco como o corpo ou a mente, e nada mais além dele. É preciso quebrar esse feitiço, desfazer essa crença e perceber a real natureza daquilo que somos: Plenitude. 

O mantra oito diz a esse respeito:

tadeva niṣkalaṁ brahma nirvikalpaṁ nirañjanam
tadbrahmāhamiti jñātvā brahma sampadyate dhruvam

“Este, de fato, é Brahman: indivisível, sem pensamentos, sem mácula. Reconhecendo que “eu sou esse Brahman”, a pessoa torna-se [i.e., conhece a si mesma como] Brahman”.

Já o mantra nove nos propõe a única solução possível para saírmos da roda do saṁsāra, do ciclo do incessante sofrimento:

nirvikalpamanantaṁ ca hetudṛṣṭāntavarjitam
aprameyamanādiṁ ca yajjñātvā mucyate budhaḥ

“[Brahman é] sem dúvida, inconcebível, infinito, incomparável, ilimitado e sem causa. Ciente disso, o sábio liberta-se”. 

A pessoa reconhece a si mesma como alguém intrinsecamente livre de quaisquer limitações, de quaisquer papéis que representa na vida, na família, na sociedade ou no mundo. O mesmo tema continua no próximo mantra. 

A Destruição da Falsa Identidade.

O décimo mantra é talvez o lugar onde o ensinamento mostra a sua face mais radical:

na nirodho na cotpattirna baddho na ca sādhakaḥ
na mumukṣurna vai mukta ityeṣā paramārthatā

“Não há fim nem origem. Nem apegados nem praticantes. Nem aspirantes nem libertos. Essa é a verdade suprema”.

Essa é a maneira típica de expor a visão do Vedānta: através da negação daquilo que não se é, e apenas por essa negação, neti neti, “nem isto nem aquilo”, todas as falsas identificações são abolidas e o Ser Ilimitado se revela em si mesmo. 

Essa negação do que não se é, é chamada em latim via negativa, ou o processo de descrever a realidade através daquilo que ela não é. A via negativa é usada para evitar reduzir o Ilimitado a um conceito, uma ideia ou uma crença.

Essa Presença Ilimitada é invariavelmente a mesma, sem interrupções, apesar de que o corpomente deriva incessantemente da vigília para o sono, deste para o sonho, do sonho de volta para o sono, e deste novamente para a vigília. Independentemente do estado de consciência em que a pessoa se encontre em cada momento, Ātma sempre é, sempre uno e sempre o mesmo. 

O mantra 11 expõe esse ponto de maneira muito clara: eka evātmā mantavyo jāgratsvapnasuṣuptiṣu । sthānatrayavyatītasya punarjanma na vidyate: “Certamente, Ātma deve ser conhecido como o Invariável, [sempre presente] nas experiências de vigília, sonho e sono. Não há mais renascimentos para aquele que transcendeu [a identificação com] as experiências dessas três variedades”.

Ātma é Tudo; Ātma é Todos.

A apreciação da Unidade presente em todas as formas de vida é essencial no Vedānta. Ātma é sempre o mesmo, independentemente de tempo, lugar ou circunstância, independentemente da cultura, da posição social ou da instrução que a pessoa possa ter. 

Ātma é invariável, e está invariavelmente presente em todas as formas de vida, em todos os seres sencientes e em todas as formas inanimadas. Ātma é a totalidade da Criação, todas as leis naturais, todos os elementos da tabela periódica, todas as moléculas, todos os átomos e partículas do universo inteiro. 

Nesse sentido, diz o mantra 12 aprofunda o que foi exposto no anterior: eka eva hi bhūtātmā bhūte bhūte vyavasthitaḥ । ekadhā bahudhā caiva dṛśyate jalacandravat: “Sendo Uno, Ātma está em todos os seres. Apesar de Uno, aparenta ser muitos, como o reflexo da lua nas águas”.

