Pratique, Yoga na Vida

O Yoga e a espiritualidade engajada

Durante os últimos anos da ditadura militar no Uruguai, meus quatro irmãos e eu estávamos fartos daquela mentalidade estreita e daquela falta de liberdade e começamos, junto com outros jovens, a organizar e participar de manifestações e protestos

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Anarquia, ditadura e maconha

Durante os últimos anos da ditadura militar no Uruguai, meus quatro irmãos e eu estávamos fartos daquela mentalidade estreita e daquela falta de liberdade e começamos, junto com outros jovens, a organizar e participar de manifestações e protestos, que não raramente acabavam em pancadaria com a polícia e em noites nas delegacias. Todos nós fomos presos, cedo ou tarde.

A nossa agenda política, se podemos chamá-la assim, era o arroz-com-feijão dos anarquistas de todas as épocas: “Nem Estado, nem patrão. Auto-gestão. Abolir os governos já! O Estado é a Negação da Humanidade!” E, ainda, algo que entrou na agenda política anarquista mais recentemente e que provavelmente escandalizaria Mikhail Bakunin e os veneráveis anarquistas de outrora: “Legalize it!”

Lembro do dia em que a ditadura finalmente caiu. Ouvi o som da festa do retorno da democracia desde dentro da prisão. Fui um dos últimos presos da ditadura, mas a minha anistia somente foi aprovada depois do início formal da democracia. Tinha ficado preso por 42 dias, por usar maconha.

Ao voltar para a rua, descobri que não me sentia mais confortável naquele lugar. Algo tinha mudado em mim. Esse foi um dos motivos que me motivou para vir para o Brasil. Não me sentia cômodo dentro daquela sociedade, já que muitos lá haviam-se resignado à ditadura, e eu sentia que não poderia fazer muito para mudar a visão dessas pessoas. Era melhor migrar do que tirar a ditadura da cabeça delas.

Naquela época já começava a dar meus incipientes primeiros passos na vida de Yoga e ainda lembro claramente da satisfação que as primeiras práticas me davam. Em nenhum momento achei que a minha ‘luta’ individual, pela liberdade de ir e vir, ou de expressar meu pensamento, ou de fazer o que bem entendesse com a minha saúde, estivesse em contradição com a prática. Muito pelo contrário. Eram partes da mesma vida, que estavam perfeitamente integradas.

O inconformismo é o ponto de partida do Yoga. Até hoje, ainda não achei ninguém que tivesse começado a praticar porque tudo estava indo perfeitamente bem na vida. Todos buscamos uma saída para o sofrimento, a loucura ou a pressão que a vida atual nos impõe.

Os grandes inconformistas e a espiritualidade

Jesus foi condenado a morte e executado por desafiar o poder constituído. Foi um insubmisso, um dissidente que clamou pelo igualitarismo. Ao polarizar a atenção do povo em torno de seus ensinamentos, incorreu no crime de lesa majestade, atentando contra a autoridade do imperador romano. Tem gente que vê em Jesus um yogi.

Buda abandonou uma posição confortável, como príncipe de uma cidade-estado no norte da Índia, para buscar a iluminação. Ele também foi um inconformista, que se rebelou contra a teocracia vigente à época em que viveu para buscar um sentido mais profundo do que aquele que tinham-lhe reservado. Olhando para a vida e os ensinamentos de Buda, podemos dizer que ele também foi um yogi.

Sri Aurobindo foi preso por conspirar junto com outros jovens revolucionários contra o domínio inglês. Ficou à sombra na prisão de Alipore, em Calcutá, de 1907 a 1908. Ao sair, escreveu que, ao invés de um ano de suplício, ‘teria sido mais apropriado falar de um ano vivendo num ashram ou numa hermida e que, o único resultado da ira do governo inglês foi que encontrei Deus.’ Ele foi um dos maiores yogis do século passado.

O monje budista vietnamita Thich Nhat Hanh é um dos maiores mestres de Yoga de Ação e Yoga de Conhecimento da atualidade. Como ativista pela paz, Nhat Hanh fundou escolas, hospitais e reconstruiu vilas destruídas pela guerra do Vietnã.

