Pratique, Yoga na Vida

Vivendo a Ética do Yoga

Este é um assunto importante e delicado, que sempre se menosprezou. Ao que parece, os yogis do século XXI estão tão ocupados nos seus misteres, que esqueceram ou passaram a considerar desnecessário deter-se em detalhes aparentemente insignificantes como não mentir ou cultivar o contentamento.

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No Yoga como forma de viver, a ética sempre foi  um assunto importante e delicado, que infelizmente é bastante menosprezado na atualidade.

Porém, ao que parece, a imensa maioria dos yogis do século XXI estão tão absorvidos nas redes sociais que passaram a considerar desnecessário detalhes insignificantes como cultivar a veracidade, a não-violência ou o contentamento.

Se você não tiver tempo ou disposição para agir conforme a ética do Yoga, tampouco terá tempo nem atitude para praticá-lo.

Por outro lado, é bastante embaraçoso falar sobre ética, porque ninguém gosta de reconhecer-se como mentiroso ou ladrão, para dar os exemplos mais desconfortáveis.

Ao invés de ver quem vai atirar a primeira pedra, lembremos que yama e niyama são os dois primeiros passos da caminhada, condição indispensável para que a prática dê resultados concretos.

Ética na prática: Yama

Yama significa controle ou domínio. É o pontapé inicial. Os yamas são as cinco proscrições:

1. não usar nenhum tipo de violência (ahimsā);

2. falar a verdade (satya);

3. não roubar (asteya);

4. não desvirtuar a sexualidade (brahmācārya); e

5. não se apegar (aparigrāha).

Esses refreamentos pretendem purificar o yogin, aniquilar a subjetividade advinda do egocentrismo e prepará-lo para os estágios seguintes.

Desempenham o controle dos impulsos naturais, que se manifestam através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca, órgãos sexuais e excretores.

Ética na prática: Niyama

Niyama, as prescrições psicofísicas, compreendem cinco disciplinas:

6. a purificação (śaucan);

7. o contentamento (santoṣa);

8. a austeridade ou o esforço sobre si próprio (tapas);

9. o estudo das escrituras do Yoga e de si próprio (svādhyāya); e

10. a consagração ao Ilimitado (Īśvara pranidhāṇa).

Essas atitudes cumprem a função de domínio sobre os cinco órgãos da percepção (jñānendriyas): olhos, ouvidos, nariz, língua e pele.

Esse controle dos sentidos aponta à organização da vida pessoal do praticante.

1. Ahiṁsā

Ahimsā, a não-violência, entende-se como não matar, não agredir, nem causar nenhum tipo de dor a nenhum ser vivo.

Os outros quatro yamas são corolários, conseqüências naturais da não-violência. Vyāsa, comentando o sūtra II:30 de Patañjali, diz:

“Ahimsā é abster-se de ferir qualquer ser, a qualquer momento e de qualquer maneira. A verdade e as outras formas de refreamento e observâncias se baseiam no espírito da não-violência.”

2. Satya

Satya, a verdade, consiste em fazer coincidir pensamentos, palavras e atos, o que deve entender-se como evitar a falsidade em todas suas formas, tanto nas relações do yogin com as pessoas quanto dele consigo próprio.

Satya é procurar sempre a verdade, independentemente de aonde essa busca possa nos levar. Entretanto, Vyāsa esclarece:

“A palavra pronunciada com o propósito de comunicar o próprio pensamento a outrem é verdadeira, desde que não engane ou confunda.

“A palavra deve pronunciar-se não para ferir, mas para beneficiar. Porque, se ferir, não produzirá harmonia, apenas sofrimento.”

Noutras palavras: a verdade, por verdadeira que seja, não dói.

3. Asteya

Asteya significa não roubar, não cobiçar ou invejar bens ou conquistas de outrem.

Não é apenas não roubar, mas eliminar totalmente o impulso de apoderar-se de objetos (ou idéias) alheios. Vyāsa ensina:

“Steya significa pegar incorretamente coisas pertencentes a outrem. Asteya é abstenção dessas tendências, mesmo que em pensamento.”

4. Brahmacarya

Brahmacarya, o não desvirtuamento da sexualidade, pode interpretar-se tanto como total e absoluta abstinência sexual quanto não dissipação da energia através do orgasmo.

