Objetivo: Mokṣa
Existe uma clara tendência à busca consciente da felicidade, ao fato de que todos os seres humanos queremos prolongar ao máximo os momentos felizes e minimizar as experiências de tristeza ou aflição. O problema é que, atravessado no nosso caminho, existe um obstáculo importante com o qual precisamos lidar: o negócio da felicidade.
Uma boa parte das ações que realizamos cotidianamente tem como foco a realização da felicidade. Ninguém, dotado de bom-senso e juízo, deseja qualquer forma de infelicidade para si mesmo.
A presença da autocrítica em todos e cada um de nós evidencia que somos cientes da existência de um padrão que muda consoante à cultura e o tempo, através do qual julgamos e somos julgados constantemente.
Esse padrão apresenta sempre algum paradigma de felicidade ou perfeição elevada, seja em termos físicos, vitais, emocionais ou intelectuais, consoante à sociedade e ao tempo em que vivemos.
Esse paradigma varia muito de lugar para lugar, de cultura para cultura e de época para época. As culturas são expressões dos povos e é natural e desejável que essas variações de paradigma existam.
Porém, em qualquer caso, a autocrítica é a força que nos leva em direção ao ideal de felicidade ou perfeição, na qual supostamente não há mais sofrimento, nem espaço para a própria autocrítica.
A busca da perfeição
A existência desse ideal é o que motiva a pessoa no esforço para alcançar uma apreciação de si mesma como alguém livre de limitações, e que possa repousar em sua própria natureza sem grandes oscilações emocionais e, principalmente, sem muito sofrimento.
A busca do ideal da perfeição e o que dá corpo à espiritualidade humana. Esse desejo, e o natural contentamento que dele surge, são rasgos comuns a todos os humanos.
Na espiritualidade ancestral indiana, esse ideal é chamado mokṣa ou liberdade absoluta. Mokṣa, portanto, é o ideal de plenitude que qualquer ser humano busca, ainda que não tenha palavras para defini-lo, ou o defina de outra maneira.
Esse ideal é uma apreciação de si mesmo como ilimitado, que transcende todas as limitações do espaço-tempo. A natureza do ser humano é a própria natureza da Consciência Ilimitada, chamada Brahman.
O problema surge quando entra no jogo o tema da felicidade, quando associamos mokṣa à felicidade. Via de regra, a maioria das pessoas define felicidade como uma emoção ou um sentimento. Algo que vem e que vai, portanto.
Voltaremos sobre esse ponto no fim deste texto, pois o ensinamento do Yoga diverge diametralmente desse ponto de vista da cultura popular: a felicidade não é uma emoção.
O negócio da felicidade
O problema é que a felicidade tornou-se um grande negócio, uma espécie de commodity prometida por coaches e gurus autoajudísticos como a solução definitiva para os males atuais.
Digo que isso é um problema, pois a busca incessante da perfeição termina, inevitavelmente, em frustração, ansiedade e insatisfação.
Em suma, a busca da felicidade tornou-se uma ditadura social que é preciso combater se quisermos manter a sanidade nestes tempos difíceis. Por exemplo, não basta “mentalizar” para que as coisas, magicamente, aconteçam.
Você não “cria a sua própria realidade” imaginando-a da forma que deseja, como falsamente promete aquele adágio da Nova Era.
A felicidade não pode ser uma obsessão, um vício ou uma crença, por atraentes que sejam essas falsas promessas. Digo que são falsas promessas pois você nunca vai tornar-se feliz seguindo uma receita de bolo ou marcando ítens numa lista, como quem vai às compras.
O mecanismo por trás dessas promessas é uma insidiosa armadilha para deixar-nos viciados nos produtos que esses coaches e gurus prometem.
Um dos problemas dessa abordagem é que ela nos deixa tão centrados em nós mesmos, tão obcecados com o nosso pequeno microcosmos individual, que não percebemos o quanto ela nos aliena dos demais e do mundo à nossa volta, e o quanto ela é tóxica, viciante e ineficiente.
Armadilhas motivacionais
Você parou para pensar que ninguém faz apenas um retiro espiritual, ouve apenas uma palestra ou lê apenas um livro de autoajuda? Se essas promessas fossem reais, apenas uma leitura, um retiro ou uma prática seriam o suficiente para nos dar aquilo que buscamos, concorda?
