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O Desejo e Ātma

Se me privar de algo que gosto, o desejo não desaparece simplesmente. Desejos não saciados podem desvanecer-se com o tempo, mas às vezes isto não acontece. Tentar livrar-se deles pela mera repressão parece inútil porque eles podem permanecer por anos.

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O desejo não têm fim

Se me privar de algo que gosto, o desejo não desaparece simplesmente. Desejos não saciados podem desvanecer-se com o tempo, mas às vezes isto não acontece. Eles podem inflamar como ferimentos não tratados e crescer em intensidade. Desejos são poderosos.

Tentar livrar-se deles pela mera repressão parece inútil porque eles podem permanecer por anos. Enquanto os desejos estão presentes, a satisfação está ausente. Ninguém se sente satisfeito na presença de desejos. Mesmo um simples desejo pode fazer você se sentir insatisfeito, incompleto e carente.

As quatro nobres verdades expostas pelo Buda declaram que o desejo é a raiz de todo sofrimento. E de acordo com os ensinamentos do Vedānta, uma pessoa iluminada é aquela que é livre de desejos, aquela cujo senso de plenitude não é obstruído por nenhum tipo de carência.

desejo

A liberdade do desejo, ou mais precisamente, a liberdade da sensação de ser uma pessoa carente, limitada, inadequada, é considerada a busca fundamental da vida espiritual.

Mas como você pode tornar-se livre dos desejos, livre de querer coisas, livre de gostos e aversões? Você pode resolver desistir de algo que você gosta e deseja, como o café, por exemplo, mas você pode resolver desistir do desejo em si? Se você parar de beber café, você ainda vai querer tomá-lo.

O que você deseja não parece ser uma questão de escolha. Desejos surgem sem a sua permissão. Seu livre-arbítrio, embora poderoso, parece inadequado para a tarefa de erradicar desejos e impedi-los de surgir.

Uma vez que não se pode abdicar dos desejos em si por mera escolha, suponha que, ao invés disso, você tente satisfazê-los. É possível satisfazer todos os seus desejos?

Quando o seu último desejo será finalmente realizado? Novos desejos continuamente surgem quando outros são satisfeitos. Desejos parecem queimar como fogo – quanto mais você os alimenta, mais eles crescem.

Uma das muitas palavras em sânscrito para fogo é analam, cujo significado literal é “insuficiente”. O fogo nunca diz “basta!” para quem lhe oferece mais combustível. Da mesma forma, o fogo do desejo nunca diz “basta!”, não importa quanta riqueza, prazer ou segurança seja obtida.

Contudo, a despeito do apetite feroz do desejo, todos nós nos afastamos de inúmeros anseios que outrora nos arrastavam. Por exemplo, eu me lembro de, quando criança, estar particularmente afeiçoado a um urso de pelúcia.

Eu não lembro o que aconteceu ao meu amigo peludo, mas eu não sinto falta dele. Eu me desapeguei do urso de pelúcia. Para ser mais claro, eu superei aquele desejo quando eu encontrei um brinquedo do qual eu gostava mais.

Eu havia considerado o peludo como uma fonte vital de felicidade, mas mais tarde eu encontrei um caminhão de brinquedo que parecia uma melhor fonte de felicidade. E, é claro, o caminhão foi mais tarde substituído por um brinquedo ainda melhor, e assim por diante. Desejos são superados desta maneira.

Algo que é desejado por ser considerado como uma fonte de felicidade acaba sendo suplantado por uma fonte de felicidade aparentemente melhor. Este padrão se estende muito além da infância. Quando adultos, nós continuamos buscando melhores “brinquedos”, mas agora estes são carros novos, casas espaçosas e férias luxuosas.

Nos ensinamentos do Vedānta, o princípio básico que subjaz à busca de plenitude é este: uma vez que superamos um desejo por algo quando encontramos outra coisa melhor, então podemos superar todos os desejos quando descobrimos a fonte de felicidade que nunca pode ser superada.

E a fonte suprema é encontrada no ápice da nossa jornada espiritual. Tendo-a descoberto, as pessoas iluminadas tornam-se livres de desejos. Para elas, todos os prazeres e realizações mundanas parecem brincadeiras de criança.

