1. Conceito de saúde e doença
Muito se fala sobre a importância do Yoga para a manutenção da saúde e especialmente para a cura de doenças. Neste artigo irei um pouco além desse discurso. Não falarei dos benefícios específicos do Yoga para a cura de doenças. O desafio deste artigo é, a partir de dois conceitos de saúde ocidentais, tentar mostrar que o Yoga e suas disciplinas afins dão conta de “cuidar do indivíduo” em todos os seus aspectos. Ou seja, a visão de mundo na qual o Yoga está alicerçado, a tradição védica, dá conta, por meio de suas disciplinas que incluem o Haṭha Yoga, de diagnosticar, lidar e apontar meios de solucionar os sofrimentos humanos relacionados a esses conceitos. Veremos que através de conceitos do Haṭha Yoga, do Āyurveda, da Astrologia Védica e de Vedānta, temos uma visão que ajuda a entender o ser humano de maneira integral, para muito além do processo de saúde e doença.
Antes de falar de saúde e de doença é importante deixar claro que saúde e doença não são conceitos estáveis, mas estão sempre sujeitos a mudanças e reavaliações, de acordo com a conjuntura social, econômica, política e cultural.
Na medicina da Mesopotâmia e do Egito Antigo as doenças eram interpretadas como processos mágico-religiosos ou como castigos, consequência de tabus quebrados pela pessoa. Dentro da história ocidental, Hipócrates afirmou que o bem-estar do indivíduo estava relacionado ao seu ambiente, ou seja, ao ar, à água, aos locais que frequentava e ao alimento que ingeria. A saúde era reflexo da harmonia entre os humores do corpo, que eram o sangue, a bílis negra e amarela e a linfa ou fleuma. Esses quatro fluidos, para ele, eram constantemente renovados no corpo a partir do alimento ingerido. Foi a partir de Hipócrates (470-377 a.C), passando por Galeno (129-199), Paracelsus (1493-1541), Louis Pasteur, entre outros, que a visão de doença e de saúde começou a ganhar a forma como nos identificamos hoje, na qual, predominantemente, deixou de fazer parte do campo religioso para entrar no campo do empirismo e da ciência. Na visão da medicina moderna, a saúde e a doença ganham caráter funcional. O corpo funciona como uma máquina. Quando uma das peças está funcionando mal, o funcionamento do organismo como um todo é afetado. Então deve-se localizar essa peça, regular seu funcionamento para restabelecer o bom funcionamento do organismo como um todo. Essa é a visão de saúde e doença predominante na atualidade.
2. Saúde como ausência de doença
Foi a partir dessa visão que nos anos 70, Christopher Boorse, filósofo da medicina, criou a Teoria Bioestatística da Saúde. Ele fundamentou seus argumentos em teorias da época e lançou a definição funcionalista de saúde como ausência de doença. Essa teoria é o pano de fundo que a medicina tradicional trabalha para lidar com a saúde e a doença. Apesar de muito criticada pela própria biomedicina, essa visão é predominante no meio médico. Veremos o que isso quer dizer, por hora, vejamos como dentro desse conceito de saúde como ausência de doença, o Haṭha Yoga pode nos ajudar na manutenção da nossa saúde e, sobretudo, na ampliação do nosso conceito de saúde.
Atualmente, muitos médicos e especialistas da área da biomedicina recomendam a prática de Haṭha Yoga, não apenas como uma ferramenta para a manutenção da saúde, mas como um forte aliado na cura de doenças. De fato o Haṭha Yoga é um antigo método de cuidado com o corpo. Mas o corpo para o Haṭha Yoga não consiste apenas do corpo físico, mas também do prāṇā. As práticas de Haṭha Yoga estão alicerçadas na visão do Āyurveda. Não há como falarmos em Haṭha Yoga sem falarmos de Āyurveda e a sua visão de saúde e de doença, de equilíbrio e desequilíbrio. Āyurveda era a “ciência médica” que estava presente e que deu origem e embasamento às práticas de Haṭha Yoga. Nos tratados clássicos de Haṭha Yoga vemos clara alusões aos humores do corpo e como determinadas técnicas podem equilibrá-los, visão presente no Āyurveda.
Contudo, independente do praticante ter ou não o conhecimento de Āyurveda, as práticas de Haṭha Yoga nos fornecem ferramentas valiosíssimas para ajudar no processo de consciência corporal. Quando digo consciência corporal refiro-me ao conhecimento mais profundo do funcionamento do nosso corpo físico e seus processos fisiológicos, e o reconhecimento de que não somos apenas formados por ele, mas temos o prāṇā, a nossa energia vital, circulando em nosso corpo. Com o Haṭha Yoga começamos a perceber a não separação entre corpo físico, emoções, energia e mente. A partir dessa prática que é o Haṭha Yoga e a visão que ele nos traz, importado do Āyurveda e do Tantra, reconhecemos a saúde não apenas como algo meramente físico, mas que o inclui. Dentro dessas práticas podemos citar os ṣaṭkarmas (purificações), āsanas, prāṇāyamas, mudrās. A Gheranda Saṁhitā, célebre texto de Haṭha Yoga, que recomenda essas práticas para os seguintes benefícios, respectivamente: eliminação de impurezas do corpo, força e vitalidade, saúde do corpo e tranquilidade da mente. E sobre as mudrās diz:
A sua prática diária elimina todas as enfermidades e aumenta o fogo gástrico. (III:97)
O praticante não é alcançado pela morte nem pela decadência; a água,o ar e o fogo não o afetam. (III:98)
Com a sua prática eliminam-se a tosse, a asma, a inflamação do baço, a lepra e todo tipo de enfermidades. (III:99)
Tanto na Gheranda Saṁhitā quanto na Haṭha Yoga Pradīpikā e na Śiva Saṁhitā, os três tratados clássicos de Haṭha Yoga, é comum lermos, após a explicação de cada técnica, a ênfase no benefício que advém dela, que não são meramente físicos, pois, como sabemos, o Haṭha Yoga, diferente da biomedicina, não vê a saúde como algo apenas físico. A associação entre o prāṇā e estados da mente são também ressaltados, bem como a manutenção da jovialidade a partir de técnicas específicas, além de dietas e uma disciplina no comer, com o objetivo de purificar o corpo e mantê-lo saudável e forte. Como na citação abaixo:
“Seguir uma dieta moderada quer dizer alimentar-se com comida agradável e deixando sempre livre uma quarta parte do estômago e dedicando o ato de comer ao deus Śiva”.