Quando olhamos para o céu à noite e vemos as nuvens sendo levadas pelo vento, podemos ter a impressão de que a lua se move. A lua não se move, mas o movimento das nuvens nos traz a sensação de que ela está a mover-se em direção contrária à do vento. Similarmente, o Ser não se move quando o corpomente se move. 

O mesmo vale em relação à parábola do reflexo da lua nas águas. O movimento aparente dos reflexos não afeta a lua. Os reflexos são muitos, mas a lua é uma só. Esta parábola está presente igualmente no Ātmabodha de Ādi Śaṅkarācārya, bem como na Śiva Saṁhitā, um dos textos clássicos do Haṭhayoga. 

Karmayoga.

O mantra 13 nos lembra o seguinte:

ghaṭasaṁvṛtamākāśaṁ nīyamāno ghaṭe yathā
ghaṭo nīyeta nākāśaḥ tadvajjīvo nabhopamaḥ

“Quando um pote muda de lugar, é o pote que se move, não o espaço dentro dele. O mesmo acontece com jīva, a individualidade, [cuja Consciência] é como o espaço”.

Isso, por sua vez, nos remete à essência do Karmayoga, o Yoga da ação, no qual aprendemos a tomar consciência de que, enquanto Ātma, nós não somos os agentes das ações, nem os desfrutadores (ou sofredores) dos resultados delas, como nos ensinam estes lindos versos da Bhagavadgītā:

नैव किञ्चित्करोमीति युक्तो मन्येत तत्त्ववित् ।
पश्यञ्शृण्वन्स्पृशञ्जिघ्रन्नश्नन्गच्छन्स्वपञ्श्वसन् ॥ ५ ॥ ८ ॥
naiva kiṁcitkaromīti yukto manyeta tattvavit ।
paśyañśṛṇvanspṛśañjighrannaśnaṅgacchansvapañśvasan ॥ V:8 ॥

“Eu nada faço” deve pensar o devoto instruído na Verdade
quando vê, ouve, toca, come, anda, dorme, respira, ॥ V:8 ॥

प्रलपन्विसृजन्गृह्णन्नुन्मिषन्निमिषन्नपि ।
इन्द्रियाणीन्द्रियार्थेषु वर्तन्त इति धारयन् ॥ ५ ॥ ९ ॥pralapanvisṛjangṛhṇannunmiṣannimiṣannapi ।
indriyāṇīndriyārtheṣu vartanta iti dhārayan ॥ V:9 ॥

fala, segura ou solta alguma coisa, abre ou fecha
os olhos, considerando que “são os sentidos
que se relacionam com os objetos”. ॥ V:9 ॥

Um dos nyāyas (parábolas) mais lindas, claras e frequentes no Vedānta, é a comparação entre o Ser e o espaço, já que ambos não têm limites. Ela está presente no Guru Vandanam, a saudação aos mestres, que diz em sua terceira estrofe:

īśvarogururātmeti mūrttibhedavibhāgine
vyomavadvyāptadehāya dakṣiṇāmūrttaye namaḥ

“Eu saúdo Dakṣiṇāmūrti [i.e., Śiva, a Consciência], que é ilimitado como o espaço [mas está em todos os lugares] e que se revela na forma de Īśvara, o mestre e Ātma”.

Ātma é Ilimitado.

De maneira similar, o décimo quarto mantra indica-nos que Ātma é Ilimitado, ghaṭavadvividhākāraṁ bhidyamānaṁ punaḥ punaḥ । tadbhede na ca jānāti sa jānāti ca nityaśaḥ: “Assim como o pote, [o corpo assume] formas variadas: nasce e é destruído, vezes e mais vezes. [O corpo, como] o espaço, não é ciente da destruição. Esse [Ātma] sempre sabe”. 

Assim como a argila muda de forma, e o oleiro pode criar sucessivamente variados potes e outros objetos com o mesmo material, da mesma forma Ātma encarna vezes e mais vezes em diversos corpos.

Rasgando o Véu da Ignorância.

