Meditação, Pratique

Uma reflexão sobre pratyahara

A exposição que se segue é fruto de reflexões surgidas a partir de uma experiência que tive, e que me motivou a tomar uma atitude radical em favor de minha vida espiritual.

· 5 minutos de leitura >

A exposição que se segue é fruto de reflexões surgidas a partir de uma experiência que tive, e que me motivou a tomar uma atitude radical em favor de minha vida espiritual. A experiência ocorreu há aproximadamente um ano e meio, mas mesmo assim, vou contá-la agora. Ao leitor peço, contudo, que não tome precipitadamente este texto como algo estritamente subjetivo, pois na seqüência darei uma fundamentação autenticamente yogika para as idéias que aqui exponho.

Aconteceu que durante aquele período, estava fazendo um intenso trabalho de pesquisa sobre meu corpo sutil, estudando principalmente as nuances do funcionamento dos chakras. Meu professor de Yoga era também um terapeuta, e estávamos nos utilizando de técnicas da radiestesia para fazer medições nos chakras e no alinhamento entre eles.

Porém, um certo dia, meus amigos me convidaram para ir ao cinema. Aceitei pois queria muito estar com eles. Porém, para minha infelicidade, ao chegar no cinema eles escolheram ver um filme de terror, bastante pesado. Aceitei entrar na sessão, e após os primeiros dez minutos de cenas chocantes resolvi ir embora, me sentindo muito desconfortável por ter visto aquilo, e sobretudo impressionado com o fato de tantas pessoas gostarem de ver tais coisas bizarras.

No dia seguinte voltei para as minhas sessões de radiestesia, e então, ao fazermos as avaliações de rotina, meu terapeuta perguntou-me espantado sobre o que havia acontecido, pois meus chakras estavam todos desalinhados e minha aura um tanto, digamos assim ‘bagunçada’. Era como se um furacão tivesse passado e arruinado todo o equilíbrio que eu havia conquistado após algumas semanas de práticas de Yoga e harmonização do meu corpo sutil.

Foi então que, de uma vez por todas, compreendi o impacto que as imagens captadas pelos sentidos podem causar em nosso interior. Aqueles poucos minutos de cenas bizarras foram suficientes para poluir minha consciência, e fiquei me questionando porque eu havia desperdiçado o meu tempo com aquela tolice.

Passei então a atentar-me cada vez mais para a percepção de que fatos aparentemente banais e inofensivos, coisas sem importância que absorvemos no nosso dia a dia, influenciam imensamente o nosso estado de consciência, e fazem isto a um nível subliminar tal que muitas vezes passam completamente desapercebidos.

Entendi que, daquela experiência em diante, eu deveria ser absolutamente criterioso e seletivo para com todas as coisas que permitiria adentrar em meu campo sensorial, e que conseqüentemente dariam conteúdo ao meu estado de consciência.

Então fui analisando como as pessoas falam em meditação, em paz, em controle da mente e purificação, mas muitas pecam neste ponto básico: não sabem filtrar as coisas que deixam entrar em seu campo sensorial, não sabem selecionar o que irá fazer parte de suas mentes. Por isso a meditação se torna difícil, a paz de espírito se torna difícil, pois a mente está cheia de impressões nocivas, cheia de ervas daninhas brotando a partir do alimento que recebem dos cinco sentidos.

Krishna, na Bhagavad Gita, é muito magnânimo ao expor para Arjuna uma atitude indispensável para aquele que pretende ser um yogi. Ele ensina:

Yada samharate chayam
kurmo’nganiva sarvasah
indriyanindriyarthebhyas
tasya prajna pratisthita

Aquele que é capaz de retirar seus sentidos dos objetos dos sentidos, assim como a tartaruga recolhe seus membros para dentro da carapaça, está firmemente fixo em consciência perfeita. BhG, II:58

Quando Krishna diz isto, é evidente que não está se referindo a uma prática de alguns minutos, quando o yogi, após praticar uma hora de ásanas em seu tapetinho, vai fazer o tal pratyahara para uma ‘meditaçãozinha’ de mais vinte minutos. De que vale o esforço para purificar a mente durante duas horas de seu dia, se nas outras vinte e duas horas ela continua a ser poluída com todo o tipo de lixo tóxico sensorial?