2.1 Integração Biomedicina e Haṭha Yoga
O que praticamos como Haṭha Yoga hoje, definitivamente, é muito diferente do que nos propõe todas as práticas desses tratados. Há neles algumas práticas de purificação que nos causa profundo estranhamento, pois se baseava numa “tecnologia” e assepsias da época que foram escritos. O que praticamos hoje como Haṭha Yoga é reflexo dessa herança que chegou até nós de uma prática transformada e adaptada pela visão que temos hoje de medicina, de saúde e de doença. A maior parte das técnicas presentes nesses textos não é praticada pelos ocidentais, especialmente as técnicas mais invasivas de purificação. Isso não faz, porém, o Haṭha Yoga menos eficaz para nós na manutenção da saúde do corpo e da mente. Pelo contrário, as práticas e a visão de ser humano mais ampla do Haṭha Yoga podem atualmente complementar a visão da Biomedicina, bem como a Biomedicina, com todo o seu conhecimento de anatomia, cinesiologia, fisiologia, etc, enriquece as práticas de Haṭha Yoga. Atualmente, vários estudos médicos comprovam e validam, através de estudos, o que os praticantes de Haṭha Yoga já reconheciam na prática há milhares de anos. Isso é fantástico e é exatamente por isso que os médicos indicam a seus pacientes a prática de Haṭha Yoga. Muitos deles não sabem a fundo o que é Yoga e a profundidade das águas em que indicou aos seus pacientes para se banharem. O que é ótimo porque o praticante pode descobrir muito mais do que o bem-estar e a saúde, e pode abrir-se para ele uma nova visão de mundo.
3. Conceito mais amplo de saúde
O conceito de saúde divulgado na carta de princípios de 1948 da Organização Mundial da Saúde pensado, inclusive, como crítica à visão de saúde apenas como ausência de doença, diz: “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”. Este é um conceito que começou a ganhar força impulsionado pela visão de igualdade social que ascendia à época. Os conceitos de saúde começaram a se ampliar e a se associar com uma preocupação de cuidado social e de políticas públicas. Ou seja, começou-se a se pensar numa saúde coletiva ou saúde pública. Dentro desse contexto, um conceito elaborado como modelo de intervenção sobre a saúde, e sobre os quais a saúde pública deve atuar, é o de campo da saúde (health field), formulado em 1974 por Marc Lalonde. De acordo com esse conceito, o campo da saúde abrange:
1) A biologia humana, que compreende a herança genética e os processos biológicos inerentes à vida, incluindo os fatores de envelhecimento;
2) o meio ambiente, que inclui o solo, a água, o ar, a moradia, o local de trabalho;
3) o estilo de vida, do qual resultam decisões que afetam a saúde: fumar ou deixar de fumar, beber ou não, praticar ou não exercícios;
4) a organização da assistência à saúde. A assistência médica, os serviços ambulatoriais e hospitalares e os medicamentos são as primeiras coisas em que muitas pessoas pensam quando se fala em saúde. No entanto, esse é apenas um componente do campo da saúde, e não necessariamente o mais importante; às vezes, é mais benéfico para a saúde ter água potável e alimentos saudáveis do que dispor de medicamentos. É melhor evitar o fumo do que submeter–se a radiografias de pulmão todos os anos. É claro que essas coisas não são excludentes, mas a escassez de recursos na área da saúde obriga, muitas vezes, a selecionar prioridades.
Vejamos como podemos associar esse conceito, item a item, com a visão que a tradição védica nos fornece sobre o ser humano. É interessante notar como, a sua maneira, é claro, de um conhecimento elaborado há milhares de anos, todos esses pontos foram levados em conta pelas diferentes disciplinas da tradição védica.
3.1 Sobre a biologia humana
A esse ponto ressaltado por Lalonde, podemos associar toda uma elaboração que a tradição védica nos fornece através da Astrologia Védica. A Astrologia Védica é um conhecimento contido nos Vedas (Vedāṅga). É a disciplina tradicional indiana de leitura das estrelas, planetas e de contagem do tempo. Originalmente era chamada de Vedāṅga Jyoti? (estudo da luz, jyoti), que era também chamada de Jyotirveda, a “luz dos Vedas” ou “Ciência da Luz”.
