Ética, Pratique

O crime e o valor

Hoje, após a aula semanal que ministro no presídio masculino de Florianópolis, tive uma conversação interessante com o traficante que trabalhava aqui na praia onde eu moro. O rapaz só vendia coisa fina: skunk (maconha híbrida do Afeganistão), LSD e ecstasy holandês. Com estes materiais importados, ele tinha uma seleta clientela entre a burguesia da ilha de Florianópolis. Ele me contou, em meio a uma série da anecdotas, que a filha do juiz que o condenou era sua cliente. Uma dessas 'coincidências' kármicas que a malandragem gosta de contar, quiçá para mitigar a dor da condenação.

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Hoje, após a aula semanal que ministro no presídio masculino de Florianópolis, tive uma conversação interessante com o traficante que trabalhava aqui na praia onde eu moro. O rapaz só vendia coisa fina: skunk (maconha híbrida do Afeganistão), LSD e ecstasy holandês. Com estes materiais importados, ele tinha uma seleta clientela entre a burguesia da ilha de Florianópolis. Ele me contou, em meio a uma série da anecdotas, que a filha do juiz que o condenou era sua cliente. Uma dessas ‘coincidências’ kármicas que a malandragem gosta de contar, quiçá para mitigar a dor da condenação.

Este jovem, assim como muitos outros detentos que encontro no presídio, não tem cara de marginal. Não é o tipo de pessoa que iria lhe inspirar medo ou desconfiança se você se cruzasse com ele na rua. Após ficar por dentro dos procedimentos que a polícia emprega para detectar as redes de distribuição de droga e outros pormenores da vida malandra, saí do presídio com a sensação de que tem algo muito podre no âmago da nossa sociedade.

Essa podridão nasce da mais desoladora ausência de valores e tem como causa o imenso vazio moral em que paira nossa sociedade. Perdemos a bússola ética porque faz tempo esquecemos a importância dos valores.

Acredito que a responsabilidade pelos crimes ligados ao tráfico de drogas não pode ser atribuída unicamente às péssimas políticas de educação e segurança dos últimos governos, nem à falta de emprego, nem ao abismo social entre ricos e pobres que vivemos no Brasil. Está aí o exemplo dos Estados Unidos, cuja polícia não consegue acabar com o tráfico apesar dos maciços investimentos.

Quando a sociedade prende o traficante, está colocando a carroça à frente dos bois. Está tentando-se eliminar o sintoma, mas não a causa da doença. O problema não é o traficante. O problema é a filha do juiz, que precisa usar drogas para suportar a realidade. Se a filha do juiz e seus amigos não precisassem dos paraísos artificiais, o traficante não existiria. Se a distância entre pais e filhos não fosse tão grande, se o exemplo que os jovens recebem em casa fosse mais edificante, tal vez eles fossem fazer algo mais positivo.

O problema não é o tráfico. O problema é o consumo. Não estou querendo dizer que o consumidor deva ser penalizado, mas que ele faz parte do problema, embora a sociedade continue hipocritamente de costas para esse fato. O buraco é bem mais embaixo, e tem a ver com a educação.

A educação que recebemos faz parte de um sistema que privilegia a informação e a produtividade e deixa de lado a humanidade, a espiritualidade e os valores. Não ouvimos quase nada sobre valores ou ética na escola. Para piorar as coisas, quando nos tornamos adultos, essas coisas simplesmente cessam de existir para a imensa maioria de nós, arrastados para a selva do consumismo, onde impera a lei do mais forte. Não obstante, os valores ocupam um lugar importantíssimo em nossas vidas.

Swami Dayananda escreveu no livro O Valor dos Valores (p. 16): ‘Em sânscrito, um valor ético pode ser definido como dharma, um padrão ou norma de conduta originado na maneira pela qual eu desejo que os outros me vejam ou me tratem. (…) Em outras palavras, minha norma para o que é um comportamento ‘apropriado’ ou uma ‘boa’ atitude é baseada na maneira em que eu desejo que os outros me tratem ou me vejam. O que espero ou desejo dos outros torna-se meu padrão de dharma, comportamento adequado. O que não quero que os outros façam é adharma, comportamento inadequado’.

Palavras como ética e valores podem soar estranhas e fora de moda para a pessoa não espiritualizada, que pode vir a achar que ‘essas coisas’ andam necessariamente de mãos dadas com religião, dogmas e falta de liberdade. Entretanto, essa pessoa, mesmo sem ter o nínimo interesse na vida espiritual, irá concordar plenamente com a visão pragmática e realista que Swami Dayananda postula na citação acima.

A ética do Yoga propõe uma solução eficiente para resolver o problema do crime. Embora a sabedoria do Yoga tenha nascido em outro tempo e em outro continente, lida com verdades eternas que continuam sendo profundamente significativas na atualidade. A apreciação ética da existência é o primeiro passo na prática do Yoga.

Esse código ético não existe para nos intimidar e castigar, nem para nos fazer sentir culpados. A ética é uma poderosa força motivadora e orientadora que nos permite viver uma vida com sentido, plena e feliz.

