Ahiṁsā é não-violência
Não obstante parecer repetitivo, trato aqui com maior profundidade do pré-requisito ético do Yoga de Patañjali.
Ahiṁsā, a não-violência, é colocada à frente de todos os yamas e niyamas, não só como sendo o mais importante, mas por ser o objetivo de todas as abstinências e preceitos éticos estabelecidos por Patañjali. Todas as virtudes conduzem a ahiṁsā. Vejamos:
Satya
A segunda abstinência, ou yama, é “abstenha-se de mentir”.
Satya é não somente a Verdade, mas a veracidade. Quando o yogin se abstém de iludir, de mentir, de comunicar aquilo que ele sabe que não é, está agindo em nome do amor que tem pelo outro.
Quando, ao contrário, hipocritamente, explora a credulidade do interlocutor, comete uma violência, um desrespeito, está ferindo, embora de maneira sutil, alguém que precisa da Verdade.
Viver, pensar, querer e dizer a verdade é ahiṁsā; é contribuir para o bem.
Há, no entanto, certas verdades que, se forem ditas de maneira crua, chegam a ferir, a desgostar, a machucar o próximo. Há verdades que, expressas sem caridade, embora sendo verdade, valem por hiṁsā.
Quando tivermos de optar entre uma verdade que machuque e o evitar machucar, ensinam os Mestres, que se sacrifique a verdade ao amor, isto é, que se pratique ahiṁsā mesmo em detriimento de satya.
Há um exemplo clássico para ressaltar esse preceito: se um homem em fúria assassina, um assaltante feroz, lhe perguntar onde se encontra aquele que ele procura matar e você mentir indicando-lhe uma direção falsa ou omitir o que sabe, você está sacrificando a verdade, mas está entronizando o amor.
A verdade sempre deve servir ao amor. Satya deve conduzir a ahiṁsā.
Asteya
A terceira abstinência é “não se aproprie do que não é seu”. Asteya, o não furtar (roubar), é um mandamento em proveito do amor.
Qualquer furto é himsá, é violência, pois causa dano patrimonial e, indiretamente, outros danos à vítima. Não é preciso que o roubo seja de objeto material (dinheiro, jóia, utilidade…).
Devemos evitar igualmente roubar idéias, prestígio… Tudo isso, que tanto se vê em nossa Humanidade infeliz, é hiṁsā. Se não chega a ser ódio, é falta de amor, falta de caridade.
Os lucros excessivos são agressões, e constituem violência. A Humanidade viveria em paz se cada um evitasse se apropriar indevidamente de qualquer valor, tirando-o, desonesta e cruelmente, dos demais.
Haveria para todos o bastante para viver. Em proveito do amor (ahiṁsā), devemos respeitar asteya.
Brahmacarya
A quarta abstinência é em relação ao sexo. “Abstenha-se do sexo” seria sua formulação literal. Mas tal conceito de castidade carece de um esclarecimento. Não se refere a “castração” psíquica.
Não implica repressão. Não significa um anátema à união sexual. Nada disso. Uma vida casta é aquela que conduz (acarya) para Deus (Brahman).
Brahmacarya é o caminho para Deus. E nisso, sexo não é pecado. Pecado, erro e desvio desse caminho é o abuso, a aberração, a degradação, a poluição sexual.
O sexo é tão divino como o pensar, o respirar… A atividade sexual perpetua a vida e é uma função a serviço de Deus. A energia sexual, tanto quanto a espiritual, são expressões de Shaktí (a Mãe Divina).
Como sexo, com pureza e castidade, pode ser condenado como pecado? O anátema não é sobre o sexo, mas sobre a exploração e o abastardamento do que é divino. Explorar sexualmente outrem, corromper sexualmente outrem, é agressão, é violência, é falta de amor.
Patañjali nos diria: tendo ahiṁsā (o amor) por objetivo, não abastarde o sexo, não fira a dignidade de seu companheiro ou companheira, mas ame-o com Amor divinizante.
Diria também Patañjali: não use a Śakti tão exagerada e obsessivamente para a atividade sexual, mas seja sóbrio, e economize a energia para a canalizar no sentido vertical da espiritualização. Em outras palavras: economize no sexo e, assim, acumule ojaśśakti, energia espiritual.
Aparigraha
A quinta abstenção é “não cobice”. A cobiça produz himsá, isto é, desamor, descaridade, violência, crueldade e ódio, e se manifesta como variados crimes contra os outros. A cobiça é uma ansiedade por ter mais, conquistar mais, reter e multiplicar o que já se tem e desfruta…
E tudo isso só é possível sacrificando os outros. Na concorrência – “eu devo ter mais e ganhar mais…” – o ambicioso não vê irmãos diante de si, e muito menos a Unidade Essencial; vê somente vítimas a serem exploradas, dilapidadas, empobrecidas e esmagadas…
Que é isso senão hiṁsā? Os que se abstêm de cobiçar estão concorrendo para o amor, para a caridade e para a justiça. Isso não é ahiṁsā?
Vimos até aqui como os yamas os abstinências contribuem para ahiṁsā. Agora veremos como os preceitos ou niyamas também o fazem.
Śaucan
O primeiro preceito diz: “seja puro”. O praticante de Yoga deve cultivar pureza em seus diversos aspectos: internos, externos, físicos e psíquicos.
Parece difícil encontrar correlação entre pureza interior e ahiṁsā. Um interior impuro é um organismo intoxicado.
Ora, uma pessoa intoxicada, digamos no caso de uma vítima de prisão de ventre e simultaneamente um comedor de carnes (alimentos rajásicos, próprios para as feras, as quais precisam ser violentas), sua predisposição é muito mais para reações bruscas, agressivas e descontroladas do que o contrário.
A limpeza externa, mesmo numa pessoa de escassa beleza, lhe dá uma aparência agradável e amena.
Ao contrário, caracteriza-se como falta de caridade uma aparência suja, desalinhada e fétida. Em homenagem ao amor e benevolência, cuide de sua pureza externa.
Santoṣa
O segundo preceito é “cultive contentamento”. Uma pessoa contente é um violento a menos na sociedade. O descontente, ao contrário, é um perigo solto.
O descontente, sujeito à inveja, à insegurança e à intemperança é potencialmente um agressor. Em silêncio rumina planos, em seu coração deseja algo, mesmo que seja contra alguém. Isso já é himsá.
O homem contente, humilde e satisfeito, por quê vai atirar-se contra quem quer que seja, contra o que quer que seja? O contentamento o faz eqüânime e feliz.
Não se sente ameaçado. Não se sente desafiado. Nem ofendido. Nem intranqüilo. É uma pessoa pacífica, paciente e contente. Isso lhe assegura conviver em paz, em ahiṁsā.
Tapas
O terceiro preceito é difícil de sintetizar, como os outros, em apenas uma sentença, pois o termo sânscrito tapas tem múltiplos significados. Conforme o significado que lhe atribuamos, o preceito muda, mas todos eles concorrem para reduzir a violência no mundo.
Vejamos:
a) “pratique austeridades”, isto é, discipline seus desejos de conforto, de mordomia, de gozo e de sensualidade, não precisando chegar às mortificações patogênicas e masoquistas;
b) “melhore a têmpera, a endurance, a condição espartana no corpo e na mente, tanto que o corpo venha a se tornar um instrumento domado, afinado, resistente à enfermidade, à fadiga fácil, ao ataque do tempo e das intempéries”;
c) “deixe queimar as impurezas, as incrustações adversas ao caminho e os vestígios de condições impróprias à realização maior”;
d) “não se deixe amolecer no conforto, na segurança, no ócio, no luxo, na luxúria…”, o que equivale dizer: fortaleça sua vontade e seu caráter.
Em qualquer dessas interpretações para a palavra tapas (literalmente, queimar), o preceito nos vacinará contra o rancor, o ódio, a violência e a ira, isto é, contra himsá. E não é exatamente isso que se entende por ahiṁsā?
A evidência mostra que só os fracos e medrosos atacam. Assim, um sereno praticante de tapas, que nada teme e tem o dom de suportar tudo com eqüanimidade, um sereno praticante de tapas, que é essencialmente um forte e destemido, jamais produzirá sofrimento no mundo.
Svādhyāya
O quarto preceito recomenda: “estude-se e estude o Ser”. Como pudemos ver nas páginas 17 a 24 de Convite à Não-violência, desde que alguém, por uma auto-análise isenta e corajosa, constatou ser uma pessoa violenta, tem a condição básica para tornar-se não-violenta.
É a partir de uma autognose, ou melhor, de um diagnóstico de si mesmo, que o indivíduo pode se tratar de um traço ou outro de seu caráter, temperamento ou comportamento.
Enquanto iludido, acredito que seu uma pessoa pacífica, não tendo como me curar de minha violência intrínseca e inapercebida.
Nas páginas 46 a 58 do mesmo livro, vimos como só aquele que começa a sentir o Ser, e consegue sentir o mesmo Ser nos seres dos outros, perde definitivamente sua possibilidade de ferir, e, ao mesmo tempo, não pode mais deixar de muito amar.
Se uma autognose não revela a alguém que ele é agressivo e violento, mentiroso, desonesto, vítima de sexualidade mórbida em quantidade e qualidade, ambicioso, impuro, descontente, comodista e frágil… como a correção de tantos defeitos?
Swádhyáya , como o estudo do Ser de todos os seres, é o preceito mais eficiente para trazer paz entre os homens e para implantar o amor.
Īśvaraprānidhāna
O quinto niyama seria expresso assim: “entregue-se total e irrestritamente a Íshvara, Deus pessoal, Aquele, sem a Graça do Qual, é impossível a realização do Yoga, ou União”.
Quem vive entregue a Deus não tem problemas. Não tem reivindicações a fazer. Não tem combates a travar. Já tem tudo, e é tudo.
Seu estado de entregua dispensa-o de ansiedades, fobias, receios, revoltas, indignações, inseguranças, finalmente, de todos esses e outros estados aflitivos da mente, que tornam o homem explosivo, mau, e mesmo feroz, quando ameaçado ou contrariado.
O devoto que se entregou está acima de qualquer ofensa ou queixa; vive em ahiṁsā tão natural como um regato que corre e uma flor que abre. Seu euzinho, que era reivindicante, ranzinza, ciumento, invejoso, ofendível… está gozando a quietude plena.
Do exposto, podemos concluir, sem dúvida, que, se a maioria dos homens praticasse a ética do Yoga, que em nada é legalista, repressiva, obsessiva, fanática e mórbida, reinaria a Paz na Humanidade. Viveríamos gostosa e gloriosamente em ahiṁsā.
Extraído do livro Convite à Não-violência, Editora Nova Era.
॥ हरिः ॐ ॥
Digitado por Cristiano Bezerra.
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