Ética, Pratique

Kṣamā, a Santa Paciência

Devo entender que a ansiedade em relação ao futuro não faz parte de mim, e que em nada me ajuda. Devo entender que o desconhecido será sempre uma mistura de bom e de mau e que eu terei de viver com isso. Devo lembrar que não preciso sentir medo em relação ao futuro ou aos outros. Devo conhecer a mim mesmo com paz.

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A paciência na Haṭhayoga Pradīpikā

Haṭhayoga Pradīpikā é a mais importante obra escrita sobre Haṭha Yoga. Pradīpikā significa luz brilhante, comentário, explicação. A obra é então a explicação sobre os métodos do Haṭha Yoga.

Escrita por Svātmārāma, que viveu por volta do século XIV d.C., tem como conteúdo as técnicas fisiológicas e práticas contemplativas do Rāja Yoga. A Haṭhayoga Pradīpikā consta de quatro capítulos, somando um total de 389 versos (ślokas), embora possa variar consoante a edição.

No primeiro capítulo são descritos 16 āsanas (posturas físicas), a sua maioria sentados, requisitos para a prática e a dieta que o praticante deve seguir. No segundo capítulo explicam-se as várias técnicas de prāṇāyāma (exercícios respiratórios) e ṣaṭkarma (purificações).

O terceiro capítulo expõe o processo de despertar a energia potencial e é complementado pelas mudrās (gestos corporais), bandhas (contracções) e outras práticas tântricas de manipulação energética.

O quarto capítulo apresenta as técnicas de percepção do nāda, o som super subtil interior, audível quando as nadīs (canais psico-energéticos) estão devidamente purificadas, fala sobre lāyā, a dissolução da individualidade no todo e ainda nas diferentes etapas de sāmadhi, a iluminação.

No primeiro capítulo, a partir do śloka 16, a Haṭhayoga Pradīpikā apresenta-nos 10 yamas e 10 niyamas, demonstrando ao praticante a importância da observação desses valores na conduta para consigo e para com os demais. Nos nossos dias, esta obra tem um cariz de suma importância, já que vem provar que o Haṭha Yoga não se reduz só à prática de āsanas e prānāyāmas.

Paciência

É importante diferenciar o que é ética e o que é moral. Ética é algo que é universal, e por isso intemporal, existe para além das características socioculturais de um país. Moral é algo local, circunstancial. Assim sendo os yamas e niyamas passam a ser entendidos como universais inerentes a qualquer ser humano e em qualquer contexto.

O código de ética vinculado nesta obra deve ser sempre alvo de atenção e observação por parte de todos nós. Viver uma vida de acordo com estes valores é o caminho que nos ajuda a amadurecer a mente e a prepará-la para o ensinamento. Um dos 10 yamas abordados na Haṭhayoga Pradīpikā é kṣamā. O texto que se segue tem como base a observação e reflexão sobre este valor.

O valor de kṣamā, a paciência

Kṣamā significa paciência. É a capacidade de perdoar e de aceitar todas as situações sem ser perturbado. Quando as coisas correm de um modo diferente daquilo que eu esperava, quando alguém tem um comportamento que eu considero inadequado para mim ou quando eu tenho dificuldade em aceitar-me a mim mesmo como sou surge, na minha mente, um sentimento de raiva ou ódio. Kṣamā, a paciência, é o antídoto para estes dois sentimentos indesejáveis.

A importância de kṣamā no dia-a-dia

A paciência é um precioso instrumento para ser usado ao longo do dia. Observando kṣamā, fortaleço a minha relação com os demais e com o que me rodeia. Desenvolver paciência é saber perdoar, aceitar, ter paciência e não sentir ansiedade pelo que me possa provocar irritação, ódio ou medo.

Desenvolvendo este valor durante um período considerável de tempo eu aprendo a aceitar os outros como são, acomodando-os na minha mente.

No nosso dia-a-dia relacionamo-nos com pessoas e objectos. Estes podem provocar-nos contentamento, desânimo ou decepção e isto não deveria acontecer.

O meu estado de serenidade não depende dos outros porque eu já sou esse estado de paz, eu sou pleno. As pessoas, as experiências e os objectos estão sempre a mudar, no entanto eu não mudo, eu sou o único que permanece sempre o mesmo.

