Yoga da distinção entre os três tipos de fé
Fala Arjuna:
1. Qual é, ó Krishna, a condição daqueles que, sem ater-se aos preceitos das Escrituras, praticam o culto com fé? É a de sattwa, rajas ou tamas?
Fala Krishna:
2. Entre os mortais, há três tipos de fé, nascidas de sua natureza individual (1). A fé pode ser sáttwica, rajásica ou tamásica (2). Escuta a descrição das três.
3. A fé de cada pessoa, ó filho de Bhárata, concorda com seu caráter. Cada um se constitui por sua própria fé; tal é a fé, tal é o homem.
4. Os homens de índole sáttwica adoram os deuses. Os que têm caráter rajásico adoram os yashkas e os rákshasas, e os de natureza tamásica prestam culto às sombras (3) e aos espíritos elementares.
5. Os homens que praticam acerbas penitências, não prescritas nos Livros Sagrados (4), estando por outro lado cheios de hipocrisia e egoísmo, deixando-se arrastar pela violência de seus desejos e paixões,
6. torturando em sua insensatez o conjunto de elementos do corpo, e também a Mim, que nele resido, entenda que tais homens têm intenções demoníacas.
7. Os alimentos preferidos pelos homens, assim como os sacrifícios, as penitências e as esmolas, são de três tipos, correspondentes às disposições individuais. Ouve o que os distingue.
8. Os alimentos que fortalecem a vida, a energia, a saúde, a alegria e o bem-estar; os que são saborosos, suaves, nutritivos e agradáveis são os alimentos preferidos dos homens de temperamento sáttwico.
9. Os homens dotados de um temperamento rajásico preferem os alimentos ácidos, amargos, salgados, picantes, muito quentes, áridos e ardentes, que propiciam moléstias, dores e enfermidades.
10. Os alimentos passados, rançosos, corrompidos, insípidos, restos de comida e pratos impuros (5) são os preferidos pelos homens de temperamento tamásico.
11. O sacrifício oferecido segundo as prescrições da lei, sem esperança de recompensas, na convicção de que tal ato é um dever, é de natureza sáttwica.
12. O sacrifício oferecido com intenção de obter favores, ou por hipocrisia, ó melhor dos Bháratas, é um ato de índole rajásica.
13. O sacrifício que é oferecido de forma contrária à lei, sem fé, sem distribuição de alimentos, recitação de textos sagrados, e sem o estipêndio do sacerdote, é de natureza tamásica.
14. A veneração aos deuses, dvijas, mestres espirituais e sábios; a pureza, a retidão, a castidade e a mansidão constituem a ascese do corpo.
15. A linguagem comedida, honesta, verídica, agradável e proveitosa, e também a leitura habitual dos Livros Sagrados, são a ascese da palavra.
16. Serenidade mental, doçura, placidez, silêncio, domínio de si mesmo e pureza de ânimo é no que consiste a ascese da mente.
17. Essa ascese tripla, praticada pelos homens piedosos, com fé fervorosa sem visar a recompensas, é dita sáttwica.
18. A ascese praticada com hipocrisia, com a intenção de obter agasalho, respeito e honra, é dita rajásica.
19. A ascese praticada com o tolo propósito de torturar-se a si mesmo, ou de fazer mal a alguém (6), é dita tamásica.
20. A esmola oferecida a uma pessoa merecedora de tal benefício e que não possa retribuí-lo, com a idéia de cumprir um dever e em tempo e lugar adequados (7), é sáttwica.
21. Mas a esmola dada com expectativa de retorno ou recompensa, ou dada de má vontade, é rajásica.
22. A esmola distribuída a pessoas indignas, com ar desdenhoso, sem guardar as devidas atenções e em tempo e lugar inoportunos, é tamásica.
23. OM, TAT, SAT (8): é essa a tríplice designação de Brahman. Por ela foram criados em tempos antigos os brahmánas, os Vedas e os sacrifícios.
24. Por essa razão, os conhecedores de Brahman jamais iniciam os atos de sacrifício, caridade ou mortificação, ordenados pela lei, sem antes pronunciar o monossílabo OM (9).
25. Pronunciando o monossílabo TAT e sem visar aos frutos de suas obras, aqueles que anseiam pela libertação aos diversos atos de sacrifício, penitência e esmola.
26. O monossílabo SAT é usado para exprimir realidade e bondade. Essa palavra também se aplica a obras meritórias, filho de Prithá.
27. A constância no sacrifício, na penitência e na esmola é também designada com a palavra SAT. Da mesma forma, toda ação executada em honra daquele se denomina SAT.
28. Todo sacrifício, toda esmola e toda mortificação, ou qualquer outro ato praticado sem fé, é chamado a-sat, filho de Prithá, e é completamente nulo, tanto nesta vida como na futura.
Notas:
(1) Swabháva.
(2) Seguindo vários tradutores, adotei os adjetivos sáttwico, rajásico e tamásico, derivados dos substantivos sattwa, rajas e tamas.
(3) Pretas. Seres humanos desencarnados que habitam o mundo das sombras.
(4) Alusão a mortificações e penitências cruéis que afetam apenas o corpo.
(5) Os que não são apropriados como oferendas nos sacrifícios.
(6) Através de um sistema contínuo de mortificações pode-se adquirir poderes extraordinários, entre os quais, ao que se diz, o de causar dano a uma pessoa qualquer, através de uma maldição.
(7) “Lugar adequado” é um lugar sagrado, e o tempo oportuno pode ser durante um eclipse, no plenilúnio, o último dia do mês, a manhã, etc.
(8) Essas três palavras equivalem, de certa forma, à sentença mística “Tu és Aquele”, através da qual se expressa o Espírito Supremo em Sua relação com o Universo, indicando-se a divindade com a sílaba OM, sua universalidade com TAT e sua existência real e eterna com SAT.
(9) “Um ato de culto imperfeito pode tornar-se perfeito desde que se pronuncie uma das designações da divindade” (Ádi Shankaracharya).
Traduzido para o castelhano por Roviralta Borrel (1856-1926), e deste para o português por Eloísa Ferreira.
Publicado originalmente pela Editora Três, de São Paulo, em 1973, na Biblioteca Planeta, Volume 7.
Digitado por Cristiano Bezerra.