Alguns estudiosos afirmaram que os babilônios inventaram o zodíaco de 360 graus por volta de 700 a.C. e que a Índia recebeu esse conhecimento dos babilônios ou até mesmo, posteriormente, dos gregos. Contudo, estudos mais profundos indicam que muito antes dos babilônios, o conhecimento de astrologia já estava presente no Ṛg Veda.
Os mantras védicos que descrevem o céu e seu complexo sistema matemático, já muito bem elaborado na época, não tinha interesse apenas astronômico. O mais fascinante desse conhecimento é revelar “a conexão do zodíaco exterior, com o zodíaco interior (a visão dos chakras)”, como diz David Frawley. No pensamento védico, o sol que rege o tempo fora de nós, em nós é o prāṇā, a força da vida. O prāṇā é o sol interior que cria o tempo biológico através do processo da respiração. Assim como é a energia que flui no nosso corpo e, especialmente ao longo da coluna vertebral, através dos sete chakras.
O nosso corpo físico, como o vemos, possuindo uma forma específica, é formado pelos cinco elementos em seu estado densificado. O nosso corpo sutil é formado pelos cinco elementos em estado sutil, e é composto pelo prāṇā, os cinco órgãos de ação, cinco órgãos de percepção, o intelecto e a mente. Cada planeta do zodíaco está associado e carrega características de um elemento específico e com isso tem uma determinada influência associada a esse elemento no nosso corpo físico e sutil.
Sabemos que o Āyurveda classifica os indivíduos de acordo com os três humores ou doṣas. E isso corresponde aos elementos predominantes no indivíduo. Vata (ar), pitta (fogo) e kapha (água). Éter está associado à vata enquanto terra à kapha. A astrologia védica possui uma classificação dos planetas pelos seus doshas.
Vata (Saturno, Rahu e Mercúrio); pitta (Sol, Marte e Ketu); Kapha (Lua, Vênus e Jupter). Assim é feita uma associação entre os signos e os doṣas: Vata (Gêmios, virgem, Libra e aquário); pitta (áries, leão e sagitário e capricórnio); kapha (touro, câncer escorpião e peixes).
Embasado nessa relação, é possível a um bom astrólogo védico, a partir do mapa da pessoa, indicar tendências à saúde e a determinados tipos de doenças e assim ajudar o indivíduo a se prevenir. A Astrologia é uma ferramenta de previsão e de aconselhamento. É no mapa da pessoa que é possível ler o seu karma. O nascimento nesta vida, de acordo com a visão védica, não é aleatório; é o resultado de nascimentos anteriores e de ações anteriores. Portanto, viemos a esta vida trazendo parte desse karma, o qual chamamos de prārabdā karma. É esse karma que dá a forma exata do nosso corpo e suas tendências para esta vida. Quando se faz um mapa de uma pessoa, reconhecendo tendências, é o prārabdā karma que se está lendo. Podemos dizer que essa leitura, a sua maneira, é uma “interpretação” da genética da pessoa. Ou seja, as tendências que ela carrega como informação em seu corpo físico e sutil.
3.2 Sobre o meio ambiente
A esse aspecto mencionado pelo teórico da saúde pública, podemos relacionar à visão védica do Vāstu Śāstra. A partir do Vāstu podemos refletir com profundidade sobre a importância do meio ambiente para a saúde do indivíduo. Quando nascemos, encontramos um meio ambiente pronto para nos receber. Esse ambiente independe de nós, mas nós dependemos dele para nossa sobrevivência. A Ciência védica que se preocupa com o meio ambiente e a sua relação com o indivíduo que nele está inserido é o Vāstu Śāstra. Os espaços nos moldam tanto quando nós moldamos o espaço. O Vāstu é o corpo de conhecimento que descreve como escolher um terreno para construção, planejar a construção de uma casa residencial, palácios, templos, vilas e cidades, a partir da visão do Vāstu Pūruṣa. Tanto o terreno quanto as construções possuem a forma da deidade chamada de Vāstu Pūruṣa.
Pensemos nos cuidados constantes que temos com a alimentação, limpeza, manutenção do fluxo de energia do nosso corpo. Para entender bem o Vāstu transferimos então esse cuidado para a nossa casa, como cuidamos do jardim, das plantas, como é importante mantê-la limpa, organizada. As casas e os terrenos sobre os quais estão construídas são vistos como seres vivos. Igualmente estamos inseridos numa cidade que nos abraça e que tem as suas características próprias, como um grande corpo. Nosso cuidado deve ser expandido para ela também. Estamos inseridos nela tanto quanto estamos inseridos no nosso corpo e na nossa casa. Assim também estamos nesse grande lar que é o nosso planeta. Como posso cuidar do meio ambiente que estou inserido com o mesmo empenho que cuido do meu corpo? Essa é a lógica que está por trás da visão de não separação do Vastu, que é herança da tradição védica.
O objetivo do Vāstu é harmonizar os espaços construídos com os efeitos positivos das leis da natureza – o vento, a chuva, o sol etc – e as energias cósmicas da terra. Assim como o Yoga trabalha com o prāṇā no nosso corpo, ajudando na nossa saúde, o Vāstu reconhece os ambientes como “seres vivos” e trabalha com o prāṇā nos espaços para que possamos viver neles com mais saúde e harmonia. Podemos dizer que o Haṭha Yoga e o Āyurveda concentram o seu cuidado no indivíduo e sua relação com o meio ambiente. O Vāstu concentra o seu cuidado no meio ambiente e sua relação com o indivíduo que nele está inserido.