Se a minha felicidade depender do mundo que me rodeia e do que os outros possam ou não fazer por mim, a minha vida está sujeita a oscilar entre momentos de grande alegria e tristeza.

Eu devo entender que saber perdoar e aceitar as coisas como são me traz serenidade, e com esta serenidade mais facilmente percebo a paz e a felicidade que eu sou. Então devo aprender como conseguir que essa serenidade se estabeleça permanentemente e kṣamā é um dos valores que me ajudará nesta tarefa.

Paciência é o antídoto contra a raiva e o medo

Swāmi Dayānanda menciona no seu livro Liberdade que a vida não é possível sem nos relacionarmos com o mundo, sejam pessoas, animais ou plantas.

Ao relacionarmo-nos com o mundo estamos sujeitos a sentir emoções, umas agradáveis outras menos agradáveis. Dependendo do nosso grau de maturidade, quando algo nos desagrada, podemos sentir raiva, ódio e medo pela situação, pessoa ou objecto em causa.

Por vezes estes sentimentos são subtis, mas ainda assim existem e devemos dar a devida atenção, caso contrário corremos o risco destes crescerem e se instalarem em nós definitivamente o que nos impede de tornar a nossa mente mais sadia, originando sofrimento desnecessário.

A raiva surge quando uma pessoa, situação ou objecto provoca em nós descontentamento. Quando não aceitamos algo como ele é a minha primeira reacção é de irritação ou raiva.

A raiva passa a ser um problema se não lhe dermos a devida atenção. Ela pode durar um momento apenas ou permanecer em nós até morrermos, em qualquer uma das situações é-nos prejudicial.

Num momento de raiva podemos destruir amizades, relações, destruir objectos, agredir a natureza e inclusive a agredirmo-nos a nós mesmos.

A raiva pode permanecer em nós até ao fim da nossa vida, pode crescer e transformar-se em ódio e este instala-se no nosso coração, corrói-nos por dentro e transforma a nossa mente numa mente doente.

Uma mente com ódio nunca está em paz, nunca está serena. Uma mente com ódio é uma mente doente e uma mente doente não está preparada para ouvir o ensinamento.

Não me devo deixar irritar com as situações, nem me sentir provocado pelas pessoas porque não tenho qualquer controlo sobre o seu comportamento, mas posso escolher ser sempre calmo, sem me irritar e sem me provocar.

Como yogiṇī, como yogin, devo olhar para o ódio como algo muito sério porque se não o trato de forma especial e durante um período de tempo considerável ele nunca desaparecerá.

Podemos curar esse ódio desenvolvendo kṣamā. Eu devo fortalecer a minha mente para que ela fique serena, para que ela aceite pacificamente os outros como são, para saber perdoar, aceitar e acomodar os outros na minha vida. Não é necessário amar essa pessoa, objecto ou situação, basta aceitar, basta não odiar.

É muito mais fácil quando sabemos que temos oportunidade de escolher, podemos sempre escolher entre odiar ou não odiar. Quando escolhemos a segunda hipótese, não odiar, a nossa mente reconhece um estado de paz, não se irrita e assim zelo pelo meu bem-estar, pelo meu crescimento e maturidade, porque eu não quero ficar doente.

Eu devo simpatizar com o outro aceitando a sua imaturidade e pedir para que ele cresça, posso usar kṣamā para com esta pessoa porque perdoando-a obtenho paz e serenidade. Isto é paciência e, desenvolvendo este valor, obtenho kṣāntiḥ, o contentamento, ou a capacidade de adaptar-me contente, àquilo que não posso mudar.

Outro problema mental é o medo. O medo é universal e exprime-se na nossa vida sob a forma de diferentes ansiedades, umas mais suaves outras mais fortes. Sabemos que esta ansiedade é totalmente inútil, não podemos mudar o futuro pois ele ainda nem aconteceu.

O medo é formado por nossas emoções repetidas, ou saṁskāras/vāsanās. Para que estas desapareçam eu devo praticar o oposto, devo sentar-me calmamente, trazer para fora o que me cria ansiedade e perceber que por trás disso existe uma mente forte, que eu não sou essa ansiedade.

Devo entender que a ansiedade em relação ao futuro não faz parte de mim, e que em nada me ajuda. Devo entender que o desconhecido será sempre uma mistura de bom e de mau e que eu terei de viver com isso.