Em ambos os casos pretende-se, embora por meios diferentes, refrear a força geradora, a fim de entesourá-la para a evolução no sādhana.

“Emprega-se hoje a palavra brahmacarya com o significado de casto, mas a castidade é uma noção ambígua. Nenhum homem é casto, já que de uma maneira ou de outra emite periodicamente seu sêmen, nem que seja dormindo.

“O que é proibido ao brahmācārin não são as práticas sexuais, são os vínculos e particularmente os atos reprodutores, que, por suas conseqüências, o ligam à sociedade, privando-o da sua liberdade.

“O brahmacarin não deve ter relacionamentos que impliquem riscos de concepção. Deve ser, de qualquer modo, econômico com seu sêmen, consagrando-se ao estudo”.

Alain Daniélou, Śiva e Dionisos, p. 98.

5. Aparigraha

Aparigrāha, a não possessividade, traduz-se em generosidade e desapego em relação não apenas aos bens materiais, mas também às relações afetivas. O apego nos tira da sintonia necessária para praticar.

Vyāsa esclarece: “Aparigrāha significa desistir de cobiçar, considerando que a cobiça e o acúmulo causam problemas, que as coisas estão sujeitas à decadência e que a associação com elas causa desconfiança e rancor”.

6. Śaucan

Śaucan é a purificação. A purificação externa inclui a dieta vegetariana, exercícios de purificação orgânica (como a lavagem das vias respiratórias e dos aparelhos digestivo e excretor), e manter limpo o ambiente em que se vive.

Um organismo poluído por hábitos impróprios como o uso de drogas ou alimentação intoxicante gera comportamentos e condicionamentos contraproducentes para a prática do Yoga.

A purificação interna inclui a eliminação das impurezas do pensamento. As técnicas mais refinadas de purificação são tattva śuddhi e citta śuddhi (antarmouna).

7. Santoṣa

Santoṣa, o contentamento, consiste em cultivar um estado interior de permanente alegria, independentemente das circunstâncias externas, o que facilitará muito o progresso na prática. Lembre que o melhor surfista não é o que surfa a maior onda: é o que tem o maior sorriso nos lábios.

O melhor yogi não é o que faz o exercício mais complicado: é aquele que sabe viver melhor sua vida (o que está estreitamente vinculado com o tamanho do sorriso).

8. Tapas

Tapas é calor, ascese, determinação, força de vontade concentrada, austeridade, esforço sobre si próprio: “produz a destruição das impurezas, o que conduz ao aperfeiçoamento da sensibilidade corporal”.

O objetivo desse esforço sobre si próprio é atingir um estado de purificação que permita ao indivíduo tomar posse do seu corpo, indo além dos limites impostos pela percepção limitada da realidade.

Como diz Kṛṣṇa na Bhagavadgītā: “Uma linguagem que não fira, verídica, amigável e benéfica, o estudo regular das escrituras, tal é o tapas da palavra.

A serenidade e clareza de espírito, a doçura, o silêncio, o autodomínio, a total purificação do caráter, tal é o tapas consciente.”

9. Svādhyāya

Svādhyāya é o estudo da metafísica do Yoga e de si próprio; abrange não apenas o autoconhecimento através da reflexão sobre a sabedoria das escrituras (śāstras), mas também a aplicação prática desse conhecimento.

O svādhyāya alarga os horizontes do intelecto, enriquece e estimula a prática. O japa, a repetição de um mantra com fins de meditação, também pode considerar-se svādhyāya. Diz a Viṣṇu Purāṇa, VI:6.2:

Do estudo deve-se passar ao Yoga.
Do Yoga deve-se passar ao estudo.

Pela perfeição no estudo e no Yoga,
a Consciência Suprema se manifesta.

O estudo é um dos olhos com que vemos o Ser.
O Yoga é o outro.

10. Īśvaraprānidhāna 

Īśvarapranidhāṇa, é a consagração a Īśvara, o Ilimitado, e ainda Īśvara como arquétipo do yogi, o modelo de conduta ética a ser seguido pelo praticante.

Īśvara pranidhāṇa também significa entregar as ações e seus frutos a uma vontade superior à própria.

Pode entender-se como autoaceitação no momento presente ou ainda como serviço à Humanidade.