Um dos preceitos do Vāstu que nos deixa claro o cuidado com a terra é o que diz que não se deve cortar árvores do terreno, tampouco desmatar a vegetação. Caso seja imprescindível cortar alguma árvore, que essa mesma quantidade seja plantada noutro local. Dentro da visão védica as plantas também são indivíduos (jīvas) e merecem o mesmo respeito e reverência que todos os outros seres vivos.
Referências do Vāstu são encontradas em detalhes nos Vedas, Puraṇas, Vedāṅgas e nos épicos. O Vāstu possui quatro divisões principais que trata: do cuidado na escolha do terreno para a construção de uma casa, templo ou cidade, tamanho, formato, a direção que as casas devem estar posicionadas; da escolha do material de esculturas de arte, pedra, madeira e outras matérias-primas e das suas proporções e tamanho; de fórmulas de como localizar poços de água, sua profundidade, pressão, gosto e qualidade; dos minerais, suas variedades, disponibilidade e como achá-los na natureza.
3.3 Sobre o estilo de vida
Quando se fala em cuidar do meio ambiente, inclui-se aí o cuidado com a nossa mente, emoções e o nosso corpo. Mente, corpo e emoções não estão separados do meio ambiente, são o meio ambiente. Essa visão de não separação, revela-nos a importância de pensar o cuidado com a natureza como a atenção ao equilíbrio entre nosso corpo, pensamentos e emoções em sua constante e inevitável relação de efeito e causa com o meio que nos circunda, objetos, animais, pessoas. Ou seja, cuidar de si para cuidar do meio, cuidar do meio para cuidar de si.
A palavra “Yoga”, tanto na Bhagavad Gītā quanto no Yoga Sūtra, é usada para definir o caminho que se trilha, o caminho do autoconhecimento, e ao mesmo tempo o objetivo final dessa busca. O estado é o reconhecimento de união com o Todo. O caminho é tudo o que se usa como apoio para esse reconhecimento. Yoga então é uma proposta de estilo de vida para manter o indivíduo em equilíbrio e o reconhecimento claro de sua natureza plena. Yoga inclui tudo o que falamos anteriormente como Haṭha Yoga, mas amplia a prática de um momento específico do dia, de cuidado com o próprio corpo e mente, para um cuidado a todo o momento, em todas as relações que estabelecemos na vida.
3.3.1 Śama e Dama
Para toda e qualquer disciplina na vida é necessário śama e dama. É necessário se conhecer muito bem para criar uma disciplina sobre si mesmo e para fazer as escolhas adequadas na vida. Escolhas que vão nos conduzir à integração e à saúde.
Śama é ter um comando sobre a mente (mano nigrahaḥ). Conhecer os caminhos da mente, os seus gostos e aversões. Para se ter um comando sobre a mente, precisamos conhecê-la. É preciso saber exatamente o que leva a nossa mente a se irritar, a reagir. O comando sobre a mente não é segurar a mente quando ela já está irritada, isso é dama. Aqui estamos falando de um comando num nível mais sutil, é ter um comando sobre a raiva antes que ela se torne raiva. Antes da manifestação da emoção. Aqui, por exemplo, pode se fazer importante ter um caderninho de anotação. E sempre que reagir, ficar com raiva, ciúmes, escrever no caderninho o motivo da irritação. No início o que é escrito é acusação aos demais, culpando-os pela nossa raiva. Depois podemos analisar o caderno e ver os nossos padrões, e procurar entendê-los. Observar que são coisas que não queremos ver, porque no momento em que elas acontecem são demais para nós. Também ajuda a entender coisas que estão ocultas, mas que nos irritam. O comando sobre a mente só vai acontecer à medida que a gente entender, assim como as crianças que entendem como funcionam os pais e jogam com isso, fazendo certa chantagem emocional. Na maior parte das vezes, por falta de conhecimento da mente, pelo desconhecimento de uma ansiedade, de uma insatisfação, por exemplo, compensamos esses sentimentos com maus hábitos que prejudicam a nossa saúde.
Dama, por sua vez, é o comendo sobre os órgãos de ação. Segurar, quando necessário, o que fala, o que faz em relação a outras pessoas. Isso já é uma grande coisa, porque evita mágoas, perda de energia. É não agir movido pela raiva, ciúmes ou qualquer outra emoção destrutiva, mas saber direcionar e expressá-las de maneira construtiva. Esse controle saudável pode ser direcionado a qualquer outra coisa no momento, e faz com que tenhamos o controle para poder, depois, nos dirigirmos à pessoa com mais clareza e calma, com objetividade, evitando mágoas e ressentimentos.
3.3.2 Yāmas e Niyamas
Śama e dama, que são capacidades que desenvolvemos, devem ter um propósito. E um grande propósito que irá guiar essas duas capacidades são os yamas e niyamas, outro par de aspectos dessa Vida de Yoga que são fundamentais para a promoção da saúde coletiva, da saúde nas relações interpessoais e ambientais. Yāma é tudo aquilo que não devemos fazer, impulsos que devemos restringir para que possamos viver em paz coletivamente e que permitem, como conseqüência, as pessoas viverem em paz conosco. São os valores humanos. Reconhecemos, especialmente hoje, que uma crise de valores tem efeito negativo sobre a organização social e igualmente sobre o meio ambiente, por isso a sua importância. Listo abaixo quatro dos cinco yāmas que se fazem importante ressaltar dentro do contexto deste artigo:
Ahiṁsā é não causar dano a outros seres, relacionado aos três âmbitos de ação do ser humano: pensamentos, palavras e ação em si.
