Pensar no Yoga significa pensar no sentido possível de nossa existência. Significa fazer a perigosa e instável relação entre o ser e o não-ser, o um e o zero, a afirmação e a negação. Considerar seriamente o projeto do Yoga exige uma disposição de kshatriya, guerreira, exige estar disposto a questionar o mundo, mesmo que para isso o ego precise ser abstraído, relativizado ou até mesmo negado; que deixemos de ver as coisas sob o prisma da subjetividade extrema e procuremos novas formas de percepção, novos meios de acesso à realidade.
Dentro deste pensamento podemos conduzir o pensamento sobre o Vegetarianismo dentro do Yoga da seguinte forma: vivemos hoje em dia um momento em que a humanidade não reconhece mais sua irmandade com os demais seres que compartilham com ela a existência na Terra. A conexão do homem com os animais e com todos os ciclos da natureza foi, em sua essência, rompida.
Falamos aqui em termos gerais, de uma constatação do estado majoritário das coisas. Existem exceções, existem conexões e existem também culturas que coexistem com a ação predatória do homem moderno, que se opõe a ela e que denunciam suas ações inconseqüentes. Mas como regra geral encontramos o oposto. Vale a pena, portanto, justificar este projeto mostrando o quanto uma disciplina filosófica é necessária para uma transformação efetiva de nossa visão do mundo. Como diz Epictetus:
‘Não se trata de estudar a filosofia, mas sim de viver a filosofia.’ Também na Hatha-Yoga Pradipika afirma-se que é somente a aplicação prática da teoria que conduz à iluminação. Num momento em que o descrédito e a ausência de valor ao estudo e à sabedoria se fazem preeminentes, pensamos ser mais do que necessário discutirmos um tópico como este. Pois, o que poderia ser mais concreto e estar diretamente ligado a uma práxis do que o simples ato de comer, que levamos a cabo de duas a três vezes por dia, todos os dias de nossas vidas, que consiste numa das principais formas de socialização do homem e que é um dos maiores prazeres da vida?
Uma ação política não pode deixar de lado uma ação consciente no âmbito da alimentação. Uma enorme porcentagem de nossas vidas gira em torno deste abrir e fechar das mandíbulas; Aqueles que falam de revolução, mas jamais se questionam sobre o que estão colocando dentro de seus estômagos estão ignorando um potencial transformador, uma ação política atuante, direta, e que esta nas mãos de todos e de qualquer um.
Existe, me parece, uma necessidade de aplicarmos estes questionamentos em um mundo que se dirige cegamente à destruição dos valores espirituais da humanidade. Por isso, dizemos que ‘a vida do pensamento deve englobar o pensamento da vida’ [1]
Um brahmana, um sábio, é todo aquele que busca a auto-superação, que compreende o papel dos condicionamentos em nossa percepção do mundo, e se esforça em direção a um processo de constante transformação, de ‘autolapidação’, de Yoga.
Como poderia tal pessoa tomar parte na matança indiscriminada de animais cuja existência foi condenada pelo nosso hedonismo inconseqüente? Poderia ele, em sã consciência, concordar com o massacre e a carnificina que são levados a cabo metodicamente à satisfação de paladares humanos corruptos? A alienação de si, a ignorância que envolve quase a totalidade de nossas vidas, não é desculpa para nos eximirmos da responsabilidade de nossas ações; pelo contrario ela é, na maior parte dos casos, a própria justificativa de nossa exposição às misérias e sofrimentos da vida.
‘Para um homem cuja mente é livre existe algo ainda mais intolerável nos sofrimentos dos animais do que nos sofrimentos dos homens. Neste ultimo é ao menos admitido que o sofrimento é um mal e que aquele que o causa é um criminoso. Mas milhares de animais são mortos inutilmente todos os dias sem a mínima sombra de remorso. E se qualquer homem fosse falar sobre isto, ele seria ridicularizado – este é em si o crime imperdoável. Esta é a justificativa para que todos os homens venham a sofrer’ – Romain Rolland.
O estabelecimento de uma ética que restaure ‘nossos irmãos menores’, que conceda um papel importante a eles no drama cósmico que juntos encenamos é uma necessidade. Nossos valores estão deturpados e cabe a nos buscarmos fundamentos sobre os quais podemos estabelecer novas perspectivas, que não sejam excludentes, que concebam o homem em sua relação com o mundo e com os seres que nele habitam. Os animais foram objetificados, tratados como bens de consumo, e despidos de toda sensibilidade, que por si só, não é inteiramente distinta de nossa. O desrespeito pelo direito à vida animal se mostra, já transformado, na crescente dessenbilização do homem moderno, que vê tudo e todos como objetos de consumo.
Na antiga cultura indiana um homem era aceito como homem pela sua conduta, por exibir sintomas em suas ações que estabelecessem e refletissem ações racionais, ponderadas e receptivas ao Belo. Andar sob duas pernas não caracteriza um ser humano. Quanto às respostas morais das tradições que afirmam o estatuto ontologicamente nulo dos animais, em outras palavras que negam, por um lado, o seu direito à vida e, por outro, afirmam o seu papel meramente subserviente ao homem, lembramos, para concluir, das palavras de Schopenhauer:
‘Porque a moralidade cristã deixa de fora os animais, estes são prontamente banidos das morais filosóficas; eles são meras ‘coisas’, apenas meios para todos os tipos de fins. Podem, portanto, serem usados para vivisecção, caçadas, corridas, touradas e podem ser açoitados à morte enquanto se esforçam carregando pesados fardos de pedras. Que a vergonha recaia em tal moralidade que é digna de parias e que não consegue reconhecer a essência eterna que existe em todos os seres vivos e que brilha adiante com perscrutável significância de todos os olhos que vêem o sol!’
Hari Om Tat Sat!
Goura é filósofo e professor de Yoga em Curitiba. Seu email é souldefiance108@yahoo.com.br
[1] Radical Vegetarianism ? Mark Mathew Braunstein.
A.vida e uma dádiva wagner xavier namaste
gostaria de saber se o senhor possui algum material( artigos, revistas…)
sobre o direito dos animais na literatura védica; sobretudo em relação ao gita e ao bhagavatam.
estou lendo para escrever minha monografia no curso de direito e o tema é sobre o direito dos animais e gostaria de relacioná-lo à literatura védica.
se o senhor possuir e puder enviar eu ficaria grato.
Olá, Goura, adorei esse teu artigo, pois leva a uma consciência ampla da missão de cada “ser”.
Sou de Arapongas, do norte do Paraná, lembra-se?
Namastê,
Paulo.