Devemos ter muito cuidado com esse tipo de armadilha motivacional, pois ela é perigosa para a nossa própria saúde mental.
Muitas vezes, o discurso da busca da felicidade traz implícita a ideia de que a felicidade depende apenas de nós mesmos, que é apenas uma questão de escolha pessoal ou de força de vontade, minimizando a história e o contexto em que cada pessoa vive.
Essa abordagem é superficial e ineficiente, pois desconsidera a força das circunstâncias que nos moldam. Também pode ser perigosa desde o ponto de vista da saúde mental.
Quando um guru tenta vender esse tipo de quimera fantasiosa, ele não pode oferecer para você uma profissão diferente, uma família diferente ou uma vida diferente. Então, a única opção que sobra para ele é dizer que a felicidade está dentro de você ou pior, que ela depende de você.
A ditadura da felicidade
Essa mensagem é cruel, pois traz implícita a ideia de que se fracassarmos nessa busca, a responsabilidade será toda nossa, o que por sua vez irá nos levar para um sentimento ainda maior de frustração ou culpa, o que pode derivar num episódio de depressão.
Ignorar as circunstâncias imponderáveis da própria biografia é uma arma que pode voltar-se contra quem a esgrime. Cada pessoa é única, cada vida é única, e isso não pode ser ignorado. Não é um único tamanho de roupa que serve para todos os corpos.
Talvez a solução para a charada da felicidade seja permitir-se apenas sentir emoções naturais como raiva, medo ou tristeza, deixar que a vida siga o seu curso e permitir que a felicidade flua para nós de maneira natural, como veremos mais adiante.
Aceitar essas emoções intuitivas (que fazem parte da psicologia humana, são desejáveis e cumprem funções importantíssimas), é a chave para deixar de lado a obsessão com a felicidade e libertar-nos do discurso falacioso dos manipuladores. Para isso, devemos remover o estigma que estas emoções carregam na nossa cultura.
Antes de decidir que a felicidade é a coisa mais importante da vida, ou a única que interessa, devemos primeiramente saber o que é a tal da felicidade.
A felicidade pode ser definida de muitas maneiras diferentes e, antes de comprarmos a nova proposta do coach/guru da moda, devemos primeiramente ver se a definição que essa pessoa nos traz sobre felicidade coincide com aquela que o bom-senso e a nossa experiência pessoal nos indica como sendo possível.
Existe consenso sobre o que seja a felicidade? Como encontrar uma definição que faça sentido?
A função das emoções
Para começar com essa tarefa, vamos tirar um pouco do estigma que mencionamos acima sobre as emoções mal chamadas “negativas”. Não existem emoções negativas ou positivas, pois a polaridade delas varia muito, de acordo com o contexto.
1. A importância da ansiedade
A ansiedade é um exemplo típico: a psicologia define a ansiedade como um estado aflitivo, marcado pela expectativa de um perigo indeterminado, diante do qual a pessoa se julga desamparada. A ansiedade também pode ser definida como uma vontade de que o tempo pare, ou que corra mais depressa.
Porém, a verdade é que a ansiedade pode ser muito construtiva, pois ela nos dá perspectiva e visão para antecipar eventos indesejáveis, que podemos eventualmente evitar com planejamento e objetividade.
Portanto, é preciso fazermos as pazes com a nossa ansiedade, e aceitar que ela cumpre uma função fundamental para nos auxiliar a viver o nosso cotidiano. Por outro lado, cabe fazer um pacto de paz com a ansiedade, para impedir que ela abalroe o nosso bem-estar e tranquilidade.
2. O papel da raiva
Também fala-se muito de que a raiva é destrutiva e não se justifica em nenhum caso, mas não é bem assim. A raiva é uma emoção intuitiva, que faz parte do arcabouço psicológico humano, e que tem como objetivo mobilizar grandes quantidades de energia para consertar algo que julgamos errado.
A raiva é destrutiva quando permitimos que ela chegue a extremos como uma agressão verbal ou física. Porém, ela é desejável quando funciona como uma força motora que nos motiva à superação ou nos dá forças para corrigir algo que percebemos como errado na nossa família ou na sociedade.
Portanto, que possamos usar a força da raiva em prol do bem-comum. E que sejamos capazes de impedir que a nossa raiva, na forma de alguma frustração, vitimize qualquer pessoa que esteja ao nosso redor.