Satya é a verdade. Uma sinceridade no sentido de falar a verdade. Quando falamos devemos dizer a verdade. Isso não quer dizer que tudo que é verdade deve ser falado. Lembremos que ahiṁsā vem antes. Então, mesmo que seja verdade, mas, se for causar dano à outra pessoa, não fale. A fala precisa ser agradável, por isso, fale de uma maneira que a outra pessoa possa lhe escutar. Se durante a fala você ferir a outra pessoa, ela vai reagir e não absorverá nada, isso torna a sua fala inútil.
Asteya é o não roubar e não cobiçar as coisas de outra pessoa. Aqui inclui roubar idéias, roubar palavras, roubar mérito, tirar tempo, tirar qualidade.
Aparigrahā é a capacidade de fazer uso das coisas sem a necessidade de ficar acumulando demais. Eu não permito que as coisas façam uso de mim, mas reconheço que na vida eu faço uso de tudo, mas nada de fato me pertence. O universo é como um hotel 5 estrelas, onde nós chegamos e aqui encontramos tudo pronto para usufruirmos, mas logo vamos embora e deixamos tudo aqui, nada é para levar. Temos o direito de usar tudo e quando formos embora, precisamos deixar tudo para trás. Essa necessidade de ficar acumulando coisas é devido à nossa insegurança.
Introjetar esses valores básicos na vida é de extrema importância para a saúde emocional e mental de qualquer indivíduo. Cedo ou tarde nos deparamos com a necessidade de compreender a importância desses valores.
Os niyamas são aquilo que devemos fazer. São dicas que o Yoga nos dá de direcionamento e de disciplina no dia a dia para que possamos viver a vida de maneira mais integrada. Abaixo seguem três niyamas importantes:
śaucha é a pureza, a limpeza externa e interna. Limpeza externa é a limpeza e organização do local onde vivemos, e inclui, também, a limpeza do próprio corpo. Tomamos banho todos os dias e fazemos as higienes básicas porque o corpo é um instrumento para que possamos viver aqui de maneira mais confortável. Ele é um templo do Ser. Pureza interna é a pureza da mente. E, impureza da mente é tudo aquilo que traz uma agitação para ela, criando, assim, medos e inseguranças. É preciso observar esses pensamentos e emoções e aprender a lidar com eles com maturidade.
Santoṣa – é o contentamento. Santoṣa é trazer para a nossa mente uma satisfação. Enxergar as razões que existem em nossas vidas para que estejamos satisfeitos e não apenas pensarmos nas limitações, naquilo que não conquistamos, nos problemas. Assim, trazemos para a mente uma satisfação, uma alegria, um estar bem conosco. Santoṣa é a capacidade de olhar para as coisas que estão acontecendo agora, e não existe dúvida, veremos uma razão para estarmos satisfeitos. A vida diária já apresenta motivos suficientes para estarmos bem e encontrarmos esse estar bem conosco. Quando acordamos e vemos o sol brilhando, o céu azul, isso já é uma razão suficiente para estarmos bem. Não adianta ficar pensando que a felicidade surgirá apenas quando conseguirmos aquela casa, ou aquele dinheiro, aquela viagem ou aquilo que tanto queremos, porque dessa forma a felicidade nunca vai acontecer. No dia em que essas coisas acontecerem, se não estivermos bem conosco, teremos razões suficientes para estar mal. Achar que a felicidade aparecerá quando nos livrarmos de todos os problemas não é possível, porque quando solucionamos um problema outro aparece, e a vida também é o solucionar desses problemas. Santoṣa é olhar para as pequenas coisas que acontecem a toda hora, em vez de ficarmos procurando coisas grandes do futuro para nos satisfazer. Para que isso aconteça precisamos querer. É um valor que adquirimos. Precisamos manter a atenção nessas pequenas coisas para que a satisfação exista.
3.4 A organização da assistência à saúde
A esse aspecto de cuidado com a saúde, podemos associar ao Āyurveda. Āyurveda significa “a ciência da vida”. É o sistema védico de cura natural do corpo e da mente. Āyurveda é o sistema de medicina tradicional indiana. É uma ferramenta valiosíssima de cura física e psicológica do indivíduo que ajuda a promover a melhora da saúde e o aumento da vitalidade. Muitas vezes apenas pela modificação na dieta e em questões básicas no estilo de vida de uma pessoa, mudanças profundas em sua vida são alcançadas. O Āyurveda está embasado na complexa visão de mundo da tradição védica, a qual já vimos discutindo ao longo deste artigo. Parte do princípio da observação da natureza e suas propriedades, fazendo uso dela para o bem-estar do indivíduo. É um sistema que busca o equilíbrio da pessoa a partir das forças da natureza. Para tanto, faz orientações quanto à utilização de ervas, à prática de limpezas internas que podem tanto curar, mas, sobretudo, manter a saúde da pessoa. Porém o objetivo do Āyurveda não é apenas a cura ou a prevenção de uma doença, mas também o rejuvenescimento e a longevidade.