As palavras inspiram, mas também podem condicionar e aprisionar. As palavras revelam, apontam para Ātma, mas não são Ātma. As palavras são como o barco que nos permite atravessar o oceano do sofrimento. Diz assim o mantra 15:

śabdamāyāvṛto naiva tamasā yāti puṣkare
bhinne tamasi caikatvameka evānupaśyati

“Obscurecido pela ilusão das palavras nascidas da ignorância, o lótus [Ātma] não pode alcançar-se. Quando o véu da ignorância é destruído, o Uno [Ātma] enxerga unicamente a Unidade”.

Abandonar o barco antes de iniciar a travessia não nos leva a lugar algum. Tampouco serve de nada apegar-nos a ele depois da travessia acabar. Cada aspecto do ensinamento, cada parábola, cada prática, devem ser tomadas da maneira adequada, sem projeções falsas nem apego. 

Devemos estar preparados para deixar tudo de lado uma vez que a função de cada elemento tenha sido cumprida. As palavras não são o ensinamento; as técnicas não são fins em si mesmos; não estamos em busca da erudição e muito menos do orgulho intelectual. 

A esse respeito nos esclarece belamente o mantra 16, que continua o ensinamento com estas palavras:

śabdākṣaraṁ paraṁ brahma tasminkṣīṇe yadakṣaram
tadvidvānakṣaraṁ dhyāyedyadīcchecchāntimātmanaḥ

“[Primeiramente, deve ser feita a meditação sobre] Śabdākṣaraṁ, [o Oṁ, como] o Ilimitado Brahman. Depois que [a “ideia” do Oṁ] se esvai, o Invariável [Brahman permanece]. O sábio deve meditar desta maneira sobre esse Invariável, se almejar a paz de Ātma”.

Nessa mesma linha, o mantra 17 fala sobre a prática meditativa como ponte para completar o antaḥkaraṇaśuddhi, a purificação psíquica e reconhecer a própria natureza:

dve vidye veditavye tu śabdabrahma paraṁ ca yat
śabdabrahmaṇi niṣṇātaḥ paraṁ brahmādhigacchati

“Dois tipos de meditação devem ser praticados: sobre Śabdabrahman [o Oṁ] e sobre o Ilimitado. Aquele que tem a mestria sobre o Oṁ, alcança o Ilimitado”.

Separando o Joio do Trigo.

A seguir, o mantra 18 aborda a importância do abhyāsa, a diligente aplicação na prática, bem como recomenda evitar o risco de deixar-se seduzir pela erudição vazia, ou por dogmas, condicionamentos e sistemas de crenças paralisantes:

granthamabhyasya medhāvī jñānavijñānatatparaḥ
palālamiva dhānyārthī tyajedgranthamaśeṣataḥ

“O sábio, depois de estudar os granthas [textos] e refletir repetidamente sobre eles, deve descartá-los, como quem busca os grãos e descarta o joio”. 

Chega uma hora em que se faz necessário deixar de lado aquilo que não é essencial, abandonar tudo o que for supérfluo. Em relação ao estudo dos textos, cabe lembrar que ele não é um fim em si mesmo, já que esses śāstras não são aquilo que pretendemos conhecer (Ātma), senão que são apontadores que indicam a “direção” em que o Ser está. 

Uma direção que, aliás, não é uma geolocalização no tempo-espaço (daí as aspas), uma vez que Ātma não é limitado nem pelo tempo nem pelo espaço. Nunca.

Conciliação. 

O mantra 19, por sua vez, faz um lindo apelo à concórdia, à tolerância e ao convívio harmonioso entre as pessoas e as sociedades, para além de quaisquer diferenças culturais ou religiosas. Diz o mantra:

gavāmanekavarṇānāṁ kṣīrasyāpyekavarṇatā
kṣīravatpaśyate jñānaṁ liṅginastu gavāṁ yathā

“As vacas têm diferentes cores, mas todo o leite é da mesma cor. A sabedoria é o leite; as variadas [escrituras] são [como] as vacas”.