3. Otimismo e pessimismo
Por outro lado, fala-se muito sobre o otimismo, e sobre o quanto é desejável manter sempre uma atitude otimista. Porém, não é bem assim: se você for unicamente otimista, se você só for olhar para “o lado bom” das coisas, provavelmente irá acabar frustrado ou com os pés fora da realidade.
Excesso de otimismo redunda, inevitavelmente, em expectativas muito elevadas. E essas expectativas muito elevadas, por sua vez, podem nos levar à frustração, quando não as realizamos.
Otimismo demais também nos pode tornar excessivamente auto-confiantes e nos induzir a erros que poderíamos evitar com um olhar mais ponderado. Igualmente, o excesso de otimismo pode alimentar falsas esperanças que, por sua vez, irão redundar em inação, remorso ou culpa.
Não precisamos ser nem excessivamente otimistas, nem pessimistas o tempo todo. É necessário achar o caminho do meio. Swāmi Dayānanda, nosso mestre, sempre dizia que não precisamos de uma mente otimista nem de uma mente pessimista, mas de uma mente objetiva, capaz de apreciar as coisas como elas são.
4. A função da tristeza
Similarmente à dualidade otimismo/pessimismo, a alegria e a tristeza, por sua vez, também formam um par de opostos complementares, uma espécie de montanha russa emocional na qual vivemos o nosso cotidiano.
Não precisamos aqui falar sobre o valor da alegria, que é por todos conhecida, mas devemos lembrar que a tristeza também tem uma função muito importante: ela serve para nos ajudar a processar perdas, desde o falecimento de um ente querido à perda de um emprego, ou da saúde ou da juventude.
Inevitavelmente, perante uma perda, ficaremos tristes. Essa é a realidade das coisas. Porém, ao invés de nos sentir mal por achar que não deveríamos sentir-nos tristes, ou que deveríamos ficar alegres o tempo todo, seria mais construtivo abrir-nos para a tristeza, para que ela faça o seu trabalho, que é nos ajudar a refletir sobre o significado da perda que tivemos.
Eventualmente, no caso da perda do emprego ou no caso do final de um relacionamento, vale a pena usar o momento de tristeza para refletirmos sobre o que deveríamos fazer na próxima oportunidade para evitar que a mesma situação se repita.
Se for a perda de uma pessoa amada, que possamos elaborar o luto e despedir-nos como corresponde. Se for a perda de um emprego, que possamos compreender as razões que nos levaram a essa situação para, eventualmente, conseguir evitá-la na próxima oportunidade.
Se for a perda da saúde, que possamos aceitar a altura da vida em que estamos agora, e cultivar a equanimidade para aceitar aquilo que não pode ser mudado.
Reconciliando-nos com as nossas emoções
Assim, devemos fazer um pacto de paz com as nossas emoções e compreender que elas existem por um bom motivo. Se a vida nos deu essa ordem psicológica peculiar, lembremos que ela serve ao objetivo fundamental de crescermos emocionalmente, para além de quaisquer identificações com esses conteúdos, já que somos diferentes de todos eles.
Assim, está tudo bem se, ocasionalmente, nos sentimos tristes, com medo, raivosos ou pessimistas. Isso é saudável e desejável, e é sinal de uma emocionalidade funcional e madura. Todas e cada uma dessas emoções servem ao propósito maior da maturidade emocional.
Agora, o que não é saudável é ficarmos deprimidos ao ver que estamos ocasionalmente tomados pela raiva ou pela tristeza. Ninguém precisa sentir-se culpado, e muito menos punir a si mesma(o) por conta desses sentimentos, que são absolutamente naturais.
O perigo de fazermos essa duvidosa aposta na felicidade individual como algo dependente unicamente do próprio esforço pessoal é que, quando inevitavelmente nos sentimos mal, ainda recebemos uma punição extra, que é a de achar que há algo errado conosco, que somos culpados e fracassamos na missão de encontrar a tão desejada felicidade.
A corrida para a felicidade
Qual é a razão que leva as pessoas a buscar mais felicidade, ainda quando elas já têm tudo o necessário para sentir-se razoavelmente bem?
Aqui entra o tema da definição de felicidade que mencionamos acima: essas pessoas acreditam que a felicidade que elas têm não é felicidade verdadeira, e que precisam esforçar-se mais em direção a um ideal inalcançável, que evidentemente nunca chega.
