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Ódio, racismo e fobias têm cura: Manīshā Pañcakam

Será que o Yoga tem alguma contribuição para o problema das fobias? Pode a sabedoria dos yogis de outrora ter abordado estes temas em algum momento da sua longa história? Sim!

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Manisha

O problema do ódio

O preconceito e a discriminação afligem a raça humana há milênios no mundo inteiro. As vítimas mudam, o discurso muda, mas o preconceito e a violência permanecem. Há casos de perseguição descritos já no Antigo Testamento. 

Racismo, homofobia, casteísmo, transfobia, misoginia, capacitismo, islamofobia, antissemitismo, e outras fobias são responsáveis pela morte de milhares de pessoas a cada ano. Não temos números exatos nem estatísticas sobre as mortes causadas pela perseguição racista, o machismo ou a homofobia, pois os registros variam de acordo com os países e regiões do mundo, além de serem frequentemente subnotificados. 

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O ódio na sociedade

Algumas pessoas são consideradas inferiores, desprezíveis ou indignas de viver por conta da cor da pele, da orientação sexual, da religião ou do berço em que nasceram. Na Índia, os Dalits, nascidos fora do sistema de castas, são oprimidos e deixados à margem da sociedade há milênios. 

No Brasil, o preconceito contra os povos originários coloca em risco a existência de etnias inteiras. Culturas e línguas nativas das Américas se perdem em ritmo acelerado por conta do descaso e a falta de proteção. 

Podemos afirmar que a própria escravidão acabou apenas no papel: os descendentes dos escravos nunca tiveram a chance de integrar-se à sociedade. A Lei de Cotas para o Ensino Superior já é um grande passo nessa direção, mas o racismo sistêmico persiste. 

Ainda devemos mencionar as incontáveis vítimas de discriminação de gênero e orientação sexual: a sociedade tentou várias soluções mas até agora não conseguiu resolver estas questões. 

A proposta do Yoga

Será que o Yoga tem alguma contribuição para estes problemas? Pode a sabedoria dos yogis de outrora ter abordado estes temas em algum momento da sua longa história? Sim!

Os sábios, chamados ṛṣis, ensinaram que todos os seres humanos, todas as formas de vida, somos manifestações de Īśvara, a natureza criativa, assim como todas as ondas são manifestações do oceano. Enquanto manifestações do Ser Absoluto, somos todos perfeitos e completos, apesar das diferenças visíveis entre as diversas formas de vida. 

Mokṣa, o objetivo do Yoga, que pode ser traduzido como libertação ou iluminação, consiste em dois passos: 

1) descobrir essa perfeição como sendo a nossa própria natureza, e
2) reconhecer que todos os seres somos essencialmente idênticos. 

O fruto da iluminação

Quando você reconhece isso, é absolutamente impossível julgar como inferior ou indesejável quem quer que seja: pessoas, animais e plantas são manifestações perfeitas da natureza. 

A resposta à questão acima está no Manīṣā Pañcakam, o “Quinteto da Convicção”. Este é um poema de Ādi Śaṅkarācārya, que viveu no século VIII dC, e que propõe a cura de todas as fobias e a superação do Medo do Outro. 

A história do Manīṣā Pañcakam

O contexto para o ensinamento contido no poema é curioso. Conta a história que Śankara vivia na cidade sagrada de Varanasi, chamada Kaśi à época. Um dia, voltando do seu banho no sagrado rio Ganges para o ritual diário no templo de Kaśī Viśvānātha, (a forma de Śiva como o liṅgaṁ de luz), encontrou no caminho um cāṇḍāla um descastado, acompanhado da sua esposa.

As regras da religião ortodoxa hindu eram (e são ainda) muito estritas em relação à ideia de pureza: se a sombra de Śaṅkara tocasse a sombra dos cāṇḍālas, tornar-se-ia impuro e teria que fazer outros rituais e banhos específicos para purificar-se do indesejável contato com o intocável.

A resposta do intocável

Assim, tomado pelos condicionamentos e possuído por essas crenças sociais, a primeira reação do yogi foi dizer para o casal: “sai da frente!” (gaccha, gaccha!). Porém, para a sua surpresa, o descastado replicou em perfeito sânscrito: 

“Quando você me pede para sair da frente, a quem se refere? Você quer que o meu corpo físico se afaste do seu, ou que a minha Consciência se afaste da sua Consciência?” A lição que o descastado deu para Śaṅkarācārya é que ambos os corpos são igualmente “impuros”. 