A Upaniṣad continua, no vigésimo mantra, fazendo uma analogia entre a manteiga e a Consciência:

ghṛtamiva payasi nigūḍhaṁ bhūte bhūte ca vasati vijñānam
satataṁ manasi manthayitavyaṁ mano manthānabhūtena

“Assim como a manteiga esconde-se no leite, da mesma forma Vijñāna, a Consciência, vive em todos os seres. Deve-se bater constantemente o leite com a vara da mente [para apreciar a Consciência em todos]”.

Todos somos amor, plenitude e felicidade. No entanto, em cada indivíduo, amor, plenitude e felicidade estão como que “escondidos”, às vezes em estado intermitente, às vezes em estado atenuado. Assim, precisamos permitir que a nossa verdadeira natureza surja, já que ela aparece velada por condições psicológicas desfavoráveis. 

O Fogo da Inspiração. 

O mantra 21 faz referência à maneira tradicional de acender o fogo para o ritual matinal na idade védica: fricionavam-se duas peças de madeira seca, chamadas āraṇi, uma contra a outra, com a ajuda de uma corda fina, que fazia uma girar rapidamente sobre a outra. O calor gerado pelo atrito acendia as primeiras faíscas, que por sua vez davam início ao fogo. 

Similarmente, a Upaniṣad fala da maneira em que o conhecimento desperta a motivação no coração do adepto, de maneira que ele desperte a inspiração pelo autoconhecimento e, no processo, abandone as suas finalidades egoístas, os seus condicionamentos e as suas crenças, como quem se desfaz de uma roupa velha que já não tem mais serventia. 

O fogo é uma metáfora muito eloquente para a purificação psíquica, chamada antaḥkaraṇaśuddhi, o processo de purificação que nos permite ir para mais além do pequeno universo onde, como um pequeno e patético ditador, se move o ego. O mantra diz:

jñānanetraṁ samādhāya coddharedvahnivatparam
niṣkalaṁ niścalaṁ śāntaṁ tadbrahmāhamiti smṛtam

“Tomando a corda do Conhecimento, a pessoa deve reconhecero Supremo, como o fogo [que surge dos gravetos]. Assim, ela lembra: Eu sou esse Brahman, que é indivisível, invariável e calmo”.

Você é Ilimitado.

A Upaniṣad conclui-se afirmando mais uma vez a Unidade da Criação, presente em todas e cada uma das miríades de expressões do Ser Uno. O mantra 22, que é o que encerra a Upaniṣad, diz assim:

sarvabhūtādhivāsaṁ yadbhūteṣu ca vasatyapi
sarvānugrāhakatvena tadasmyahaṁ vāsudevaḥ

““Eu sou Aquele Ser que é o lar de todos os seres”, declara o sábio, “Aquele Ser que vive igualmente na forma da Graça, em todos os seres. Sou esse Vāsudeva, aquele que vive em todos””.

O sábio fala neste mantra na primeira pessoa, e deve ser lido igualmente na primeira pessoa. “O lar de todos os seres”, Vāsudeva, “Aquele que vive em todos”, é o próprio Ātma, é o Ser, a Presença à qual não podemos renunciar, a Presença que não podemos negar, que é o que somos, o que sempre fomos e sempre seremos. 

Desejamos que o amigo leitor fique inspirado e motivado pelas lindas palavras desta Amṛtabindūpaniṣad, e que o ensinamento, como diz a própria Upaniṣad, fique em seu coração para sempre, a motivar uma vida iluminada, de aprendizado, superação, descobertas e muita felicidade. 

Hariḥ Oṁ.

Amṛtabindu, a Upaniṣad do Néctar da Imortalidade, traduzida por Pedro Kupfer.
Amṛtabindūpaniṣad

Aqui há uma tradução da Amṛtabindūpaniṣad em inglês, comentada por Mahādeva Shastri .

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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Uma resposta para “Amṛtabindu, o Néctar da Imortalidade”

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