Como promotor da causa da paz, viajou posteriormente para os Estados Unidos, onde motivou Martin Luther King a se opor publicamente à guerra. Posteriormente, Luther King indicou ele para o Prêmio Nobel da Paz.

Destes exemplos, podemos deduzir que é possível que exista alguma relação entre inconformismo e crescimento interior. Uma via que combine a espiritualidade e o compromisso de construir um mundo melhor.

Não estou querendo comparar a trajetória destes gigantes do espírito com a de um jovem maconheiro inconformista, mas o fato é que, partindo de seus diversos lugares, cada um chega no mesmo estado, independentemente da formação, da cultura, da educação que receba ou grupo étnico ao qual pertença.

Em tempo: Parei de fumar maconha há mais de 20 anos, pois não acredito que o consumo de substâncias open mind, como eram chamadas estas drogas na minha época, seja de alguma utilidade para o progresso no Yoga.

Muito pelo contrário: penso que o consumo de maconha seja prejudicial para o praticante sincero e devotado, já que induz à confusão mental (moha), cria um hábito (vasana) que gera por sua vez apego (raga). E, por mais que os ilustres maconheiros digam que o consumo de maconha não vicia, existe, sim um vício psicológico, inimigo da liberdade que o yogi pretende alcançar.

Num determinado momento da prática, quando percebi que o compromisso em relação à prática, a mudança para a dieta vegetariana e abandonar hábitos perniciosos eram condições indispensáveis para crescer interiormente, fiz o voto de não mais consumir essas substâncias. Não me arrependo. Apenas guardo gratidão pelos bons momentos vividos.

Conheço até Swamis maconheiros. Não estou aqui julgando meus amigos e conhecidos consumidores da erva mas acho, sinceramente, que qualquer droga (como o nome indica), seja um obstáculo para a prática e a compreensão do que nós somos. Para ter-se moksha, é preciso que as idéias estejam claras, e que a mente seja objetiva.

Além do mais, considerando o sistema de produção e distribuição por todos conhecido hoje no Brasil, a maconha está suja de sangue. Acredito que aceitarmos o consumo de maconha do jeito que se faz atualmente, significa sancionar essa relação promíscua entre os traficantes e o estado, com a violência e a insegurança que essa situação traz para toda a sociedade.

Harih Om!

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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12 respostas para “O Yoga e a espiritualidade engajada”

  1. Boom bolenath shiva shamboo

    Saudaçoes eternas honoravel, interessante sua visão, venho compartilhar que faço parte de um grupo de estudiosos e praticantes de yoga e nós todos, inclusive nossos Irmãos Que vem da india todos utilizam a cannabis, na india é um habito cultural milenar e lá não existe a relação Droga-Planta, a cultura milenar oriental sabe muito bem diferenciar o que é uma pratica enteogena atraves do reino eterico vegetal ao inves do uso de “drogas sinteticas” , é claro que vemos muitas consequencias hoej na sociedade de praticas sem consciencia, mas não se esqueçam que o consumo consciente incentiva praticas conscientes, portanto realize-se no proposito da sinceridade, saudaçoes eternas hari OM !

  2. Olá Pedro,
    Estou comentando 3 anos depois da publicação do texto, mas é que o achei interessantissimo, sou praticante de yoga e usuario de cannabis, e muitas vezes aprecio muito a associação, de certo modo concordo com a sua opiniao sobre a incompatibilidade entre ambos, mas vale a pena lembrar que a cultura hindu cita a cannabis em suas escrituras, inclusive o proprio Shiva , em certa passagem, abrigou-se sob um pé de canhamo e mastigou suas folhas.
    Na prática o efeito da cannabis ajuda muito no relaxamento e na concentração necessaria para realizar as Asanas, seu efeito fragmentador do “eu” faz com que nos desindividualizamos, chegando proximo da unidade total. Mas essa é só minha opiniao,espero que não tenha levado a mal… só estou comentando mesmo por admirar um texto tão bem escrito como o seu.
    Parabéns.