Sou da opinião que o Yoga tem uma mensagem clara para as sociedades humanas de qualquer tempo e lugar, e que serve mesmo para aqueles que não estejam buscando a elevação espiritual: a ética yogue pode ser aplicada no cotidiano de todos. Sem ela ? ou qualquer sistema similar ? estaremos tentando tampar o sol com uma peneira: de um lado, o crime irá prosperar constantemente; do outro, a felicidade estará sempre escorregando por entre nossos dedos.

Colocando a ética em prática

Patañjali, autor do Yoga Sutra, o mais importante tratado da nossa escola de filosofia prática, define o decálogo ético nestes termos:

‘Não violência, veracidade, não roubo, celibato e não possessividade são os yamas, as proscrições éticas’ (Ahimsa-satya-asteya-brahmacharya-aparigraha yamah).

‘Purificação, contentamento, esforço sobre si próprio, auto-estudo e entrega a Ishvara são os cinco niyamas, as prescrições éticas’ (Shaucha-santosha-tapah-svadhyayeshvara-pranidhanani niyamah. Yoga Sutra, aforismos II:30 e II:32).

Às primeiras cinco atitudes cumprem a função de domínio sobre os cinco órgãos da percepção (jñanendriyas): olhos, ouvidos, nariz, língua e pele. Esse controle dos sentidos aponta à organização da vida pessoal do praticante. O segundo grupo tem como objetivo desempenhar o controle dos impulsos naturais, que se manifestam através dos cinco órgãos de ação (karmendriyas): braços, pernas, boca, órgãos sexuais e excretores.

Sobre as cinco primeiras, o autor ainda nos diz: ‘Estas independem de classe, lugar, tempo ou ocasião e, sendo universais, constituem um grande voto’ (Jati-desha-kala-samaya anavachcchinnah sarvabhauma maha vratam. Yoga Sutra, II:31).

Neste momento você poderá sentir um ponto de interrogação formando-se sobre sua cabeça e soltar aquela frase: ‘Beleza, mas EOQÉQETAVCI?’ (e o que é que eu tenho a ver com isso?) O grande problema é que praticamente nenhum de nós conseguiria seguir esta lista ao pé da letra. Isto não é tão fácil como fazer um bolo seguindo com etenção uma receita.

A palavra sarvabhauma significa que a ética do Yoga vale para todos, yogis e não yogis.

Em verdade, você não precisa seguir os dez yamas e niyamas ao mesmo tempo. Escolha apenas um, mas mantenha-o a qualquer preço. Os outros virão sozinhos. Se você escolher um dos yamas e niyamas, os outros virão sozinhos com o tempo.

Se quiser, tome essa escolha como um exercício temporário, digamos durante algumas horas, dias ou semanas, para observar suas próprias reações. Se, por exemplo, você escolheu seguir a não-violência e sentiu dificuldades, ou não ficou conforme com o resultado, existem ainda as outras nove possibilidades.

Depois que você conseguir a firme resolução de continuar com sua decisão, verá que fica mais e mais fácil mantê-la, em qualquer circunstância. Porém, lembre que isto deve ser tomado como uma prática no dia a dia, e que deve servir como objeto de observação de si próprio, a cada momento, para treinar e testar seu nível de consciência e sua atenção, e ver como você reage perante seus próprios karmas.


Florianópolis, 10 de dezembro de 2003.

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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2 respostas para “O crime e o valor”

  1. Pedro,

    Concordo com o todo desse seu artigo. Tenho muita admiração pelo seu caminho de vida.

    Um abraço.

  2. Que texto nais oportuno! Fazendo uma prática com o mestre Aadhil Palkhivala, ouvi ele falar sobre a crise moral e ética que atinge a Humanidade, onde os valores são cada vez mais fúteis, onde as pessoas buscam cada vez mais uma fuga da realidade através de coisas como “drogas e silicone” . Segundo ele, o grande furo está na desconexão das pessoas com o coração, com os sentimentos. E, nesse sentido, ele prescreve o Yoga como um caminho para o coração, pois a capacidade de sentir verdadeiramente é despertada quando o praticante consegue unir a energia do muladhara chakra (que rege os instintos) e a energia mental e racional do ajna chakra no anahata chakra, o chakra do coração, que é a morada da consciência. Eu concluo pensando que isso faz sentido, pois o coração é um filtro fiel e sincero quando se desembaraça de coisas como o medo instintivo ou o ego dominado pela mente. Quando a criminalidade chega aos níveis assustadores como se vê no Rio de Janeiro, totalmente sob o domínio do tráfico de drogas, eu fico me perguntando: será que os consumidores abonados, em seus carros de luxo blindados, temerosos de serem seqüestrados ou assaltados em plena zona sul, será que o surfista maneiro, amante da natureza e que curte pacificamente o seu baseado de cada dia, será que eles não percebem que são a mão oculta que alimenta o tráfico e toda a violência que isso gera? Será que todo o sofrimento e a dor que isso gera não são razões suficientes para se questionar, tanto do lado de quem consome quanto do lado de quem fornece? Sem falar nas conseqüências mais sutis… que bom seria se o Yoga se tornasse algo assim, tão pop! Mas Yoga de verdade, e não mais um culto ao corpo com maquiagem nova! Om Shanti, Jamile Ansolin.

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