Olhei fixamente para o reflexo cintilante do sol na superfície ondulada do rio. Os padrões constantemente oscilantes da luz trêmula tinham um efeito quase hipnótico. Meus olhos logo se fecharam e eu deixei o mundo para trás, sentando sossegadamente em meditação profunda com apenas o Ganges como companhia.

Um momento de silêncio não é uma grande realização. Afinal, é apenas silêncio. Mas este silêncio pode ser um grande professor. Volumes de textos nunca podem exprimir a sua mensagem simples e sem palavras.

À medida em que o mundo se retirava da minha consciência e que meus pensamentos, sentimentos e memórias se aquietavam, eu me sentia cada vez mais preenchido pela paz e contentamento. De onde esta paz e contentamento vinham? Eles não podiam vir de fora; eu havia “me recolhido” do mundo. Nem poderiam vir de pensamentos, sentimentos ou memórias; estes foram desaparecendo no silêncio. Aquela paz e contentamento só poderiam ter surgido de uma fonte interna mais profunda.

“A felicidade está dentro de nós” é uma frase comum, muito repetida, mas não completamente compreendida. Na experiência de meditação, contudo, seu significado se torna bastante claro. Na meditação, a felicidade não é o resultado da aquisição de algo; ela surge naturalmente à medida em que os pensamentos diminuem. As atividades mentais aparentemente obstruem a felicidade, impedindo-a de surgir.

O processo de meditação foi comparado à limpeza de um espelho sujo. Quando você remove a espessa camada de poeira, sua própria imagem repentinamente aparece clara. Da mesma forma, quando os obstáculos mentais são removidos através da meditação, a paz e a felicidade que residem nos corações de todos naturalmente se tornam manifestas.

Como o Buda e outros grandes sábios descobriram, é a presença dos desejos que obstrui a felicidade. Quando um desejo é satisfeito, você se torna feliz não porque você obteve ou realizou algo, mas simplesmente porque o desejo se foi.

A fonte da felicidade está na verdade dentro de você, não no objeto desejado. Para ilustrar isto, pense numa criança que gosta de sorvete e ingenuamente considera que isto é uma fonte de felicidade. Se uma bola de sorvete a faz feliz, duas bolas a fariam duas vezes tão feliz e três bolas muito mais.

Por esta lógica, tomar vinte litros de sorvete a levariam ao êxtase e não a uma baita dor de estômago. Obviamente, sorvete não pode ser uma fonte de felicidade. Apesar disso, ele faz a criança feliz.

Quando ela toma o seu sabor favorito, a deliciosa experiência a deixa embevecida; ela é momentaneamente cativada pela experiência. Enquanto ela está envolvida na experiência, todos os seus desejos são temporariamente suspensos. E na ausência de desejos, ela desfruta de um momento de felicidade.

Os ensinamentos do Vedānta são claros em mostrar como a verdadeira fonte de paz e felicidade está dentro de nós. Isto é vividamente revelado em um diálogo entre dois sábios, marido e mulher, contido na Bṛhadāraṇyakopaniṣad, os ensinamentos da grande (bṛhad) floresta (arāṇya). Yājñavalkya viveu na floresta com suas duas esposas, Maitreyī e Katyayanī.

Yājñavalkya foi um festejado sábio, um professor de reis e o corajoso campeão de muitos debates filosóficos. Ele queria deixar a sua casa e levar uma vida de meditação solitária. Ele disse a Maitreyī, “Querida, eu quero deixar a nossa casa. Deixe-me adotar as providências necessárias com relação a você e a Katyayanī”.

As providências que ele se propôs a tomar eram financeiras. Ele queria deixar riqueza suficiente para que suas esposas pudessem viver confortavelmente na sua ausência. Mas Maitreyī, sendo tão sagaz quanto seu marido, não concordou com esta providência.

Ela estava um tanto avançada em idade e refletia sobre o fato de que todos os confortos seriam inúteis depois da sua morte. De modo astuto, ela perguntou ao seu marido, “Mas querido, se este mundo inteiro com toda a sua riqueza fosse meu, isto me faria imortal?