Para a manutenção da saúde e prevenção de doenças, o Āyurveda sugere não apenas uma rotina diária de alimentação e hábitos saudáveis, de acordo com a constituição de cada pessoa – vāta (ar), pitta (fogo) e kapha (água) – mas também fornece dicas de alimentação e ações ao longo do ano, em consonância com as estações e as mudanças que causam no nosso organismo. De acordo com Robert Svoboda, independente da sua constituição, três pilares são fundamentais a serem observados no nosso estilo de vida para a manutenção de um corpo saudável: sexo, sono e alimentação. Cada um deles representa, respectivamente, criatividade (energia de criação), descanso (especialmente da mente de sua projeção externa) e digestão (nutrição do corpo).
Para a cura de doenças já manifestas, o mesmo autor, em seu livro “Prakriti”, comenta que o Yogi Chaitanyananda curou diversas pessoas, inclusive de estágios iniciais de câncer, que o procuravam de todos os cantos da Índia. O seu tratamento, com o uso de ervas e purgações, seguia os preceitos do Āyurveda para a cura:
1) Remover a causa
2) Purificar, para eliminar o excesso dos doṣas
3) Equilibrar os doṣas e recobrar o fogo digestivo
4) Rejuvenescer, para reconstruir o organismo
Como diz Frawley em seu artigo “Astrologia Ayurvédica”, publicado na edição 28 dos Cadernos de Yoga:
“O Āyurveda é denominado “a mãe de todas as curas”, porque engloba todas as formas de cura incluindo dieta, ervas, trabalhos corporais, cirurgias, psicologia e Yoga. Aceita tudo, de cunho interno ou externo, que promova saúde, bem-estar e felicidade. Essa ciência explora as qualidades e efeitos, não somente dos alimentos, remédios e comportamentos, mas, também, das estações, do clima e dos astros (astrologia).”
4. Saúde não apenas como ausência de doença, mas como aceitação de si mesmo e entrega à inteligência do Universo
Nesse tópico tentaremos quebrar a dicotomia entre saúde e doença. Pensando para além dos conceitos acima expostos e trazendo ensinamentos mais profundos que Vedānta apresenta. A saúde, sugiro pensarmos, é um estado interno, um estado de integração e de reconhecimento da plenitude da vida. É um estar bem consigo mesmo e com o mundo ao seu redor. E se pensamos a saúde dessa maneira, o indivíduo pode estar com alguma enfermidade, mas estar “saudável”.
Oliver Sacks, neurologista norte-americano, em seu livro “Um Antropólogo em Marte” diz:
“Para mim, como médico, a riqueza da natureza deve ser estudada no fenômeno da saúde e das doenças, nas infinitas formas de adaptação individual com que os organismos humanos, as pessoas, se reconstroem diante dos desafios e vicissitudes da vida. Nessa perspectiva, as deficiências, distúrbios, podem ter um papel paradoxal, revelando poderes latentes, desenvolvimentos, evoluções, formas de vida que talvez nunca fossem vistas, ou mesmo imaginadas na ausência desses males. Nesse sentido, é o paradoxo da doença, seu potencial “criativo”, que forma o tema central deste livro”. (p.13)
A tradição védica, o Yoga como parte dela, e todas as suas ciências afins, a partir de um olhar mais profundo e de uma visão integral do ser humano, busca essa “saúde”. E essa visão quebra a dualidade entre saúde e doença e nos ajuda a lidar com casos de enfermidades crônicas, na qual a saúde para aquela pessoa é aprender a lidar com o seu estado de maneira integrada. Consiste na aceitação do seu estado e na descoberta de um novo sentido para a vida.
Nos casos de doenças terminais, o processo de doença inclui também o questionamento de quem somos nós, de onde viemos e para onde vamos. Todos nós nos fazemos essas perguntas em algum momento da vida, seja na saúde ou na doença, mas normalmente quando a vida se vê ameaçada por alguma enfermidade esses questionamentos se tornam mais latentes. Reconhecemos a inevitabilidade da morte, mas é quando nos vemos próximos a ela que de fato questionamos o sentido da vida. O fato de existir a morte faz-nos buscar o sentido da vida.
Dentro da tradição védica, o corpo é chamado de ?arīra, porque é aquilo que está em constante decadência (cai para uma outra coisa), ele não é absoluto. O corpo, de acordo com essa visão, passa por 06 transformações básicas: Existe; nasce; cresce; transforma; declina; e morre. O fato de estarmos neste corpo nos dá a certeza, através da observação empírica, de que ele está sujeito à morte e encontra-se num processo natural de transformação. Quando dizemos que uma pessoa está com uma doença terminal, noutras palavras o que estamos dizendo é que esse processo natural de morte foi acelerado. Porém, mesmo que não tenhamos uma doença terminal, estamos todos caminhando, mais lentamente, para a mesma direção. A conclusão é que, cedo ou tarde, todos nos depararemos com o fato inevitável da morte.
O corpo declina por uma razão simples, a natureza é inteligente. O objetivo do envelhecimento e da fugacidade do corpo é a compreensão do desapego e da renúncia. E, por paradoxal que pareça, é o desapego que nos permite viver a vida mais plenamente. A eminência da morte nos impulsiona à compreensão do milagre da vida, ao entendimento da inteligência do Universo.