Isso, porque ambos os corpos contêm “fluidos fedorentos”, para usar a expressão em voga à época, considerados impuros pela ortodoxia religiosa. E ambos os Seres são perfeitos e puros. 

Śankara reconheceu o erro e percebeu a força dos seus próprios condicionamentos. Imediatamente se prostrou e tocou os pés do descastado em sinal de respeito. 

O intocável continuou: “Quando os raios do sol se refletem na superfície do sagrado Ganges, ou numa poça lamacenta numa aldeia de descastados, qual é a diferença?” O sol não se mancha com a lama nem se torna mais sagrado ao tocar o Ganges. Da mesma maneira, Ātma, o Ser, não é nunca afetado pelas coisas do corpomente. 

Noutras palavras, você, em termos absolutos, nunca é limitado pelas limitações do corpo. Você não tem etnia nem raça. Você não é mulher nem homem, nem a sua orientação sexual. 

Você é Consciência. Assim, Śankara, tomando consciência do erro colossal que havia cometido, respondeu ao cāṇḍāla com as cinco estrofes do Manīṣā Pañcakam. A palavra manīṣā, que significa “firme convicção”, aparece no fim de cada uma das cinco estrofes. 

O ensinamento do Manīṣā Pañcakam

Em suma, o que o Manīṣā Pañcakam nos mostra é que, uma vez que descobrimos a nossa real natureza, uma vez que reconhecemos que todos os seres, sem excepções, são manifestações do Ilimitado, todas as considerações sobre posição social, casta, etnia, cultura, orientação sexual ou gênero são absolutamente irrelevantes. 

Vejamos então qual foi a resposta de Śaṅkara ao intocável.

A primeira estrofe diz:

जाग्रत्स्वप्नसुषुप्तिषु स्फुटतरा या संविदुज्जृम्भते या ब्रह्मादिपिपीलिकान्ततनुषु प्रोता जगत्साक्षिणी ।
सैवाहं न च दृश्यवस्त्विति दृढप्रज्ञापि यस्यास्ति चेच्चाण्डालोऽस्तु स तु द्विजोऽस्तु गुरुरित्येषा मनीषा मम ॥ १॥

jāgratsvapnasuṣuptiṣu sphutatarā yā samvidujjṛmbhate
yā brahmādipipilīkāntatanuṣu protā jagatsākṣiṇī |
saivāhaṁ na ca dṛśyavastviti dṛḍhaprajñāpi yasyāsticet-
ccāṇḍālo stu sa tu dvijostu gurur ityeṣā manīṣā mama || 1 ||

Na vigília, no sonho e no sono, a Consciência brilha em todos os seres,
desde o Criador até a formiga, como a testemunha em todos e em tudo.
Sou essa Consciência e não um objeto: aquele que tiver essa visão,
seja sacerdote ou descastado, é o meu mestre. Essa é a minha convicção. || 1 ||

O segundo śloka é assim:

ब्रह्मैवाहमिदं जगच्च सकलं चिन्मात्रविस्तारितं सर्वं चैतदविद्यया त्रिगुणयाऽशेषं मया कल्पितम् ।
इत्थं यस्य दृढा मतिः सुखतरे नित्ये परे निर्मले चाण्डालोऽस्तु स तु द्विजोऽस्तु गुरुरित्येषा मनीषा मम ॥ २॥

brahmaivāhamidaṁ jagacca sakalaṁ cinmātravistāritaṁ
sarvam caitadavidyayā triguṇayā’śeṣaṁ mayā kalpitam |
itthaṁ yasya dṛḍhā matiḥ sukhatare nitye pare nirmale
cāṇḍālo’stu sa tu dvijo’stu gururityeṣā manīṣā mama || 2 ||

Sou Brahman. Este universo inteiro é uma projeção da Consciência.
Devido à ignorância, tudo isto foi projetado a partir de mim.
Aquele cuja mente estiver firme nesta verdade eterna e absoluta,
seja sacerdote ou descastado, é o meu mestre. Essa é a minha convicção. || 2 ||

A terceira estrofe ensina:

शश्वन्नश्वरमेव विश्वमखिलं निश्चित्य वाचा गुरोर्नित्यं ब्रह्म निरन्तरं विमृशता निर्व्याजशान्तात्मना ।
भूतं भावि च दुष्कृतं प्रदहता संविन्मये पावके प्रारब्धाय समर्पितं स्ववपुरित्येषा मनीषा मम ॥ ३॥

