Pratique, Yoga na Vida

Desapego, Entrega e Liberdade

Se o resultado da entrega é a libertação e se a libertação e o desapego são inseparáveis, então o resultado da entrega também será o desapego e o resultado do desapego será a libertação?

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Se o resultado da entrega é a libertação e se a libertação e o desapego são inseparáveis, então o resultado da entrega também será o desapego e o resultado do desapego será a libertação?

Lembro, quando no começo deste ano, num trabalho de grupo com meninas de 13, 14 anos que estavam grávidas, ou já tinham filhos, perguntei qual eram os aspectos positivos e negativos de ser mãe. A maioria delas disse que a coisa ruim de ser mãe é acordar a noite para dar de mamar, quando o bebê chora e não te deixa dormir, ou o fato de não ter mais liberdade para sair, dançar, etc. Mas o que mais me chamou a atenção foi o aspecto positivo no qual todas também concordaram, o bom de ser mãe é poder dizer: ‘Este é MEU filho, é MINHA filha’. Todas falaram isso de boca cheia.

Esse ‘MEU’ me fez refletir bastante. Muitas dessas meninas cresceram em abrigos sem ter referências familiares e, por isso, agora têm um ser ao qual se apegar e que representa essa família. Agora não estarão mais sozinhas. Mas, por outro lado pensei na forma de apego que elas têm com a criança.

‘Esse é MEU filho/a’ e isso me dá o direito de fazer o que eu quero com ele, se ele chora e eu não estou com vontade de amamentar, deixo ele chorar. Se ele me enche a paciência, apesar de ter poucos meses de vida, eu bato, porque é manha e ele tem que aprender quem manda. E se fiquei grávida e não queria, eu bato na barriga porque esse bebê me incomoda demais.

Os sentimentos que elas todas vivenciam nesses momentos são intensos e discordantes. Amor e ódio se misturam o tempo todo. Aqui estamos falando de uma situação e de mulheres, ou melhor, de crianças, que tiveram histórias de vida bastante sofridas e pesadas e que estão tentando ser mães no meio de um turbilhão de emoções. Meninas que, de fato, tiveram pouco ou nada na vida: pouco amor, pouco carinho, poucas coisas.

E nós, que tivemos mais possibilidades, mais coisas e mais afetos?

Quantas vezes utilizamos esse ‘MEU’, para dizer que algo ou alguém é nossa posse: meu esposo, minhas filhas, minha família, minha casa, meu carro, minhas coisas. Quantas vezes utilizamos esse MEU para impor as nossas vontades sobre o outro, sobre nossos filhos/as ou nosso companheiro/a, determinando aquilo que esse tem que fazer para nos agradar.

Essa palavra MEU, talvez seja aquela que melhor represente o apego que temos pelas coisas e pelas pessoas, apego que nos prende e deixa os outros presos, apego que é pesado e que tira a liberdade, a nossa e do outro, que não nos deixa crescer, desenvolver e ser nós mesmos.

Patañjali ensinou no Yoga Sutra (I:15):

Quando [citta] perde todo desejo pelos objetos vistos ou imaginados adquire um estado de domínio e desprendimento que se chama vairagya, desapego.

E no seu comentário Vyasa explica: Quando […] a consciência desvenda a realidade [dos objetos prazerosos] e, por virtude do discernimento, se mantém completamente separada da influência produzida por eles, sendo indiferente tanto perante as ações corretas como frente às incorretas, se diz que essa consciência atingiu o estado controlado do buddhi sem fantasias, e isso é chamado de vairagya, desapego.

Perder todo desejo pelos objetos vistos ou imaginados! Refletindo sobre isso eu pensava: ‘Não me sinto presa a objetos ou coisas, o percurso que fiz até agora me ensinou a me desprender, desapegar das coisas. Saí do meu país, deixei minha família, meus amigos, muitas coisas’.

De fato, quando cheguei ao Brasil, me senti como um bebê, sem saber me explicar direito, como se estivesse novamente engatinhando para alcançar aquilo que desejava. Tive que me desfazer, desapegar de muitas coisas além dos objetos e amizades, que não cabiam na mala, também da imagem que tinha de mim mesma, que tinha construído com o tempo. Era eu, sozinha, sem minha família, sem meus amigos e sem minhas coisas. Era eu, livre, preenchendo o vazio que os outros deixaram em mim. Foi assim que tive a possibilidade de me conhecer mais profundamente, de entender quem eu era de fato, sem condicionamentos, sem máscaras.