Para essa compreensão, os Vedas propõem uma vida que seja direcionada a dharma e Mokṣa. Direcionada à busca dos valores e à busca pela compreensão da minha integração com o Todo. Īśvarapraṇidhāna é consequência dessa compreensão. É a entrega à ordem do universo, à apreciação e reverência à Īśvara, o Todo. É reconhecer Īśvara na nossa vida, apreciar Īśvara, que é todo o universo. É o reconhecimento das leis que regem esse universo, apreciando todos os seres, assim como o nosso próprio corpo porque ele também é o Todo. Quando apreciamos a presença de Īśvara, que é todo o universo, a nossa reverência não é a uma pessoa ou a algum Deus que esteja em algum lugar, mas é a reverência à natureza, às leis do próprio universo. Tudo o que apreciamos na forma de universo é uma reverência à Īśvara. Esse conhecimento revela que “nada mais é gratuito, tudo é ritual”, como disse o poeta Affonso Romano de Sant ́anna. Quando olhamos para os seres vivos separadamente, percebemos que todos estão num movimento contínuo movidos pela manutenção da vida. Das moléculas do nosso corpo ao nosso organismo como um todo, da semente que fecunda à planta que cresce em direção ao sol. Quando, contudo, ampliamos o olhar sobre todos os seres vivos vendo-os como parte integrante de um mesmo e único organismo, o que percebemos é uma dança exuberante cujo sentido não é a sobrevivência, pois a vida não se vê ameaçada. O sentido é o encantamento.
É essa reverência que nos dá a capacidade de reconhecer que não temos controle sobre o mundo e sobre as pessoas, ajuda-nos sim a melhor conhecer a natureza do mundo e das pessoas e melhor nos relacionarmos com elas. Ao longo do processo de assimilação desse conhecimento, relaxamos, pois abrimos mão da atitude de querermos controlar o mundo e as pessoas pela nossa necessidade de ser feliz. Nós abrimos mão dessa atitude de controle a partir da compreensão de que existe uma Ordem que governa o Universo, que independe da nossa vontade. Essa compreensão traz um estado de paz e de aceitação de nós mesmos e das situações ao nosso redor. Atenção, questionamento, discriminação, desapego são fundamentais nesse processo. Desapego não apenas em relação a objetos externos, mas até em relação à imagem que temos de nós mesmos com a qual estabelecemos uma identidade desde muito cedo na vida.
O próprio processo de doença não foge as leis do Universo e pode ser um condutor a esse reconhecimento adormecido em nós. Pode ser um motivador ao rompimento da dualidade bom e mau e um veículo de reconhecimento do valor da vida. Nietzsche, como uma pessoa que ficou boa parte de sua vida acamado, fala sobre o assunto com clareza. Vejamos o que ele falou sobre a relação saúde e doença a partir da citação do artigo “Quando o corpo fala”, de Bárbara Lucchesi Ramacciotti.
“Um psicólogo conhece poucas questões tão atraentes quanto a da relação entre saúde e filosofia, e, para o caso em que ele próprio fica doente, ele traz toda a sua curiosidade científica consigo para sua doença.” Há uma relação intrínseca entre saúde, doença e filosofia, relação esta que deve ser entendida no sentido de a filosofia ser uma arte da transfiguração, tal como explicado no parágrafo 3: “Um filósofo que passou por muitas saúdes, e que sempre passa de novo por elas, também atravessou outras tantas filosofias: nem pode ele fazer de outro modo, senão transpor cada vez seu estado para a forma e distância mais espirituais – essa arte de transfiguração é justamente filosofia”. O que é transfigurado, o que é transformado com a filosofia? A doença é transfigurada em saúde, ou melhor, a doença opera como motivador para a produção de uma filosofia que busca a saúde. Saúde, dentro desse projeto filosófico, significa afirmação da vida, aceitação e transmutação dos limites. Assim Nietzsche declara que o tempo em que sofreu grave enfermidade foi um período de muitos ganhos do ponto de vista de sua produção filosófica, manifestando gratidão pelo fato de sua saúde ser tão mutável.” (p.77)
Há uma metáfora na Kaṭha Upaniṣad que diz:
“Imagine o Ser como o senhor de uma carruagem realizando uma jornada. O corpo é a própria carruagem. O discernimento é o cocheiro. A mente, as rédeas.”
Nessa bela metáfora, a carruagem representa o corpo humano, o cocheiro da carruagem é o intelecto (buddhi), as rédeas são a nossa mente e os cavalos são os sentidos, as curvas da estrada são as curvas da própria vida e o senhor da carruagem é a Consciência, que nada faz. O objetivo da vida é descobrir essa Consciência. Devemos cuidar do nosso corpo e conduzir a nossa mente, direcionada pelo intelecto, nesse sentido.
A metáfora nos mostra como é importante o cuidado com o corpo e com a mente para melhor conduzirmos a nossa vida – e para isso são válidos os meios que forem mais adequados e eficazes a cada pessoa. Mas a proposta aqui é que a carruagem seja um instrumento para se chegar em algum lugar. Esse instrumento deve ser conduzido ao autoconhecimento, pois cedo ou tarde na vida esse questionamento baterá a nossa porta. E o autoconhecimento é o reconhecimento da plenitude e do eterno em nós, independente do estado de saúde ou de doença, de qualquer limitação momentânea, do corpo ou da mente.