Aí reside o aspecto perverso da proposta dos guru-coaches: eles não nos oferecem ficar bem quando estamos nos sentindo mal, mas querem nos convencer de ficarmos melhor quando já estamos bem. Perdendo a referência, a pessoa passa a sentir-se insegura e a achar que precisa algo que, em verdade, ela já tem.
Por trás dessa auto-exigência extrema pode haver uma tendência exagerada ao perfeccionismo ou à ansiedade. É aí que dizemos que essa definição de felicidade torna-se um bem de consumo: nunca podemos nos distrair, devemos constantemente lutar para conquistar e manter essa felicidade, sob pena de perdê-la, ou de perder a corrida em direção a uma redenção que nunca chega.
Nesse contexto, não há nenhuma diferença entre a busca pela felicidade e a busca pelo último modelo de telefone ou carro, ou pelo reconhecimento social. Essa busca fica reduzida a um desejo entre muitos outros desejos.
A felicidade é sempre coletiva
Porém, por legítima que seja a nossa busca individual por felicidade, qual é o valor dela se não for compartilhada? De que vale a sua felicidade pessoal, quando as pessoas à sua volta sofrem? Você conseguiria desfrutar de uma felicidade plena vendo outras pessoas à sua volta a sofrer?
Felicidade é como saúde: só vale quando é compartilhada, quando é coletiva. Isso ficou muito claro durante a pandemia do coronavírus: você pode ter feito um grande esforço para vacinar-se, para manter-se saudável e longe do vírus, mas até a sociedade inteira estar a salvo da doença, ninguém fica saudável individualmente.
Você pode pensar em si mesmo(a) o quanto quiser. Você pode preocupar-se o quanto for com o seu processo individual, mas a verdade é que a felicidade real só vem quando é compartilhada, quando é coletiva. Senão for assim, isso que chamamos felicidade é, em verdade, puro egoísmo.
Queiramos ou não, somos seres gregários. Vivemos sempre interconectados biologicamente, não apenas com outros seres humanos, mas com uma série de vírus e bactérias sem as quais a nossa vida simplesmente não existiria. O mesmo vale para o plano afetivo: nenhum ser humano é uma ilha.
O reconhecimento dessa interdependência, tanto no seu aspecto biológico quanto no emocional, é fundamental para reconhecer a maneira em que a natureza funciona. Assim, a nossa felicidade está intrinsecamente vinculada à felicidade dos demais. Se não houver felicidade coletiva, não poderá haver paz pessoal.
É necessário buscar a felicidade?
Pense na felicidade como uma sucessão de momentos compartilhados de afeto, solidariedade, carinho, amizade ou fraternidade. Não há mais nada além disso. Esses momentos são ānanda manifestada, são a plenitude feita experiência humana da maneira mais visível.
Dizemos da maneira mais visível pois a verdade é que essa plenitude do ser está presente em todas e cada uma das experiências humanas, por indesejáveis ou aflitivas que sejam.
Paradoxalmente, quanto mais buscamos a felicidade, mais longe ela parece estar. John Stuart Mill, filósofo, economista e sufragista britânico do século XIX, foi um dos maiores defensores da busca da felicidade no seu tempo.
No entanto, ele declarou no final da sua vida que não valia a pena colocar a felicidade no centro dos nossos esforços, porque não sabíamos o que ela era, nem onde poderia ser achada. Portanto, quanto mais a buscássemos, mais ela fugiria de nós.
E por que quanto mais tentássemos buscá-la, mais ficaríamos frustrados. Se formos seguir o sábio conselho do senhor Mill, faria sentido então deixar de lado essa obsessão para focar-nos em viver os pequenos momentos do presente, onde está a felicidade compartilhada. Isso é o mais saudável que poderíamos fazer, por nós mesmos e pelo bem-estar coletivo.
Ao invés de estabelecer uma resolução interior como “vou me tornar mais feliz”, faria muito mais sentido trabalhar em prol da felicidade dos demais. Quando tiramos as palavras “eu”, “mim” e “meu” do centro do tabuleiro, a felicidade vem em nossa direção.
“Eu”, “mim” e “meu” constituem a trinca do sofrimento: pelo esforço que fazemos para ajudar alguém a ser feliz, ou simplesmente a estar melhor, a felicidade flui para nós. Assim, a felicidade não existe no singular, mas apenas no plural.
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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