No Brasil, não estava sozinha. Estava com meu esposo, que sempre foi companheiro, mas que nunca gostou da palavra MEU. Com ele, até sofrendo, aprendi que a gente poderia caminhar junto cada um sendo si mesmo, cada um com suas características, com suas fraquezas e suas potencialidades. Ele me ajudou a enxergar minhas capacidades e a treinar meu desapego. Quantas vezes, mesmo conhecendo sua profunda sensibilidade o culpava de ser frio, insensível, destacado das coisas e das pessoas. E ele sempre tentando me explicar que também sentia, que aquele jeito de ser não era frieza ou desinteresse, mas que o caminho feito até então o teria ajudado a enfrentar as coisas de forma mais tranqüila, com discernimento. Apesar de tudo, eu não entendia.

E agora, estudando Patanjali, descubro o xis da questão: essa forma de encarar a vida e os acontecimentos não é frieza, mas discernimento!

O sutra I:16 diz: ‘O supremo desapego é aquele em que cessam os desejos que nascem dos gunas pela presença do Purusha, o Ser’.

E novamente Vyasa explica: Através da prática do esforço para se conhecer como Purusha, o yogi, havendo percebido a natureza enganosa dos objetos tangíveis ou descritos nas escrituras, consegue clareza de visão e firmeza nas qualidades sáttvicas. Tal yogi, fortalecido pelo discernimento, e com o intelecto aguçado, torna-se neutro perante os estados manifestos e imanifestos dos três gunas, as qualidades que constituem a realidade.

Existem dois tipos de desapego. O último é absoluta clarificação do conhecimento. Quando o desapego dá lugar ao conhecimento claro, o yogi, ciente da natureza do Ser pensa assim: ‘possuo tudo o que é possível possuir; a identificação com as aflições foi reduzida; a corrente contínua do samsara, pela qual os homens nascem e morrem, nascem outra vez e morrem outra vez, foi quebrada’. O desapego é a culminação do conhecimento. Kaivalya e vairagya, libertação e desapego, são inseparáveis.

Com Paulo, meu companheiro, aprendi a não olhar muito para trás: porque ficar repensando e se apegando às coisas do passado, ou às decisões já tomadas?

Já decidiu? Então vamos em frente e vamos ver no que vai dar, sem pensar como teria sido se tivesse escolhido outro caminho! E também aprendi a não pensar muito no futuro, a não me pré?ocupar com as coisas que ainda não aconteceram e sobre as quais nem sempre temos o controle. Com ele, aprendi a ser mais leve, mais livre e mais presente. Aqui e agora. Isso não é fácil, mas vou treinando todo dia.

Mas, então, onde o apego está pegando agora? Porque essa palavra me dá uma sensação de vazio, um buraco no estomago e é tão pesada?

Talvez porque, eu também, como as meninas do grupo das quais falei no início, vivo esse MEU filho, MINHA filha como algo intenso e, às vezes, difícil de ser controlado. È aqui que raga, o apego, aparece com força, com intensidade, e deixa minhas emoções tomarem a frente.

Pensei muito sobre o apego durante toda esta semana. Estou me preparando para viajar para um retiro de sete dias em Mariscal, para terminar o primeiro modulo do curso de formação. Ficarei longe das minhas duas filhas nesse período. Isso quase nunca acontece e, se por um lado sei que vai ser bom para mim e para elas, por outro está sendo muito difícil. È difícil me desapegar delas, é difícil entregar, é difícil deixar o controle, é difícil deixar de proteger. Acreditar que o outro ser humano possa se cuidar e possa ser cuidado por outros que não seja eu. Deixar elas livres, deixar o pai livre, deixar que eu seja livre dos meus medos e das minhas inseguranças.

Como é difícil praticar o desapego, como é difícil praticar a entrega. Entrega a Isvara para ser livre. Ou ser livres para poder se entregar?

Patañjali ainda escreve no sutra I:23: ‘[O samadhi pode também obter-se] pela entrega a Ishvara’.

E Vyasa comenta: Através de um tipo especial de devoção chamado Ishvara pranidhana por parte do praticante, Ishvara torna-se favorável a ele e lhe autorga a graça de realizar seu objetivo. Igualmente, desta graça o yogi obtém a concentração e seu resultado: o estado de libertação, que se torna iminente.