A melhor definição de Īśvara pranidhāṇa está na Bhagavadgītā: bhavitam bhavati eva: “O que tiver que ser, será”.

Esse mesmo śāstra ainda afirma que “o seu dever é agir, sem procurar recompensas pelo que você faz”.

Īśvara pranidhāṇa pode também incluir práticas que tenham como resultado o controle dos órgãos dos sentidos.

Por exemplo, a prática de āsanas pode ser usada para controlar as mãos e os pés, o que vai facilitar a permanência nas posições sentadas.

Poucos livros ou escolas de Yoga hoje em dia, e ainda menos no Ocidente, dedicam-se a ensinar os yamas e niyamas.

Uma pequena reflexão sobre a ética do Yoga revela sua importância na manutenção da “ecologia” social e individual.

Através da prática destes preceitos se estabelece uma convivência pacífica, harmoniosa e feliz na sociedade.

É por essa razão que Patañjali os chama sarvabhauma, supremos ou universais, pois eles valem para todas as pessoas e em todas as circunstâncias.

Desprogramar os Condicionamentos

Se diz, muito equivocadamente, que o Yoga torna o indivíduo egoísta e apolítico.

Mas, o que verdadeiramente acontece, é que o Yoga desprograma os condicionamentos resultantes das ideologias, as tradições ou os valores impostos pela sociedade.

Ensina o indivíduo a ser ele mesmo e dá uma liberdade que está além dos preconceitos e formas de comportamento estabelecidas pela sociedade.

Paradoxalmente, desenvolve ao mesmo tempo uma consciência de solidariedade com a sociedade em que o indivíduo percebe o planeta e a raça humana como uma unidade. É uma verdadeira revolução interior.

Cada aṅga ou parte do Yoga de Patañjali tem um propósito definido.

Esses dois primeiros passos não são específicos dele, mas configuram uma base de purificação mental, psíquica e física que resultará indispensável nas etapas posteriores.

O Yoga não é moral nem moralizante: estas prescrições possuem uma função meramente utilitária e, embora possam funcionar como códigos para facilitar a convivência social, somente se praticam em função do objetivo final.

A primeira palavra que aparece no Yogasūtra é atha, que significa agora. Agora, a seguir, depois que algo já foi ensinado.

Isso, porque o Yoga não é para iniciantes. Por isso que existem os yamas e niyamas.

Você não conseguiria, e praticamente ninguém, seguí-los à risca. Mas mesmo assim pode usar o Yoga. Porque diz o provérbio indiano:

Yata Brahmande tata pindade.
“Assim como é no Ilimitado, assim é também no corpo”.

Essa afirmação pode parecer misteriosa. Mas, como colocar realmente a ética em prática?

Talvez você possa concordar comigo em que discorrer sobre a ética é teoricamente muito interessante, mas impossível de aplicar-se na prática por seres humanos como a gente, porque os yamas e niyamas são para santos, mas o Yoga é para gente como nós.

Na verdade, você não precisa seguir todos os yamas e niyamas ao mesmo tempo. Escolha apenas um, e mantenha-o a qualquer preço. Os outros virão sozinhos.

Pessoalmente, escolhi satya, a verdade. Nós mentimos o tempo todo, sem perceber, gratuitamente.

Mentimos para a nossa família, para os nossos amigos, para as pessoas com quem nos relacionamos no dia-a-dia e, principalmente, para nós mesmos.

E, quanto mais se mente, mais se reforça o vritti e o hábito de mentir, o que é um obstáculo intransponível se se quiser realmente avançar na prática.

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein disse que “quem sabe demais acha difícil não ter que mentir”. Em certas circunstâncias, ele tem razão: às vezes, a responsabilidade de lidar com a verdade pesa bastante.

Mas isso não significa que você passará a usar a “verdade” para agredir os outros “por seu próprio bem”.

Porque a verdade pura, aquela que vêm do coração, não fere nem dói. Vou lhe contar a história do ladrão e o rei.

ética

A história do ladrão e o rei

Uma vez, um ladrão quis aprender Yoga. Foi visitar um mestre e disse-lhe que queria praticar, mas que era ladrão, bêbado e mentiroso.

O mestre falou-lhe da ética do Yoga, e disse que, para começar, deveria escolher um yama ou um niyama e ater-se a ele. O ladrão pensou:

“Minha profissão é roubar. É o que sustenta a minha família, portanto, fora de questão seguir asteya. A bebida é a minha única fonte de prazer, e tampouco vou largá-la.

“Ou seja, que nem śaucan nem tapas. Mas, deixar de mentir não vai me custar tanto. Portanto vou seguir satya.” E assim foi que ele decidiu falar somente a verdade.

Uma noite, o nosso ladrão foi roubar o palácio real. Eis que o rei estava passeando pelo jardim após um dia entediante, buscando algo que lhe tirasse o vazio existencial.

Os dois se encontraram e o rei pergunta: “quem é você?”. O ladrão disse a verdade: “sou um ladrão e vim roubar o tesouro real.”

O rei viu ali a possibilidade de viver a emoção e a aventura que estava procurando desde cedo, e então falou:

“Também sou um ladrão. E sei onde se guarda a chave da sala do tesouro. Façamos juntos o trabalho e dividamos o lucro”. O ladrão concordou.

Os dois aventureiros entram no palácio, chegam na sala e dividem o tesouro. Porém, acham três enormes diamantes, que não podem ser divididos sem beneficiar um deles mais do que o outro.

O ladrão, apelando para aquela generosidade que ocasionalmente conseguem ter os da sua profissão, diz: “fiquemos com um diamante cada, e deixemos o terceiro para o rei.

Afinal, coitado, ele acabou de perder tudo.” Ao separar-se no jardim, o rei pergunta ao ladrão onde ele mora, e fala da possibilidade de contatá-lo novamente para futuros “trabalhos”. O ladrão fala a verdade.

No dia seguinte, o rei vislumbra a possibilidade de testar seu primeiro ministro.

Chama-o e diz: “ontem à noite tive um sonho estranho. Sonhei que o tesouro fora roubado. Vá à sala conferir, pois um pressentimento está oprimindo meu coração.”

O ministro entra na sala, vê o diamante que sobrou e pensa: “o nosso rei perdeu absolutamente tudo. Este único diamante não fará nenhuma diferença”.

Esconde a pedra preciosa sob a túnica e volta à sala do trono, dizendo que, efetivamente, o tesouro inteiro foi roubado.

O rei manda prender o ladrão. Ao ser interrogado na frente do ministro, conta o acontecido: desde o encontro com o “colega” de profissão até o detalhe do diamante que eles deixaram na sala.

Desta forma, o rei descobre que o seu ministro não é de confiança, pois mente e rouba. Manda prendê-lo imediatamente.

E, em seu lugar, nomeia primeiro ministro seu novo amigo, o ladrão. Este, dada a sua nova ocupação, deixou de roubar. Como passou a ter outros prazeres, deixou igualmente de beber.

Ou seja, se você também escolher e seguir apenas um dos yamas e niyamas, os outros acontecerão sozinhos.

Se quiser, tome essa escolha como um exercício temporário de ética, digamos durante algumas horas, dias ou semanas, para observar a suas próprias reações.

Se, por exemplo, você escolheu seguir a não-violência e sentiu dificuldades, ou não ficou conforme com o resultado, há ainda as outras possibilidades.

Depois que você conseguir a firme resolução de continuar com a sua decisão, verá que fica mais e mais fácil mantê-la, em qualquer circunstância. O convite está feito.

Mas lembre que isto deve ser tomado como puro sādhana no dia a dia, e que deve servir como objeto de observação de si próprio, a cada momento.

Essa observação serve ao propósito de treinar e testar o seu nível de consciência e a sua atenção, e ver como você reage ao seu próprio karma.

Isso por sua vez nos conduz a duas novas perguntas: o que é o karma? Como ele se vincula com a ética?

Karma, ética e liberdade

Karma é o resultado das ações, a lei de causa e efeito. Ação e reação configuram dois aspectos da mesma realidade.

A noção de karma não tem nada a ver com fatalismo ou determinismo (embora o efeito esteja potencialmente contido na sua causa): muito pelo contrário, é uma realidade que pode ser modificada, uma sorte de destino maleável. 

Swāmi Vivekānanda definiu o karma desta linda maneira:

“A eterna afirmação da liberdade humana. Nossos pensamentos, nossas palavras, nossos atos, são fios de uma rede que tecemos ao redor de nós mesmos.”