  3. OI PEDRO
    ACHO QUE DENTRO DA NOSSA SOCIEDADE CONFUNDIMOS ESSA FALSA “LIBERDADE” QUE AS DROGAS PROPORCIONAM, COM A VERDADEIRA LIBERDADE QUE SE DÁ ATRAVÉS DO CONHECIMENTO QUE O YOGA NOS ENSINA A SENTIR, POIS JÁ NAS PRIMEIRAS PRATICAS TOMAMOS CONHECIMENTO DISSO. E ENTÃO SEGUIMOS RUMO A ESSA JORNADA ESPETACULAR QUE É O YOGA QUE ABRE PORTAS DE ILUMINAÇÃO ONDE QUALQUER FORMA DE APEGO NÃO SIGNIFICA MAIS NADA…

  4. Parabéns pelo artigo! Mas preciso colocar que a maconha comprada está sim suja de sangue, mas não pode, em hipótese alguma ser comparada à cocaína. A maconha é inclusive terapeutica, enquanto que a cocaína jamais será indicada a qualquer usuário prometendo algum benefício. Portanto, vamos sim usar o inconformismo com o tráfico e tudo que dele provem e lutarmos sim pelo legalize já! Se cada um cultivar a sua plantinha com amor, ela não nos fará mal.

  5. Muito obrigado Pedro, pelo seu artigo. Fiquei muito feliz de ter lido-o. Pois também já fui usuario de maconha e alucinogenos, achando que poderiam me ajudar a me conhecer melhor. Agora que comecei a buscar o caminho do Yoga larguei esse vício e estou muito mais feliz. Acredito que esse seja uma ilusão que tem aprisionado muitos jovens ultimamente, que acreditam estarem assim sendo “revolucionarias ao sistema”. Muito bom saber um pouco da sua historia. Abraço!

  6. Bom dia!
    Parece que o filme “Tropa de Elite” tem levado diversos ex-maconheiros a refletirem sobre a co-responsabilidade pela guerra do tráfico em diversas favelas espalhadas pelo Brasil.

    Enquanto apertávamos um pacífico “baseado”, diversas armas contrabandeadas atravessavam a fronteira do país para serem vendidas pela Polícia Militar ao Narcotráfico; diversas crianças das favelas entravam para o narcotráfico, como fogueteiros, na esperança de uma vida melhor; diversas pessoas eram mortas ou feridas por balas perdidas.
    O triste é que quando vivímos o barato da droga, não enxergávamos isso. E ai daquele que viesse nos alertar. Tratávamos logo de taxá-lo de careta.
    Hoje, a droga é ainda pior. Pó, crack, êxtase. O que você faria se soubesse que seu filho ou filha estava numa rave (acho que é assim que se escreve), regada a êxtase até 6 da manhã?
    Namastê!

  7. Pedro, fiquei muito feliz e surpresa ao ler seu artigo. Ele veio como um bálsamo num momento em que me encontrava desalentada, por assim dizer. Sempre fui uma questionadora, inconformista e portanto, muitas vezes incompreendida por meus amigos e familiares. Sempre fui briguenta, no bom sentido da palavra, lutando pelas coisas nas quais acredito e tentando convencer aos outros que vale a pena tentar mudar algo que não está bom, que vale a pena se mexer. Acredito que mesmo um pequeno passo é melhor do que a inércia.
    Mas o questionamento constante e o incoformismo frente a algumas questões acabam por trazer tristezas também. Muitas vezes a gente acha que está “malhando em ferro frio”, que está perdendo a voz de tanto repetir a mesma coisa e acabamos nos cansando de tantas críticas recebidas.

