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Brihadaranyaka Upanishad (fragmento)

Apresentamos ao amigo leitor um pequeno extrato da Brihadaranyaka Upanishad, uma das mais antigas obras filosóficas da Humanidade, que faz parte do texto Shatapatha Brahmana

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Conduza-me da confusão para a Realidade.

Conduza-me das Trevas para a Luz.
Conduza-me da
Morte para a Imortalidade!

Apresentamos ao amigo leitor um pequeno extrato da Brihadaranyaka Upanishad, uma das mais antigas obras filosóficas da Humanidade, que faz parte do texto Shatapatha Brahmana (शतपथ ब्राह्मण), o ‘Brahmana dos Cem Caminhos’, que narra, entre outras coisas, o Dilúvio. O Shatapatha Brahmana faz parte do Shukla Yajur Veda, o Yajur Veda Branco. O título deste texto, que pode soar bastante complicado, poderia ser traduzido mais ou menos livremente como ‘A Grande Floresta do Conhecimento’.

Esta Upanishad nos narra um duelo entre o yogi Yajñavalkya e uma assembléia de sábios, convocada pelo rei Janaka, de Videha. Este rei, pai da princesa Sita, heroína do épico Ramayana, é tido na Índia antiga como o paradigma da magnanimidade. Diferentemente do ‘pão e circo’ dos antigos romanos, os duelos dentro do hinduísmo eram intelectuais e estimulavam a liberdade, o auto-conhecimento e a reflexão, ao invés de funcionar como escapismo barato.

Afora o diálogo entre o sábio Yajñavalkya e os brâhmanes, contém outro diálogo muito interessante dele com sua esposa, Maitreyi, quando ele está prestes a partir para a floresta, a fim de se dedicar ao auto-conhecimento (brahmavidya).

“Janaka, rei de Videha, estava preparando um grande ritual do fogo. Eram abundantes as oferendas que seriam dadas aos sacerdotes. Todos os brâhmanes de Kurupañchala tinham se reunido nessa assembléia.

O rei, sentindo uma grande curiosidade por descobrir qual desses sábios era o mais versado em seu conhecimento dos textos sagrados, reuniu mil vacas e decorou seus chifres com dez pés de ouro.

Depois, o rei dirigiu-se aos sábios dizendo assim:

– “Veneráveis brâhmanes, aquele que dentre vocês seja o maior conhecedor de Brahman, poderá levar estas vacas!”

Nenhum dos brâhmanes se atreveu a mexer. Então, Yajñavalkya disse ao seu discípulo:

– “Meu querido Samasravas, leve embora este gado!” E ele assim o fez.

Os outros brâhmanes sentiram-se muito envergonhados, e questionavam-se entre si: “Como é que ele, dentre todos nós, atreve-se afirmar que possui o melhor conhecimento de Brahman?”

Naquele momento, Ashvala, que era o sacerdote oficiante de Janaka, disse a Yajñavalkya:

– “Como pode ser que, de todos nós, você tenha o mais perfeito conhecimento de Brahman? Permita-nos pois, prestar reverências àquele que melhor conhece Brahman. Não entanto, nós também gostariamos de ficar com essas vacas”.

E Asvala interrogou-o longamente […]

Depois muitos dos brâhmanes fizeram as suas perguntas: – “Yajñavalkya”, disse Jaratkarava Arthabhaga, “como todas as coisas são o alimento da morte, em qual dos fenômenos naturais é a morte o alimento?”

“O fogo é a morte e o alimento da água. Aquele que sabe isto vence a morte repetidas vezes”.

– “Yajñavalkya, quando o homem morre, seus alentos vitais, permanecem ou não no corpo?”

– “Não, disse Yajñavalkya. “Eles são reunidos aqui, neste corpo, e eles o preenchem e enrijecem. Uma vez assim preenchido, o corpo mantém-se morto”.

– “Yajñavalkya, quando um homem morre, o que não o abandona?”

– “O nome, porque o nome é ilimitado, e ilimitados são Todos-os-deuses, e é ilimitado o estado que ele alcança por este caminho”.

– “Yajñavalkya, quando um homem morre, e sua voz entra no fogo, seu alento vital no vento, sua visão no sol, seu buddhi na lua, sua audição nos pontos cardeais, seu corpo na terra, seu ego no espaço, seus pêlos nas plantas, seus cabelos nas árvores, e seu sangue e sêmen descansam nas águas, onde, pois, se encontra aquele homem?”

– “Arthabhaga, meu amigo, tome minha mão”, disse Yajñavalkya. “Iremos só nós dois conversar sobre isto, porque não é assunto para se falar em público”.

Eles conversaram sobre o karma. Eles enalteceram o karma. Através de boas obras um homem se torna bom. Através das equivocadas, ele se torna mau. Então, Jaratkarava Arthabhaga permeneceu em paz.

Depois foi a vez da Ushasta Chakrayana interrogar o sábio.

– “Yajñavalkya, explique-me àquele Brahman que é evidente e claro, o Ser que permeia todas as coisas”.

– “o Ser que permeia todas as coisas é o que você é”.

– “Mas quem é esse que permeia todas as coisas, Yajñavalkya?”

– “Aquele que inspira com a inspiração é o Ser que está em ti e permeia todas as coisas; aquele que respira juntamente com a sua “respiração difusa” é o Ser que está em você e permeia todas as coisas. O que respira juntamente com a sua “respiração superior” é o Ser que está com você e permeia todas as coisas: Ele é o ser que está em você e permeia todas as coisas”.

Ushasta Chakrayana disse:

– “O seu modo de ensinar é exatamente igual ao do homem que diz: ‘Aquela é uma vaca, e este é um cavalo’. Explique-me sobre aquele Brahman que é realmente evidente e claro, o Ser que permeia todas as coisas”.

– “o Ser que permeia todas as coisas é o que você é”.

– “Mas, Yajñavalkya, qual é o ser que permeia todas as coisas?

– “Como você poderia ver àquele que vê a visão? Como você poderia ouvir o ouvinte da audição? Como poderia pensar no pensador do pensamento? Como poderia entender o entendedor do entendimento? Este Ser que permeia todas as coisas está em você. Aqueles que não forem conscientes do Ser, vivem sofrendo”.

Então, Ushasta Chakrayana calou-se.

Sobre o desapego.

Ergueu-se então Kahola Kaushitakeya e disse:

– “Yajñavalkya, explica-me sobre o Brahman que é evidente e claro, o Ser que permeia todas as coisas”.

– “o Ser que permeia todas as coisas é o que você é”.

– “Mas Yajñavalkya, qual é o Ser que permeia todas as coisas?”

– “Aquele que transcende a fome e a sede, o sofrimento, a ignorância e a morte. Quando os sábios chegam ao conhecimento deste Ser, erguem-se acima dos seus desejos de terem filhos, dos seus desejos de possuir riquezas, dos seus sonhos de grandeza, e vagueiam, levando uma vida de mendicantes. Não existe nenhuma diferença entre o desejo de ter filhos, e o de ter riquezas, assim como não existe nenhuma diferença entre o desejo de possuir riquezas e os sonhos de grandeza: todos eles não passam de desejos.

Que o sábio se afaste dos estudos com desapego e viva como uma criança. Que ele se afaste com desapego, tanto dos estudos e do viver como uma criança, e que se torne um sábio silencioso. Que ele se afaste com desapego; do silêncio e do seu oposto, e que se torne um verdadeiro sábio”.

– “E o que o faz, realmente, um sábio?”

– “Tudo quanto, realmente, o conduz para isso. Aqueles que não forem conscientes do Ser, sofrem [sem cessar]”.

Então Kahola Kaushitakeya calou-se.

A seguir, Uddalaka Aruni disse:

– “Yajñavalkya, nós vivíamos no povo dos Madras, em casa de Patañjala Kapya, enquanto estudávamos o ritual do fogo sagrado. Sua esposa era possuída por um espírito, e nós perguntamos-lhe quem ele era. Ele respondeu-nos ser Kabandha Atharvana e, dirigindo-se a Patañjala Kapya e seus estudantes, disse: “Kapya, você conhece o fio que une e mantêm unidos este mundo, o outro mundo, e todos os seres?”.

“Patañjala Kapya respondeu:

“Não senhor, não conheço”.

“Dirigindo-se novamente a Patañjala Kapya e aos estudantes do ritual do fogo, ele disse:

“Kapya, você conhece a Harmonia Intrínseca que rege a ordem neste mundo e no outro, e em todos os seres, internamente?” “Patañjala Kapya respondeu:

“Não senhor, não o conheço”.

Falando outra vez a Patañjala e seus estudantes, [o espírito] disse:

“Kapya, aquele que conhece o fio e a Harmonia Intrínseca, conhecerá também Brahman, todos os mundos, os deuses, os Vedas, todos os seres, o Ser, – Tudo!”

Foi assim que ele falou. “Agora, eu conheço tudo isso. Se você; Yajñavalkya, tiver conduzido o gado sem ter conhecimento do fio e da Harmonia Intrínseca, sua cabeça será decepada”.

– “Com toda certeza, conheço o fio e a Harmonia Intrínseca”.

– “Qualquer um pode dizer, “eu sei, eu sei”, respondeu ele. Exponha seu conhecimento”.

Prana e Consciência.

– “O prana, Gautama, é o fio”, disse Yajñavalkya. “Através desse fio que é o prana, este mundo, o outro mundo e todos os seres, permanecem unidos. É por isso que se diz, ó Gautama, que os membros de um cadáver se desagregam,já que foram arranjados e receberam coesão pelo prana, Gautama!”.

– “Muito correto, Yajñavalkya: fale-nos agora sobre a Harmonia Intrínseca”.

O Ser e a Natureza.