Como sempre diz o meu querido mestre espiritual Purushatraya Swami: ‘sujar a mente é fácil, agora vá limpá-la.’ Limpar a sujeira não é tão fácil assim. E o que dizer do fato de que tudo o que uma vez entrou em sua mente, jamais se apagará de sua memória. Você já pensou nisto? Eu penso nisto o tempo todo, e procuro desta forma valorizar ao máximo todos os meus momentos, sem desperdiçar um segundo sequer da minha vida com bobagens que simplesmente vão se somar ao montante de impressões fúteis que em nada contribuem para o progresso na vida espiritual.

É dito que ao final da vida, no momento do crepúsculo, vamos assistir novamente ao filme todo, todas as experiências, todas as emoções, todas as imagens que vivenciamos. Você já parou para pensar como será o seu filme? Será que vai ser cheio de músicas barulhentas, imagens bizarras e emoções tétricas? Se for isso o que você consome no seu dia a dia, assim será o filme final da sua vida. E não pensar que será possível limpar estas impressões e iluminar-se no final, se a limpeza não começar pela própria profilaxia de não se permitir sujar-se em hipótese alguma.

É preciso ser fiel a si mesmo, ou seja, ir de encontro a tudo o que é favorável ao crescimento espiritual, e rejeitar terminantemente tudo o que é desfavorável a este crescimento. Na Sri Isopanisad, aqueles que simplesmente desperdiçam suas vidas afogando suas consciências em uma pilha de impressões fúteis são chamados de atma-hanah, ou seja, “matadores da alma”, pois tal estilo de vida em nada é favorável para a manifestação da natureza espiritual. Também na Bhagavad Gita, Krishna explica para Arjuna:

yam yam vapi smaran bhavam
tyajaty ante kalevaram
tam tam evaiti kaunteya
sada tad-bhava-bhavitah

Qualquer que seja o estado de existência de que alguém se lembre ao deixar o corpo, ó filho de Kunti, esse mesmo estado ele alcançará impreterivelmente. BhG, VIII:6.

Aqui vemos claramente a importância de se cultivar a consciência para que, na hora da morte, o estado em que ela se encontre seja propício ao deslocamento para uma condição superior de existência, e não para uma inferior. Você já pensou se na hora da morte a sua mente estará lembrando-se das coisas que viu no programa do Ratinho do dia anterior, ou então do filme de terror do cinema do fim de semana? Isto com certeza seria muito triste. Infelizmente, é nestes estados de consciência que morrem a maioria das pessoas nesta era de ignorância. Por isso Krishna também diz para Arjuna:

Anta-kale ca mam eva
smaran muktva kalevaram
yah prayati as mad-bhavam
yati nasty atra samsayah

E todo aquele que, no fim de sua vida, abandone seu corpo, lembrando-se unicamente de Mim, no mesmo instante alcança Minha natureza. Quanto a isto, não há dúvidas. BhG, VIII:5.

Sabemos que toda a prática do Yoga visa à purificação da consciência, de modo que, tendo alcançado o seu estado puro, ela possa refletir de fato a verdadeira identidade espiritual do ser vivo. Patanjali deixa este propósito muito claro em seus Yoga Sutras, explicando como Yoga é a cessação das perturbações da consciência (Yogaschittavrttinirodhah). Tendo alcançado isto, então aquele que vê se estabelece em sua própria natureza (tada drastuh svarupe  ́vasthanam). Do contrário, acontece a identificação do ser com as impressões da consciência (vrttisarupyam itaratra), e isto é a entrada no mundo da ignorância e da confusão (avidya), ou seja, o mundo em que vivemos e que, sem nos darmos conta, continuamos a buscar.

Assim, o método ensinado pelo senhor Krishna não é diferente disto, e na verdade é muito simples, e como o próprio Senhor diz, agradável de ser praticado. Deve-se apenas meditar em Deus constantemente, e assim, lembrando-se (smaran) de Deus unicamente, alcançar a natureza divina de Deus (mat-bhavam). Quanto a isto não há dúvidas.

Para concluir, convido o leitor a refletir agora sob o que realmente quer para a sua vida, e se achar que a iluminação espiritual é realmente a sua meta, vá aprendendo a viver como a tartaruga que sabe entrar para dentro do casco no momento oportuno. Isto é viver em pratyahara (“controle do alimento”), isto é saber manter a consciência num estado puro para que o sucesso espiritual seja garantido. Este mundo está cheio de bobagens e armadilhas para aprisionar a sua consciência, por isso esteja atento e não desperdice o seu precioso tempo com futilidades, Deus está esperando por você.