    Algumas pessoas ao nosso redor parecem ter feito um pacto entre elas para repetir sempre a mesma coisa: “Você é muito radical”; “Você é 8 ou 80”; “Você seria mais feliz se não fosse tão inconformada com o mundo”; e por aí vai.
    Mas o fato é que verdadeiramente não acho que eu seja uma pessoa “radical”, ou “inconformada com o mundo”, apesar de reconhecer que em ALGUMAS QUESTÕES sou sim radical, pq é o nosso dever! Dá por exemplo para ser “meio-termo” quando o assunto é pedofilia?
    Existe algo que poderá mudar meu conceito com relação à isso? É possível ser flexível e tolerar isso em alguma circunstância? É claro que não, então, nessas situações sou radical sim!
    Porém nas últimas semanas estive envolvida em uns projetos que precisei mobilizar meus amigos e lá veio mais uma enxurrada de críticas e “receitas de bolo” para a vida. E me peguei pensando se deveria ser mais resignada com relação a algumas coisas, se deveria “let it be”, e ficar quieta esperando que as coisas tomassem vida própria e mudassem.
    Daí me deparo com seu artigo! Nem de longe, em momento algum me comparo nem à você e nem aos grandes sábios citados! Quem me dera! Mas é reconfortante ser lembrada que de um jeito ou de outro quem busca o crescimento interior acaba carregando em si o bichinho do inconformismo, do “querer mudar”.
    Fica aqui a lição que talvez eu esteja me utilizando das ferramentas erradas para o trabalho certo. Talvez a imcompreensão alheia se dê pela maneira de como luto pelo que acredito. Pensarei mais à respeito para tentar buscar respostas.
    Obrigada por tornar meu Dia do Yoga mais feliz!
    Em tempo: Sempre acreditei que o uso de drogas como a maconha por exemplo, não tivesse muito a ver com a violência no Brasil. Achava que isso era papo de gente “careta”. Mas quando se vive numa cidade como o Rio de Janeiro e quando por algum motivo você começa a ver a violência mais de perto (no meu caso por estar bem próxima do que acontece no sistema penitenciário do Rio), a gente começa a perceber a relação direta e estreita entre o baseado que você compra e o cara que tira a sua vida.
    Temos bons livros de jornalistas que contam diversos fatos relacionados. O filme “Tropa de Elite” já está entrando em circuito para quem quiser ver (totalmente apoiado em fatos reais). Entretanto, não é proibindo o uso de drogas que se diminui a violência, pq aqui no Rio, pelo menos, só não compra drogas quem não quer. Mas esse assunto de “legalize já” fica para uma outra oportunidade! Beijos.

  8. Não tive contato com as drogas,mas a busca pela espiritualidade já me levou por caminhos claros e escuros. Hoje percebo, que buscar a espiritualidade é buscar a si mesmo, e que o Yoga, minha amada bússula, é fundamental para se seguir em frente.

  9. Oi Pedro. Parabéns pelo seu artigo. Antes de entrar para a prática do Yoga, fui alcóolatra e fumante e sei da imundície e do perigo que esses vícios representam!

  10. Muito bom o seu artigo e parabéns pela franqueza ao tocar em assuntos tão delicados.

  11. Bons eram os tempos em que eu e Gioconda, lá pelos idos da década de 60, do século XVI davamos os nossos tapas na macaca!!! Ela adorava este open mind . Nós ficávamos horas filosofando junto com nosso grande amigo Leo, que a retratou muito bem neste afresco. Bons tempos de erva pura e sexo sem camisinha. Pena que o rock”n”roll só chegou séculos depois… Nada é perfeito!
    Quando puderem venham visitar meu túmulo em Provence.
    Harih Om! Au revoir!

  12. Gostei muito do artigo. Vivi experiência semelhante quanto ao consumo de maconha. Para mim o uso foi equivocado, pois acreditava que era só através “dela” é que conseguiria expandir a mente e viver momentos especiais.
    Hoje, após conhecer o Yoga (mesmo sendo nova na prática) e ter vivido experiências únicas, percebi que sou capaz de percepções incríveis sem drogar meu organismo.
    Fico triste por saber que não são todas as pessoas que têm o privilégio que eu tive de conseguir deixar essa porcaria.
    E agradeço à Deus porque hoje eu subi muitos degraus na grande trajetória de me fazer alcançar a iluminação.
    Namastê!

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