O objetivo da vida é viver. Viver plenamente a partir do reconhecimento de que a inteligência e a consciência da mente são um reflexo da inteligência e da consciência que está presente em tudo o que vemos. Cada átomo, molécula, organismo possui consciência e uma inteligência auto-organizadora. Há uma organização que sustenta a vida, a interação e interligação físico-energética do Universo. O corpo humano é uma organização perfeita, complexa a tal ponto a permitir a manifestação da inteligência e da consciência na mente. É isso que me faz ter a certeza e dizer: “eu existo”, “eu sou”. Esse é o grande “milagre” da vida, você estar aqui, agora, vivo presente, consciente de si mesmo e do mundo ao seu redor. Não há “milagre” maior em algum outro lugar futuro pelo qual valha abrir mão de viver esta vida plenamente, estar aqui agora é o grande “milagre”.
Estar consciente faz com que percebamos o corpo através dos seus próprios meios de percepção e com ele nos identifiquemos. Eu sou o corpo, vou até os limites da minha pele. Não apenas me identifico com o corpo, suas características visuais, mas com um nome que é dado a esse corpo, emoções que nele se manifestam, pensamentos que nele circulam. Tudo isso não passa de um constante fluxo. Fixar esse fluxo é o mesmo que olhar para o fluir de um rio e acreditar que o rio está parado, que a água que você vê correr naquela parte do rio hoje é a mesma de ontem. Além disso, é achar que essa pequena parte do rio é todo o rio. Esse fixar impede com que percebamos tanto o fluxo quanto a totalidade. Não podemos dizer que a percepção “eu sou o corpo” é verdadeira. O corpo não é uma unidade indissolúvel, fixa, absoluta que pensamos ser. O que identifico como o meu corpo é composto por um fluxo momentâneo de informações, a partir do qual não podemos dizer onde ele começa e termina. De fato não existe separação entre o meu corpo e o mundo ao meu redor. A separação está apenas na minha percepção. O universo inteiro desde a menor partícula até o mais complexo conglomerado é uma única e mesma coisa, um fluxo constante de informação e consciência. Eu sou de fato essa consciência cósmica que momentaneamente está manifesta nesse corpo-mente na forma de um brilho consciente, dando existência a tudo ao meu redor e a essa “noção do eu” que chamamos de individualidade.
Encerro com o seguinte poema:
Aceitação plena da vida
Que o vazio revele o seu pleno!
Os anseios permitam-no achar o sereno!
Que a tristeza mobilize-o à aceitação da felicidade!
A perda momentânea de sentido, para a sua reconstrução seja uma oportunidade!
Que o superficial incite o intenso!
A pequenez una-se ao imenso!
Que o medo impulsione-o a descobrir seu poder!
A certeza da morte desperte o seu valor por viver!
Que as expectativas do futuro mantenham-no no presente atento!
A ausência desperte seu contentamento!
Que a aceitação plena da vida, em todas as suas forças, conduza-o ao reconhecimento da força da vida em você!
Os opostos levem-no à unidade do ser!
(Tales Nunes)
Referências
Livros
Swamini Pramananda Saraswati e Sri Dhira Chaitanya. Pūrna Vidyā – Vedic Heritage Teaching Programme. Purna Vidya Trust, 2001.
SAKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SVOBODA, Robert E. Prakrti, your Ayurvedic Constitution. Motilal Barnasidas, 2008.
FRAWLEY, David. Astrology of the Seers. Motilal Barnasidas, 2010.
Artigos
SCLIAR, Moacyr. História do Conceito de Saúde. In PHYSIS: Rio de Janeiro: Revista Saúde Coletiva, 2007.
RAMACCIOTTI, Bárbara Lucchesi. Quando o Corpo Fala. in: Revista MenteCérebro e Filosofia: Nietzsche, vol 03. São Paulo: Duetto Editorial, 2011.
Texto originalmente publicado na edição 32 dos Cadernos de Yoga: www.cadernosdeyoga.com.br.
Site do Tales com artigos e reflexões: www.vidadeyoga.com.br.
Obrigado por esse excelente texto!
Conseguiu transpassar de forma clara, a não dualidade do complexo corpo-mente que habita em cada Ser, e a unidade que existe entre todos os seres!
E mais importante ainda, nos ajuda a refletir que tudo está integrado, nós somos a natureza, e cuidando do tudo, estamos cuidando de nós. Muito boa também as explicações a respeito dos yamas e nyamas, e a maneira de nos aperfeiçoarmos nas nossas relações interpessoais.
Gratidão.
Om shanti!
Antes que alguém me corrija, adianto que tive de finalizar meu comentário às pressas, porque tinha uma pessoa insistindo em conversar comigo, enquanto eu escrevia. Só agora pude reler o que escrevi e notei a gafe cometida ao escrever que nossa passagem é passageira. Retifico dizendo que nossa vida é passageira. Perdão a todos e obrigado.
Paulo
Oi Tales.
Apesar de extenso, seu texto aborda um assunto de extremo interesse, e em vista disso, não se torna cansativo. E por não ser polêmico, nem agressivo, acredito que não provocará discussões homéricas.
Ainda bem que seja assim, porque acho triste assistir discussões egocêntricas entre críticos e autores de textos. A
título de esclarecimento, você escreve que “Dentro da tradição védica, o corpo é chamado sharira, porque é aquilo que está em constante decadência …”
Há algum tempo, meu professor de yoga havia dito que “corpo” em sânscrito denomina-se “deha”, ou seja, aquilo que apodrece.
Em todo o caso, o sentido de ambos os termos levam ao mesmo entendimento de que nossa passagem por aqui é passageira e que devemos, portanto, cultivar o desapego.
Parabéns e um grande abraço.
Paulo.