Maitreyī não estava satisfeita apenas com meros confortos materiais. Ela sabia que eles não eram a fonte de felicidade. Ela buscava plenitude duradoura e paz, contentamento perfeito que não poderia ser abalado nem mesmo pela ameaça da morte. Por isso ela perguntou, “Qual é a utilidade de algo que não vai me fazer imortal? Eu quero conhecer a verdade que você descobriu. Dê-me isto apenas.”

Yājñavalkya viu que sua mulher compreendeu as limitações das buscas mundanas e que, ao invés disso, ela buscava iluminação. Ele se deleitava com o fato de que ela compartilhava da sua visão da vida. Ele disse afetuosamente, “Suas palavras são tão caras para mim quanto você mesma. Venha, por favor sente-se aqui perto de mim e eu lhe direi. Contemple o que vou lhe dizer”.

Em uma série de versos quase idênticos, transcritos abaixo de forma condensada, Yājñavalkya ensinou-lhe que qualquer coisa que busquemos para obter felicidade, o que quer que nós realmente amemos, não é a fonte real de amor. A fonte real de amor é o verdadeiro Eu.

Não é pelo amor ao marido que ele é amado,
mas pelo seu próprio amor , o marido é amado.
Não é pelo amor à esposa que ela é amada,
mas pelo seu próprio amor , a esposa é amada…
Não é pelo amor à riqueza que ela é amada,
Mas pelo seu próprio amor , a riqueza é amada…
É pelo seu próprio amor que tudo é amado (2.4.5).

Na visão poética de Yājñavalkya, a presença de coisas e pessoas queridas por nós invoca o amor já presente nos nossos corações. Dentro de cada pessoa já está a verdadeira fonte do amor, felicidade, paz e contentamento que todos nós buscamos. De acordo com Yājñavalkya, esta fonte é o verdadeiro Eu, Ātman.

Professores tradicionais têm ensinado há tempos que a verdadeira natureza de alguém é distinta da sua personalidade. O verdadeiro Eu, eles declaram, é independente do corpo físico, independente das forças que dão vida ao corpo e independente da mente com todas as suas facetas. Alguns professores modernos referem-se a isto como espírito; outros chamam de alma ou Ser com um “S” maiúsculo.

Cada uma destas expressões é plena de significado, mas a confusão pode facilmente surgir porque estas palavras têm diferentes significados para pessoas diferentes. Para evitar qualquer possível confusão, eu irei evitá-las e ao invés delas usarei o termo Sânscrito empregado por professores tradicionais, Ātma.

Para Yājñavalkya, Ātma é a fonte suprema de todo amor, felicidade e plenitude. No decorrer do seu diálogo com Maitreyi, ele diz que a melhor maneira de buscar a plenitude é olhar para dentro de si mesmo e descobrir Ātma:

Ó Maitreyi, Ātma deve ser descoberto.
Deve ser conhecido por meio de um professor,
com reflexões por meio da razão,
e meditações constantes.

Aqui, Yājñavalkya dirige a nossa atenção para uma mudança radical de orientação que ocorre na busca espiritual. Enquanto a fonte de felicidade é erroneamente considerada como estando fora de nós mesmos, o resultado é um esforço vão em obter felicidade duradoura.

Esta luta, conhecida como a vida de saṁsāra ou a existência mundana, continua porque a plenitude perene não pode nunca ser alcançada pela mera satisfação de desejos.

A vida de saṁsāra é como afundar no oceano – um homem luta para atingir a superfície para conseguir respirar, mas assim que ele enche os pulmões outra onda quebra, empurrando-o para baixo novamente.

A luta por felicidade, embora menos dramática, não é menos frustrante. Momentos de felicidade são fugazes. Nós satisfazemos desejo após desejo, contudo a plenitude duradoura permanece evasiva.

As lições de Yājñavalkya dirigem-se àqueles que reconheceram a inutilidade de tentar satisfazer todos os desejos. Ele aponta o caminho para a liberdade da luta do samsara, liberdade encontrada através da busca espiritual na qual se é conduzido a olhar para dentro e descobrir Ātma, o verdadeiro Eu.

E se as vidas dos santos iluminados são alguma indicação, aqueles que descobriram a verdadeira fonte interna do amor tornam-se repletos de amor pelos outros, um amor que não conhece fronteiras.