śāśvannaśvarameva viśvamakhilaṁ niścitya vācā guror-
nityam brahma nirantaraṁ vimṛśatā nirvyāja śāntātmanā |
bhūtaṁ bhavi ca duṣkṛtam pradahatā samvinmaye pāvake
prārabdhāya samarpitam svavapurityeṣā manīṣā mama || 3 ||

O universo está em constante mudança. Ciente disso, e com [a ajuda das]
palavras do mestre, a pessoa contempla Brahman com a mente pacificada.
Queimando karmas passados e futuros no fogo do Conhecimento,
o próprio corpo se entrega ao processo. Essa é a minha convicção. || 3 ||

No quarto śloka , Śaṅkara continua:

या तिर्यङ्नरदेवताभिरहमित्यन्तः स्फुटा गृह्यते यद्भासा हृदयाक्षदेहविषया भान्ति स्वतोऽचेतनाः ।
तां भास्यैः पिहितार्कमण्डलनिभां स्फूर्तिं सदा भावयन्योगी निर्वृतमानसो हि गुरुरित्येषा मनीषा मम ॥ ४॥

yā tiryaṅnaradevatābhirahamityāntaḥ sphutā gṛhyate
yadbhāsā hṛdayākṣadehaviṣayā bhānti svato’cetanāḥ |
tām bhasyaiḥ pihitarkamaṇḍalanibhām sphūrtim sadā
bhāvayānyogi nirvṛtamanaso hi gururityeṣā manīṣā mama || 4 ||

Animais, pessoas e deuses experienciam a Consciência como “eu”.
Devido ao seu brilho, a mente, o corpo e os objetos aparentam [ser
independentes] ainda que sejam não sencientes. A Consciência está
“escondida”, como o sol oculto pelas nuvens. Meditando na Consciência,
o yogi com a mente calma é o meu guru. Essa é a minha convicção. || 4 ||

E conclui desta maneira com a quinta estrofe:

यत्सौख्याम्बुधिलेशलेशत इमे शक्रादयो निर्वृता यच्चित्ते नितरां प्रशान्तकलने लब्ध्वा मुनिर्निर्वृतः ।
यस्मिन्नित्यसुखाम्बुधौ गलितधीर्ब्रह्मैव न ब्रह्मविद्यः कश्चित्स सुरेन्द्रवन्दितपदो नूनं मनीषा मम ॥ ५॥

yatsaukhyāmbudhileśaleśata ime śakrādayo nirvṛtā yaccite
nitarāṁ praśāntakalane labdhvā munirnirvṛtāḥ |
yasminnityasukhambudhau galitadhīrbrahmaiva na brahmavidyaḥ
kaścitsa surendravanditapado nūnaṁ manīṣā mama || 5 || 

Com uma única gota do Oceano da Felicidade, deuses como Indra ficam satisfeitos.
Mas, com uma mente calma, um sábio contenta-se. Aquele cuja mente está imersa
nesse Oceano de Felicidade é Brahman, e não apenas um conhecedor de Brahman.
Ele é adorado por Indra [e todos os demais deuses]. Essa é a minha convicção. || 5 ||

॥ इति श्रीमच्छङ्करभगवतः कृतौ मनीषापञ्चकं सम्पूर्णम् ॥

iti śrīmacchaṅkarabhagavataḥ kṛtau
manīṣāpañcakaṁ sampūrṇam ||

Aqui conclui-se o Manīṣā Pañcakaṁ,
composto por Śrī Ādi Śaṅkarācārya

ॐ ॐ ॐ

Conclusão

Diz a lenda que o intocável e a sua esposa eram ninguém mais e ninguém menos que Śiva e Pārvatī, encarnados na forma do casal, para ensinar a Śaṅkara uma das mais importantes lições que o mestre devia aprender, pois de nada serve você ser muito versado nas escrituras e aferrar-se à arrogância da sua posição social.

Assim, Śankara aceitou o descastado como o seu próprio mestre iluminado. Portanto, se o Yoga tem algum valor para você, faça como Śankara e deixe todos os seus preconceitos de lado. A cada um de nós que abandona seus condicionamentos culturais e sociais, o mundo torna-se um lugar melhor. 

Manisha

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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