Devo lembrar que não preciso sentir medo em relação ao futuro ou aos outros. Devo conhecer a mim mesmo com paz. Tudo faz parte do meu crescimento e tudo é necessário para esgotar o meu karma.

Nós não controlamos o que nos pode vir a acontecer porque simplesmente ainda não aconteceu. Por isso eu devo aguardar pacientemente e sem ansiedade o futuro, aguardo em estado de kṣamā.

Durante o meu dia procuro aplicar esse valor sempre que algo me provoca irritação, paro no momento e observo o que se está a passar, vejo a situação ou a pessoa de fora, e identifico claramente o que está a originar esse estado de irritação.

Depois de identificar isso em mim, assumo que devo aceitar o outro como ele é, eu não sou esse estado de irritação, nem quero que este se desenvolva em mim e que me contamine. Aceito o que está a acontecer, sem odiar. Torno-me mais serena, mais tranquila.

O mesmo acontece com o medo, não posso controlar o meu futuro, por isso aceito serenamente o que tem de vir, agradeço o que está a acontecer e o que ainda irá acontecer.

Kṣamā pode ser desenvolvido na minha meditação diária durante algum tempo, meditando neste valor fortaleço a minha mente tornando-a mais madura para lidar com as situações do quotidiano.

Durante a prática de Yoga eu observo também o valor da paciência, torno-me tolerante e serena comigo própria, assumindo as minhas limitações, não me irrito com o facto de não conseguir fazer determinado exercício, não me irrito com o facto de fazer frio ou calor, simplesmente aceito serenamente o que me é oferecido.

Kṣamā mostra-nos o que nós já somos, faz-nos reconhecer esse estado de paz, felicidade, plenitude que já somos. Cultivar a paciência, assim, ajuda-nos a crescer e a fortalecer a mente, preparando-nos para Ātmājñāna, o conhecimento do Eu.

॥ हरिः ॐ ॥

Este texto foi escrito com base nos ensinamentos de Swāmi Parāmarthānanda e Pedro Kupfer. Tânia é professora em Portugal.

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7 respostas para “Kṣamā, a Santa Paciência”

  1. Olá,
    Parabéns pelo texto, realmente é fascinante o modo como as coisas podem acontecer, ver que depende de nós querermos mudar, e mudar para melhor. Belo texto!
    Namaste,
    Nubia.

  2. A objetividade e clareza com que o texto é enunciado nos faz ter a certeza do agora, pois tudo se manifesta no presente, nos trazendo a lúz de que o passado é um meirinho que nunca mais voltará e que o futuro é algo ilusório criado pela mente que mente e tagaréla o tempo inteiro fazendo com que não vivamos o presente, como ja diz o nome (PRESENTE).
    Namastê!

  3. Muito bom este texto, é sempre bom estar lendo e estudar, quando que estamos vivendo nesse mundo dotado de conflintos, e quase que caindo no altomatico , de repente nos deparamos com esses ensinamentos, e lá estamos nós, de novo, vivos e conscientes, prontos para reiniciar as práticas com mais forças e atenção. Agradeço.
    Namastê!

  4. Excelente o texto, sintonizado com nossos anseios e medos nesses tempos de correria e competição.
    Li o texto e me senti como se tivesse dado um a pausa em mim mesma, ate a respiração ficou mais leve.
    Adorei!

  5. Gostei do texto. Mas fico com a seguinte dúvida, sempre acreditei que as coisas devem estar em equílibrio: bem e mal, amor e ódio, etc.
    O texto fala isso sobre o sentir a raiva e o ódio, ou melhor, não sentir, tentar não sentir, mas isso às vezes é tão inverossímil que talvez não sentir essa raiva ou ódio seja negar que ela possa estar ali.
    Será que não precisamos reconhecer o sentimento e aceitar que ele também existe em nós, para que assim possamos vibrar num plano sútil que nos dê saúde e paz?
    Aceitando que ele também existe em nós e que é normal sentir isso podemos então transforma-lo em amor e aceitação.
    Afinal de contas, como vamos saber o que é o amor e valorizá-lo se não conhecemos sua contrapartida?

  6. Oi,
    Gostaria de ter informações sobre cursos.
    Uma boa tarde.
    Namaste,
    Luciana.

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