O sofrimento surge devido à ignorância da nossa verdadeira natureza, ignorância em relação a Ātma. Não conhecendo a verdadeira fonte de felicidade interna, nós inescapavelmente nos vemos como incompletos e carentes.

Nós não podemos incondicionalmente aceitar nem a nós mesmos nem as situações da nossa vida. Como resultado, nos tornamos repletos de desejos e somos compelidos a buscar alívio para a nossa insatisfação.

Portanto, nós podemos dizer que o desejo e a insatisfação definitivamente nascem do não reconhecimento do Ser, da falha em reconhecer a nossa verdadeira natureza como sendo a fonte do amor, contentamento e plenitude.

Esta é, de fato, a questão central abordada pelo Vedānta – o não reconhecimento do Ser, a ignorância da nossa verdadeira natureza, a ignorância sobre Ātma.


॥ हरिः ॐ ॥

Tradução adaptada por Augusto Mascarenhas, de trechos (págs. 61-63, 65-69 e 79, do livro Roar of the Ganges, de autoria de Swami Tadātmananda, publicado pelo Arsha Bodha Center, 2010.

Swāmi Tadātmananda é discípulo do Swāmi Dayānanda Sarasvatī. No ano 2000 estabeleceu um Āśram em New Jersey, EUA, no qual ensina atualmente. Eis o website do Āśram.

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॥ हरिः ॐ ॥

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6 respostas para “O Desejo e Ātma”

  1. Obrigada profe, sempre nos iluminando com seus profundos ensinamentos…Hary Om

  2. Pode se dizer que a sociedade ocidental, atraves do selvagem capitalismo, nos induz cada vez mais ao consumo desenfreado. Adquirir objetos de uso pessoal e itens tecnologicos estão atrelados à felicidade plena. Mas essa plenitude dura apenas até o momento que o seu objeto se torna obsoleto perante novo lançamento. Esse modo de vida remete sempre ao sofrimento de ser uma pessoa incompleta e infeliz. Ao encontrarmos o verdadeiro amor, Atma, reduziremos o consumismo, adoeceremos menos e viveremos mais… Tudo o que as grandes corporacoes nao querem…

  3. Shiva possui desejos, o que ele não possui é insatisfação, nem vivencia qualquer tipo de situação degradante associada aos desejos, ele é o senhor, o conhecedor e a felicidade essencial dos desejos que a sua maneira homenageiam a vida manifesta,a grande deusa.
    Mas como este belo e sábio texto frisa ,sem o conhecimento de atma,do espírito,de shiva,não é possível homenagear a grande deusa em todo o seu propósito, acessar esta satisfação, entendimento perene, transcendente porem presente,que conhece e homenageia a vida em toda sua multiplicidade, conflitos, beleza e unidade, com precaução e atenção.
    Isto são palavras, imagens e alguma compreensão, mas ainda não acessei de forma cristalina esta esfera de atma, sou muito grato por podermos ter contato, neste site, com a tradição viva do yoga e ainda podermos ousar expressar nossas opiniões perante a exposição de sabedoria de pessoas em estado de maturidade na trilha do yoga.

  4. Um dos artigos mais lúcidos sobre yoga que já li. Obrigado!

  5. Portanto, nós podemos dizer que o desejo e a insatisfação definitivamente nascem do não reconhecimento do Ser, da falha em reconhecer a nossa verdadeira natureza como sendo a fonte do amor, contentamento e plenitude.

    Por causa disso é que estamos em tantas guerras, a falha de reconhecer a falha.

  6. Parabéns. Nunca havia lido um texto tão claro sobre o desejo e a felicidade. Percebe-se que você não tem apenas informação, mas um profundo conhecimento retirado da prática. Seu texto mudou minha visão sobre religião. É fantástica essa proposta de descobrir o átma. Normalmente tenho visto a religião como uma forma de alienação pessoal, onde as pessoas abrem mão de sua individualidade, ou melhor, de sua essência, e passam a viver e se identificar com uma consciência coletiva formada por determinado grupo religioso. Mas o conhecimento que você apresenta é o oposto disso: é o mergulho interno para alcançar a fonte da felicidade. Obrigado pelo seu ensino, e vou procurar também meu átma.

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