Punta de Lobos, uma impressionante ponta de pedra que entra no oceano na região central da costa chilena, é um dos lugares mais privilegiados para a prática do surf, pois recebe as maiores e melhores ondulações do sul do Oceano Pacífico. As ondas desse pico são certamente grandes e podem ser assustadoras para quem está acostumado, como nós, surfistas do Atlântico, às ondas do outro lado do continente, geralmente menores e mais amigáveis. O lugar é cheio de vida, com focas, lobos e leões marinhos, baleias, golfinhos, orcas, pelicanos e gaivotas dividindo o espaço com os surfistas. É fácil se esbarrar nesses bichos numa caída, literalmente.
A entrada na área de surf se faz descendo uma falésia rochosa, atravessando um canal com muita corrente, subindo numa ilhota de pedra com dois morros imponentes, e saltando dessa ilhota na frente de uma laje para o mar aberto. Há uma série de movimentos bem cuidadosos que precisam ser feitos se quisermos chegar seguros na área de arrebentação das ondas. É preciso ter paciência e temperança para não se deixar dominar pelo medo ou pela ansiedade de pular logo no mar. Saltar da laje na hora errada pode ser fatal.
Aqueles que se deixam dominar pelo medo, ficam congelados sobre a ilha, olhando as ondas sem compreender qual seria o momento certo para saltar. Ao saírem do estupor, retornam prudentemente por onde vieram. Os precipitados, de modo geral, escolhem mal o momento do salto e são arrastados por cima das rochas, quebrando a prancha e/ou correndo o risco de se lesionar gravemente. Num dia de mar grande, não é raro ter que esperar por cerca de uma hora pela calmaria, para poder saltar com um mínimo de segurança. Sem paciência e experiência na observação e correta leitura do mar, esse salto é algo extremamente perigoso de se fazer.
Neste último verão testemunhei algo que me chamou a atenção. Um dia de mar bastante grande, onde é necessário especial cuidado para entrar no mar, vi uma menina bem jovem se jogando da laje na hora errada e sendo arrastada pelas ondas para cima das rochas, ralando a prancha e boiando ao sabor das espumas e fortes correntezas que rodeiam a ilhota. A coitada parecia uma formiga num liquidificador. Para sorte dela, as rochas são cobertas por umas algas enormes, chamadas cochayuyos, que amortecem bastante o impacto. Fiquei no pico, sentado na minha prancha observando atentamente, para ver se ela saia sozinha da situação ou iria precisar de ajuda. Nesse ínterim, fiquei me perguntando o que levaria alguém a se colocar numa situação dessas.
Aí, lembrei do sábio grego Aristóteles. A inexperiente surfista, com mais sorte do que juízo conseguiu sair do sufoco apenas levemente contundida, mas bastante asustada. Quando chegou no pico, falei com ela sobre os ensinamentos desse filósofo, que poderia lhe ajudar a evitar que a situação se repetisse. Aristóteles pensava que, para sermos felizes, devemos viver uma vida equilibrada, evitando os excessos, e que esse equilíbrio deve ser adaptado a cada pessoa.
O caminho do meio
Algo que caracteriza o pensamento deste grande filósofo é a busca do caminho do meio, que ele chamou de meio áureo. Esse meio áureo é o ponto de equilíbrio desejável entre o excesso e a deficiência. Por exemplo, no caso do sentimento de coragem, é preciso encontrar o ponto de equilíbrio entre o medo e a confiança. Excesso de medo ou falta de confiança podem nos imobilizar, e assim perdemos a festa do surf, a do Yoga e outras tantas na vida. Excesso de confiança ou ausência de medo podem nos levar a agir de modo torpe ou precipitado, e nos colocar em situações desconfortáveis, para dizer o mínimo, como é o caso da menina desta estória. O mesmo vale para os demais sentimentos vinculados com a tomada de decisões e a realização de ações.
O florescer da felicidade nada tem a ver com honra, riquezas ou poder, mas com a atividade racional dentro dos parâmetros da virtude. Trocando em miúdos, com fazer a coisa certa. Tal atitude manifesta virtudes do caráter como a honestidade, a fraternidade, a temperança e a eqüanimidade. Esse estado de plenitude ativa foi chamado summun bonum, o bem supremo, aquele fim que não serve como meio para mais nada, mas que dá sentido a todos os meios, pois é o fim definitivo.
A boa vida não é uma vida de busca de prazeres ou satisfação pessoal, mas é a vida mais prazerosa. A boa vida não é uma vida que busque a riqueza pela riqueza em si mesma, mas um fim ao qual a riqueza esteja subordinada. A boa vida não alimenta a necessidade de reconhecimento por parte dos demais, pois a pessoa que a cultiva conhece a dignidade intrínseca a ela própria. A boa vida não busca a virtude, pois a virtude é uma conseqüência de cultivar a consciência, e não a causa dela. Em suma, a vida de uma pessoa plena, satisfeita e feliz, é uma vida completa em si mesma.
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Excellento Pedrô, fui imaginando a cena de vcs no mar e essa conversa acontecendo, totalmente Aristotélico… \\\’Aristóteles, de facto, prefere as margens do mar Egeu,\\\’…
Caro Pedro
Muito bom, meu amigo. Muito bom.
Forte Abraço e Saudades,
Celso
A cada um o seu dharma. Eu gostaria de deliciar-me com uma outra versão dessa mesma história. Um dia em Punta de Lobos, uma menina virou Loba. A jovem era assitida por homens … de longe, no alto, em lugares de segurança. Silenciosamente ela era chamada de coitada, formiguinha, atrevida… Ainda assim ela escolheu atrever-se e correr o risco de ser engolhida pelo mar. A vida é risco calculado. Ela se entregou. E sobreviveu. Fé na vida, minha gente. A cada um o seu dharma.
Tudo de OM em 2011!
Boa Alessandra!Por que há muitas perspectivas num evento, graças aos deuses!Equilíbrio é a regra, mas as exceções de vez em quando são ótimas.Também prefiro “pecar” pela atividade!Fé na vida minha gente!Om namah ShivayNamaste.
Eu que mal consigo ficar em pé sobre uma prancha me surpreendi com este artigo – o perigo das ondas realmente pode ser uma metáfora para a vida – uns se arriscam demais e se afogam, outros, por medo, ficam só molhando os pezinhos, deixando de vivenciar a plenitude da existência…. Equilíbrio é tudo!
Abraço!
Meu querido,
grato pelo texto reflexivo!
Abração e boas ondas pacíficas pra ti.
Um beijão pra Ângela!
Harih Om!
Como diz a canção:….é preciso sabe viver!
Pedro, gosto muito quando você compartilha os conhecimentos com os exemplos vividos.
Grata
Namaste
Om namah shivaya
Depois de todo o sufoco descrito, a menina foi no pico, visto ter sido o local da conversa dos dois (Pedro e a menina). Depois das emoções que uma situação dessas provoca, ela foi la cumprir o seu dharma.
Não consigo deixar de traçar um paralelo com a Bhagavadgita: as dúvidas de Arjuna, o ensinamento de Krsna e o cumprimento do dharma. Esta poderia ser a atualização da Gita aos tempos de agora, introduzindo então no capitulo III: karma/surf/yoga. 🙂
Abraços, Pedro.
Zé.