Om Tat Sat!

+ posts
suryabhedana

Sūryabhedana: a Respiração Solar

Pedro Kupfer em Prāṇāyāma, Pratique
  ·   1 minutos de leitura

O que traz paz ao dia-a-dia?

Pedro Kupfer em Pratique, Yoga na Vida
  ·   2 minutos de leitura

6 respostas para “Uma reflexão sobre pratyahara”

  1. Marcos,

    Eu nunca tinha lido um artigo sobre Yoga. É muito interessante. Gostaria muito de praticá-lo. Parabéns! Concordo que para poluir nossa mente com coisas fúteis é muito simples, mas é tão difícil para purificá-la!

    Que Deus esteja sempre com você!

    Um abraço,
    Zenilda.

  2. Olá Marcos,

    Resolvi dar uma espiadinha por aqui e li seu artigo. Muito legal a sua experiência. Também tenho tido algumas percepções nesse sentido e constatado como é importante saber discernir e escolher o que entra em nós, não apenas na hora da meditação, mas principalmente a todo o momento. Parabéns e obrigada por compartilhar esse aprendizado.

    Um abraço,
    Adèle.

  3. Saudações, Sr. Marcos Elias.

    Parabéns pelo artigo e pela vivência. Acredito plenamente que aquilo que ecoa como verdade para nós de fato é verdadeiro, mesmo entrando em contradição com verdades de outras pessoas. Quanto mais somos autênticos com aquilo que pensamos, mais próximos estamos da verdade final.

    Quero deixar o meu comentário de que devemos ser, sim, seletivos com tudo que “deixamos entrar” nos nossos corpos. Sejam através de imagens, sons, emoções, pensamentos etc. No entanto, devemos equilibrar esse impulso de seleção com o nosso desenvolvimento interno. Yoga é poder, é força, é energia. Energia e força para não se abalar com situações externas. Eu também fico um pouco chocado com filmes de terror. No entanto, sempre penso que isso é fruto de minha ignorância: ignorância em não levar em conta que aquilo é uma ficção. Situações verdadeiras também me chocam, às vezes. Mas também acredito que isso é fruto da minha ignorância: ignorância em não estar acreditando na justiça das leis da natureza e na lei do karma, que são perfeitas.

    Novamente, saudações pela colaboração e pela reflexão.

    Gabriel.

  4. Para contribuir, trago essa história. Não discordo sobre a nossa responsabilidade pela escolha do alimento, mas acho que aqui deveríamos acrescentar à reflexão a assertiva de que “assim como é em cima, é embaixo” e, após transmudar o dito para externo e interno, pensar sobre as reais razões do porquê de certos fatos influenciarem de forma diferente cada um de nós. Os motivos serão tão diversos quanto à singularidade de cada um, caminhantes do único caminho, não importam as vias.

    “O soberado no mar do Sul chamava-se Rapidamente; o soberano do mar do Norte chamava-se Subitamente; o soberano do Centro chamava-se Indistinção. Um dia, Rapidamente e Subitamente se encontraram na terra de Indistinção, que os tratou com muita benevolência. Rapidamente e Subitamente quiseram recompensar essa hospitalidade e disseram um para o outro: O homem tem sete orifícios para ver, ouvir, comer, respirar. Indistinção tem nenhum! Vamos furá-lo? Pondo mãos à obra, fizeram um orifício por dia. No sétimo dia, Indistinção morreu.” – por Tchuang-tse.

  5. É preciso cuidarmos para não ter medo nem nojo do mundo. Não é possível evitarmos todas as imagens horrendas. Não devemos, claro, procurá-las nem nos atrairmos por elas. Mas, caso venham, enforcemo-nos para não estarmos hipersensíveis nem hipervulneráveis. O feio e o horrendo estão presentes no nosso dia-a-dia; se não soubermos enfrentá-los sem nos afetarmos demais, passaremos a vida a fugir em atitude quase paranóica, como se fôssemos puros, e o resto, sujo. Concordo que devemos selecionar o que entra nas nossas portas sensoriais, porém o mais importante é nossa relação mental com o alimento dos sentidos. A maneira como reagimos. Que estejamos conscientes do que entra e do efeito causado em nós.

  6. Marcos,

    Maravilhoso esse seu artigo! Que a paz de Deus esteja com você!

    Abraços,

    Bruno Noya.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *