O Deus supremo é uno, indivisível, indescritível e ilimitado. Defini-Lo seria profaná-Lo. Contudo, para os simples mortais contemplarem e perceberem Sua real natureza, algum conceito deve ser dado para servir como apoio.
Mas somente um conceito isolado não é o bastante, desde que aqueles que buscam diferem bastante em suas naturezas individuais, como também em sua capacidade de compreensão.
Por conseguinte, no Hinduísmo aparecem inumeráveis deuses e deusas e histórias relativas a eles. Suas descrições e histórias servem como guias para a evolução gradual do buscador.
Para o ordinário mortal, batido pelas mudanças do mundo, Deus é um distante e desconhecido Poder, continuamente criando, sustentando e destruindo.
Esses três aspectos da Suprema Divindade estão descritos como a Trimurti ou Trindade: Brahmā, Viṣṇu e Śiva Maheśvara. Para o cumprimento de suas funções, cada deus deve ter uma especial capacidade, que é encarnada na consorte de cada um.
Assim, para criar, Brahmā necessita de Conhecimento; daí sua consorte chamar-se Sarasvati, a Deusa do Conhecimento. Para sustentar a Criação, Viṣṇu necessita de prosperidade; daí sua consorte ser conhecida como Lakṣmī, a Deusa da Prosperidade.
Para destruir, Śiva necessita de matéria destrutível; daí sua consorte ser chamada Pārvatī, a Deusa da Matéria (Prakṛti).
Podemos ver o mundo ainda de outra maneira. Achamos que, se agudamente examinarmos a verdadeira natureza do fenômeno chamado mundo, através e na confusão de nomes e formas, somente duas partes componentes servem como sua base, a saber:
1) a matéria inerte – que está continuamente movendo-se e mudando, e
2) o puro Espírito – que compreende todas as mudanças, embora imutável.
Os dois são inseparáveis. Sem a matéria, nada existe para ser experienciado; sem o espírito, ninguém existe para experienciar.
Assim, as duas partes formam um inseparável casal, ou dois princípios em um corpo: Śiva-Pārvatī.
Pārvatī existe como matéria densa, inerte, somente para a hospitalidade do outro princípio, que se torna a “testemunha”. O jogo dos dois permanece enquanto a testemunha vê.
Quando ele se conhece como o Supremo, ele pára de ver e o jogo cessa. Dessa forma, os dois separados jogam e, quando os dois se tornam um, o jogo cessa.
Nas Purāṇas, quando Pārvatī se separa de Śiva e dele se afasta é chamada de Avidyā Māyā (natureza condicionada).
Quando Ela se move em direção a Ele e se torna um com Ele, Ela é chamada de Vidyā Māyā (natureza sábia). Esse par representa o fenômeno no plano cósmico.
Em nível individual, quando o conjunto de vāsanās (tendências) numa pessoa é predominantemente rajas e tamas, ela se torna de natureza extrovertida e afastada de Deus.
Quando as vāsanās são predominantemente sattva, ela se torna introvertida e se volta para o Senhor.
Embora Pārvatī represente a variedade do mundo inerte, enquanto Śiva representa a testemunha, não devemos considerar Pārvatī como matéria inerte somente.
Antes dos deuses e deusas separarem-se em dois, eles são uma indivisível e pura Consciência, plena de felicidade em Sua existência.
Nessa existência plena, uma ondulação de felicidade se move: é o movimento da própria Consciência.
E esse movimento de Consciência continua e se desenvolve em um padrão, reunindo em si mesma mais e mais variedades, novas e mais amplas expressões.
Até que, finalmente, aquele que vê e o que é visto se lancem de maneira irresistível em um magnífico mundo de infinita variedade e de inumeráveis seres viventes, governados por uma série de leis e regras invioláveis.
Formas de Pārvatī
A expansível natureza da Suprema Consciência e sensível natureza dessa mesma Consciência em personificar formas são conhecidas como Srí Lalitā e Kāmeśvara.
Nesse aspecto, Lalitā é a grande Creatrix (Geratriz) da qual todos os deuses surgem, a quem todos os deuses adoram e a quem nenhum pode inteiramente compreender. Foram-lhe dados vários nomes para indicar sua grandeza:
1) Lalitā significa “A Misericordiosa”;
2) Rājāreśvari significa “Rainha das Rainhas”;
3) Tripura Sundarī quer dizer “A Beleza dos Três Mundos”.
Assim, Pārvatī, nesse aspecto, é a fonte de tudo o que é encontrado no mundo. O modelo no qual Ela se move e se expande é adorado.
Seu movimento básico dá origem ao som, ao discurso, à vitalidade, ao Espaço e ao Tempo. Através desses, a pura Consciência, única, aparece em múltiplas formas.
Através de tal análise, um sádhaka pode vir a entender o fenômeno do mundo. Mas, como livrar-se das fascinações do mundo? Uma linda história é encontrada nas Purāṇas:
Párvatí, nascida como filha de Dakṣa, era conhecida como Śakti Devī. Ela era casada com Śiva e eles estavam vivendo felizes.
Por alguma razão, Dakṣa aborreceu-se com Śiva, desenvolvendo um antagonismo com Ele. Dakṣa planejou um grande sacrifício, para o qual convidou todos os deuses, exceto Śiva e sua própria filha.
Śakti Devī soube do plano e ficou surpresa que Ela e Śiva não tivessem sido convidados. Mas, como filha de Dakṣa, tomou a liberdade de assistir ao sacrifício com Shiva, sem convite.
Lá, Dakṣa injuriou Śiva e insultou Śakti Devī. Ela culpou-se por ter comparecido à cerimônia e imolou-se.
Na vida seguinte, nasceu como filha de Himavān, o Rei do Himalāyā. Desde sua infância, Ela se considerava a esposa do Senhor Śiva. Cumpriu severas asceses e finalmente tornou-se sua esposa.
A história guia um sādhaka ao que seu sādhana deve ser. À medida que uma pessoa se ocupa com uma vida de aquisições, engrandecimentos e gozo dos prazeres materiais, o seu conhecimento será mundano no que diz respeito à eficiência, negligenciando o Senhor Śiva.
Dakṣa significa “eficiente”. Assim, o conhecimento relativo à mundana eficiência deve morrer, e renascer como conhecimento espiritual, representado pela filha do Himalāyā, a sagrada montanha onde todo o Vedānta nasceu, através das intensas asceses de grandes sábios.
O conhecimento espiritual assim aceso deve passar pelo fogo de austeridades antes de tornar-se unido ao Senhor em sua atual experiência.
Como filha do Himalāyā, Párvatí é o Supremo Conhecimento personificado nesse papel. Ela é chamada Umā. U mais mā significa “não chore”.
Reagrupando em outra ordem, U-m-ā torna-se Auṁ ou Oṁ. Assim, Umá, a Mãe compassiva, exorta o buscador a não se afligir, e dá o conhecimento do Átmá.
Como deusa criadora do mundo, Pārvatī representa inumeráveis formas e aspectos da Criação, pelo que lhe foram dados muitos nomes. Alguns de seus mais conhecidos aspectos são:
Śakti – Em seu ativo aspecto criativo, benevolente, sustentáculo da vida – o princípio maternal -, Pārvatī é conhecida como Śakti, significando “Poder Universal”, ou energia;
Kālī – Como Kālī, a Negra, Ela é o “Poder do Tempo”, o princípio de destruição e aniquilamento, completando o ciclo do nascimento e morte iniciado com Śakti e sustentado por Pārvatī.
A palavra Kālī é a forma feminina de Kāla, que significa “tempo”. Dessa forma, Kālī representa a impermanência do universo. Ela pode também ser vista como destruidora da ignorância.
Umā – Como personificação do Supremo Conhecimento, Pārvatī é conhecida como Umá. Como “luz” e “paz da noite”, Umā é por natureza Puro Conhecimento, e Sua forma é o espaço ilimitado. Ela representa aquilo que é eterno.
Durgā – Significa “de difícil alcance” e representa o aspecto guerreiro de Pārvatī. Nesse aspecto em particular, a deusa é representada com o leão como seu veículo.
Annapūrṇā – Anna significa “comida” e pūrṇaḥ quer dizer “cheio”. Assim, Annapúrná é a doadora de comida em abundância.
Devī – “A que brilha” ou Deusa.
Mahadevī – “A consorte do Grande Senhor”.
Maheśvarī – “A Grande Deusa”.
Extraído do jornal Pramā (Ano I, No 1, de março de 1988), do Vidyā Mandir – Centro de Estudos de Vedānta e Sânscrito, da professora Gloria Arieira. Digitado por Cristiano Bezerra.
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