Controlar o karma é ser senhor de si próprio. Isso se faz através da prática constante de yama e niyama.

O primeiro passo é tomar consciência de que ele existe, analisá-lo e estudar como criamos o nosso próprio destino.

Assim poderemos evitar as coisas que nos fazem mal e atrair as que nos fazem bem.

Temos que aprender a reconhecer as nossas tendências, que se pautam pelo saṁskāra, o conjunto das latências subconscientes.

Isso não significa apenas ser saudável e feliz, ou ter uma relação harmônica com as pessoas e o meio em que se vive.

Também, conhecendo o nosso karma, podemos nos libertar dele, que é em definitiva o objetivo final da prática.

Você não deve deixar que as coisas “aconteçam” consigo. Afirma Vyāsa:

“As coisas fortuitas não colocam a Natureza em movimento. Apenas a remoção dos obstáculos permite que ela se manifeste, como o agricultor que remove as barreiras para que as águas possam fluir”.

Removidos os obstáculos, a Natureza se desvela. Ser virtuoso pela virtude em si, não traz mokṣa, a liberdade, nem faz com que a verdadeira natureza se manifeste.

A virtude não é o que irá produzir a evolução. A virtude é apenas uma conseqüência. O efeito não determina a causa. É determinado por ela. Por exemplo, o poder de ouvir é a causa.

O que se ouve, o efeito. O ato de ouvir não é a causa material da audição. O poder de agir em consonância com a Natureza é a causa. A ação correta, a conseqüência.

Os rituais coletivos, como o agnihotra, transformam os karmas coletivos. O sādhana pessoal tem como objetivo sutilizar o karma individual.

Libertar-se do próprio karma é a maior e mais ambiciosa tarefa que um homem pode empreender.

Puruṣa, o Ser Ilimitado, é igualmente o axis mundi, o ponto central do Universo.

Se tomarmos consciência da nossa verdadeira natureza, o Universo responderá em consonância.

Os objetivos se conseguem afinando-se com a natureza da Natureza. É a natureza da Natureza se alcança usando os yamas e niyamas.

Mas aqui temos um paradoxo: o yogi que consegue aniquilar o seu karma, em verdade não é livre, pois tem uma única opção: agir em consonância com a Natureza.

Eliminar o karma não significa renunciar às coisas do mundo, mas ir além dos condicionamentos que nos atam a ele e nos fazem pensar que a felicidade depende das coisas que vêm de fora.

Para isso, é fundamental entender o Karma Yoga, método que busca a realização pela da ação desinteressada, sem considerar seus resultados.

O śāstra que ensina esta forma de Yoga é a Bhagavadgītā, em que Viṣṇu, encarnado como Kṛṣṇa, ensina o príncipe Arjuna a viver em harmonia com o karma, a lei universal, e o dharma, a lei humana.

O ensinamento tem como pano de fundo a terrível guerra travada entre duas famílias reais, primas entre si: os Pāṇḍavas e os Kauravas.

Esse confronto simboliza a dialética da vida.

Arjuna se nega a matar pessoas do seu próprio sangue, refugiando-se numa renúncia mal entendida.

Entretanto, é convencido por Kṛṣṇa sobre a inevitabilidade da ação, pois, desde que o homem está vivo, está sujeito à lei do karma, sendo-lhe impossível fugir à ação.

Renunciar não significa subtrair-se à vida, isolar-se do mundo e da sociedade:

“A ação errônea, como dizem os hindus, não é viver no tempo, mas acreditar que não existe nada mais fora dele.

“É-se devorado pelo tempo, pela História, não porque se vive no tempo, mas porque se crê na realidade do tempo e, por esse motivo, esquecemo-nos ou desprezamos a eternidade”.

Mircéa Éliade, Mitos, sonhos e mistérios, p. 51.

Kṛṣṇa propõe um Yoga em que ação e contemplação estão intrinsecamente ligadas.

O que é necessário fazer é viver a própria vida executando as ações cabíveis a si mesmo, eliminando o apego aos seus resultados.

Numa palavra, traz o Yoga para a vida secular, para aqueles que não podem renunciar às suas responsabilidades humanas:

“Ó Arjuna, aquele que, mantendo os sentidos sob o controle da faculdade mental, se empenha desinteressadamente com os órgãos da ação no Yoga da ação, esse é eminentemente superior.