(…)

Comecei este texto antes de viajar para externar a angústia que estava sentindo. Relembro da ansiedade que vivi naqueles dias. Dentro de mim reinava a certeza que ia dar tudo certo, que o Paulo cuidaria bem das meninas, que as meninas ficariam ótimas, e que esses dias longe seriam um bom treino do desapego e da entrega. Vivi a angústia em silêncio. Procurei não dar ouvido ao medo que sentia e à minha insegurança. O medo é o meu klesha. Tentei fazer com que isso não me tirasse do foco, do meu objetivo. Ao sair de casa, procurei não fazer nenhuma recomendação, procurei praticar a entrega.

E, assim, os dias de retiro foram ótimos, a convivência com todos, os momentos de prática e de estudo, ficar sozinha, ter um tempo só para mim, ter gente cuidando da gente, gente cuidando dos nossos quartos, cuidando da nossa comida e com tanto carinho. Entreguei-me a esses dias de conhecimento, de aprofundamento, de silêncio e questionamentos. Fiquei bem. E: ‘Tudo estava bem, tudo estava em paz’. A prática foi intensa, desde o momento que saí de casa.

E, agora, olhando para este texto, percebo como a dificuldade da entrega, como o apego e o medo tentaram boicotar a minha busca de liberdade. Liberdade que não é só minha, mas que é também a liberdade daqueles com os quis partilho meu caminho.

O amor é uma intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam. Cada um tem o outro como sujeito de seu amor. Não se trata de apropriar-se do outro. Paulo Freire.

Namastê!

Elda mora com suas duas filhas lindas e seu marido Paulo pertinho da cidade de São Paulo.

A ONG na qual ela faz o trabalho com meninas mencionado neste texto chama-se Associação de Apoio a Meninas e Meninos da Região Sé. O website da ONG é www.aacrianca.org.br. Eles tem um belo projeto dentro desta ONG: a Revista Viração, produzida e dirigida por adolescentes: http://www.revistaviracao.org.br/. Visite, apoie, colabore! Faça sua parte!

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4 respostas para “Desapego, Entrega e Liberdade”

  1. Oi! Uau!
    Este poderia ser um dos blogs mais úteis que já nos deparamos com este assunto. Na verdade excelente informação!
    Obrigado!

  2. Elda, amei o seu texto!
    É lindo! Também cheguei aqui procurando por “desapego e yoga” no google e fiquei muito feliz de me reconhecer em cada parágrafo.
    Obrigado por compartilhar. Pratico yoga há 1 ano e estou apenas começando a entender a importância do desapego na prática, desapego consigo mesmo, que lhe prepara para desapegar na vida.
    Obrigado por me inspirar.

  3. Achei que esse texto contribuiu muito com a atitude que deverei tomar perante a minha filha de 24 anos que quer morar sozinha. Está fazendo pós graduação o salario é pouco para se sustentar, mas disse que vai se virar. Ano que vem vai ter pagar o Fies e eu que avalizei.
    Esse apego é doido, faz a gente sofrer por antecipação. O Pai a rejeitou quando nasceu, ja possui esse passado com ele, não combinam muito. Preciso me libertar e dar liberdade para minha filha. Gostaria muito de conseguir, o irmão dela casou senti muito, mas ja consegui superar. Amor é mistura de posse mesmo. Precisamos mudar a cada dia.

  4. Elda, quero deixar aqui o meu depoimento,assim como vc, estou me dando conta que tenho que colocar muita atencao no trabalho do desapego. Andava pela internet buscando texto relativos ao tema, e fiquei feliz em ler o seu texto.

    Pois tem tudo a ver com o que estou vivendo. Sou prof. de Yoga,e atualmente estou morando na Nicaragua, acompnhando o meu marido. Tive que deixar no Brasil, meus filhos,minha escola de Yoga, e muitos, muitos amados e queridos amigos.O exercicio do despego e uma constante na minha vida.

    Faz 21 anos que sou casada, e ja mudamos varias vezes de cidade e paises. Hoje estou com 41 anos exercitando o maior deles que e ficar longe dos MEUS FILHOS, a mais dificil tarefa.Bem por incrivel que pareca fuim convidada para participar de um program de TV local onde o tema e o desapego. Agradeco por dividir comigo esta tarefa, seu depoimento foi maravilhoso para aquecer meu coracao.Namaste Simone Costa.simonegaruda@hotmail.com

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