Portanto, realiza a ação a ti devida, pois a ação é superior à inação: mesmo tua vida física não saberia sobreviver sem ação”.

Bhagavadgītā, III:6-8.

Ser yogi não significa obcecar-se com a técnica, mas esforçar-se para que a perfeição flua através de todos os atos, mantendo sempre uma atitude positiva e aberta, evitando fechar-se em fórmulas rígidas.

Ou seja, a iluminação está aqui mesmo, e pode conseguir-se lavando a louça ou fazendo qualquer outra atividade: fazendo o que você tem que fazer! Diz o sábio Vasiṣṭha:

Toda a criação é paz, infinita e eterna.
Veja a infinita consciência em tudo e fique em paz.
Yoga é a cessação das experiências dos objetos.

Fique em Yoga e faça o que você tem que fazer.
Fique em Yoga e viva.
Lāghu Yoga Vaśiṣṭha, CXXVI:78.

O importante é possuir mais disposição interior para viver e trabalhar, ser mais consciente e superar-se, mas sem que isto se transforme numa compulsão.

A cada dia oportunidades nos são oferecidas para aprender a superar-nos: não as deixemos passar. Ao mesmo tempo, lembre de não confundir atitude positiva com virtudes positivas.

Convém manter uma disposição positiva, sem necessariamente ser inofensivo, bonzinho ou indulgente demais.

Em determinadas circunstâncias, uma atitude firme acaba sendo mais sadia ou rendendo mais frutos que o excesso de bondade.

॥ हरिः ॐ ॥

Mais sobre ética aqui. Matthew Remski é óptimo no tema da ética. Visite-o aqui.

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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21 respostas para “Vivendo a Ética do Yoga”

  1. Olá Pedro… Gratidão!

    Você coloca muitos elementos de reflexão…
    Os descondicionamentos, aqueles impostos pela sociedade desde nossa infância, agora, espaços ocupados por preceitos éticos (toda semana incorporo um dos Yamas ou Niyamas como sadhana) não correm o risco de se tornarem ”ideologias”?

  2. Pedro, você sempre traz muitas reflexões a respeito do yoga de hoje. Portanto, você que me inspira confiança e pode conhecer swami Dayananda, gostaria de saber o que pensa sobre o contexto histórico em que a India se encontrava no período da sistematização por Patanjali. É sabido, pelo que entendi, que nesta época tal sistematização ocorreu para inclusão do yoga em sistema ortodoxo, regido pelos brâmanes. Diferente do que ocorreu e convergiu na criação do Budismo, por exemplo, justamente por não reconhecer a autoridade dos Vedas. Assim como em tal época, mulheres não faziam parte… o corpo físico era considerado sujo e denso. Até que futuramente temos a criação do Hatha Yoga. Portanto, minha questão é: o quanto tal sistematização (yamas, niyamas e afins) são ferramentas de controle e organização social como os 10 mandamentos cristãos, por exemplo? Ficarei grata se puder me responder e/ou me indicar textos que possa falar sobre. Grata.

  3. Discordo infelizmente, consideravelmente a respeito de sua abertura no texto onde se refere que estamos tão absorvidos nas redes sociais que desconsideramos estes detalhes, quando na verdade quem faz a prática da yoga não só estuda tudo isso com muito afinco como aliás tem a compreensão do sânscrito, onde a maioria das escolas de yoga de qualidade ensinam, não deixando de retomar os Vedas.

  4. Esclarecedora, verídica e ampla explicação. Gratidão, Pedro. Grato em nome do povo Paulistano.

  5. Excelente abordagem frente a era atual em que vivemos, ensinamento atemporal que ajuda a todos a caminhar rumo ao equilíbrio, cada um como pode. Gratidão! Namastê ????

  6. Estive estudando sobre a corrente filosófica dos estoicos e aplicado a minha vida. Fiquei impressionada o quão alinhadas as duas filosofias estão. Parece que uma complementa a outra sem se anular em nada. Obrigada pelo artigo, excelente texto!

  7. Perfeito. Atual! Sempre bom reler! Obrigada pelos ensinamentos!

  8. muito bom o texto! parabéns pela iniciativa de difundir conteúdo de qualidade.

  9. Como é bom navegar na internet e achar um conteúdo tão interessante… valeu por compartilhar =)

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