– “Aquele que estando nesta terra é diferente da terra, e a quem a terra não conhece, cujo corpo é a terra, que harmoniza a terra interiormente – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na água é diferente da água, a quem a água não conhece, cujo corpo é a água, que harmoniza a água interiormente, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando no fogo é diferente do fogo, a quem o fogo não conhece, cujo corpo é o fogo, que harmoniza o fogo interiormente, aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na atmosfera é diferente da atmosfera, a quem a atmosfera não conhece, cujo corpo é a atmosfera, que harmoniza a atmosfera interiormente, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando no vento é diferente do vento, a quem o vento não conhece, cujo corpo é o vento, que harmoniza o vento interiormente, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando no céu é diferente do céu, a quem o céu não conhece, cujo corpo é o céu, que harmoniza o céu interiormente, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando no sol é diferente do sol, a quem o sol não conhece, cujo corpo é o sol, que harmoniza o sol interiormente – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando nas direções da terra é diferente das direções da terra, a quem os pontos cardeais não conhecem, cujo corpo é feito de pontos cardeais, que harmoniza intimamente os pontos cardeais, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na lua e estrelas é diferente da lua e das estrelas, a quem a lua e as estrelas não conhecem, cujo corpo é feito da lua e das estrelas, que harmoniza a lua e as estrelas interiormente – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando não espaço é diferente do espaço, e quem o espaço não conhece, cujo corpo é feito do espaço, que harmoniza interiormente o espaço – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na escuridão é diferente da escuridão, a quem a escuridão não conhece, cujo corpo é a escuridão, que harmoniza interiormente a escuridão – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na luz é diferente da luz, a quem a luz não conhece, cujo corpo é a luz, que harmoniza interiormente a luz – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

Sobre todos os seres.

“Falei em relação às forças da natureza; agora, irei versar sobre todos os seres:

“Aquele que estando em todos os seres é diferente de todos os seres, a quem por sua vez os seres não conhecem, cujo corpo é o corpo de todos os seres, que harmoniza interiormente todos os seres, aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

Sobre o corpomente.

“Isto foi em relação aos seres. Agora, em relação ao próprio corpomente!

“Aquele que estando no alento vital é diferente do alento vital, a quem o alento vital não conhece, cujo corpo é o alento vital, que harmoniza interiormente o alento vital, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na fala é diferente da fala, a quem a fala não conhece, cujo corpo é a fala, que harmoniza interiormente a voz – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na visão é diferente da visão, a quem a visão não conhece, cujo corpo é a visão, que harmoniza a visão interiormente – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na audição é diferente da audição, a quem a audição não conhece, cujo corpo é a audição, que harmoniza a audição interiormente – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na inteligência é diferente da inteligência, a quem a inteligência não conhece, cujo corpo é o intelecto, que harmoniza interiormente a inteligência, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na pele é diferente da pele, a quem a pele não conhece, cujo corpo é a pele, que harmoniza interiormente a pele, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Aquele que estando na compreensão é diferente da compreensão, a quem a compreensão não conhece, cujo corpo é a compreensão, que harmoniza a compreensão interiormente, – aquele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal”.

“Ele é o observador não observado, aquele que ouve sem ser ouvido, aquele que pensa sem ser pensado, aquele que compreende sem ser compreendido. Nenhum outro observador chega onde ele está, nem outro ouvinte, nem outro pensador, nem outro entendedor consegue ser melhor que ele: Ele é o Ser que você é, a Harmonia Intrínseca, o Imortal. Todos aqueles que vêm a si mesmos como sendo diferentes dele, sofrem.

Uddalaka Aruni calou-se.

Então Gargi Vachaknavi disse:

“Veneráveis brâhmanes, ouçam. Farei duas perguntas a Yajñavalkya. Se ele as responder, nenhum de nós será capaz de derrotá-lo na discussão sobre a natureza de Brahman”.

– “Faça suas perguntas, ó Gargi”, disse Yajñavalkya.

Ela disse:

– “Yajñavalkya, tal como um jovem herói da família dos Kashyas ou Videhas que, tendo peparado o seu arco, segura duas flechas mortíferas em sua mão e avança contra seus inimigos, assim avanço eu em direção a você com minhas duas perguntas”.

O Ser e a Criação.

– “Faça as perguntas, Gargi”, repetiu ele.

E ela disse:

– “Yajñavalkya, aquilo que está por cima do céu e por baixo da terra, aquilo que está entre o céu e a terra, – aquilo sobre quem os homens falam como sendo passado, presente e futuro: em que é aquilo tecido, tramado e urdido?”

Ele respondeu:

– “Gargi, aquilo que está por cima do céu e por baixo da terra, aquilo que está entre o céu e a terra, – aquilo sobre o qual os homens falam como sendo passado, presente e futuro: aquilo é tecido, tramado e urdido no espaço”

Ela disse:

– “Todas as honras lhe são devidas, ó Yajñavalkya, por ter decifrado essa pergunta. Prepare-se para a outra”.

“Pergunte-me, ó Gargi” – disse Yajñavalkya.

Ela disse:

“Yajñavalkya, o que é aquilo que está por cima do céu e por baixo da terra, aquilo que está entre o céu e a terra, – aquilo de que os homens definem como sendo passado, presente e futuro, em que isso é tecido, fiado e urdido?”

Ele disse:

“Gargi, aquilo que está por cima do céu, por baixo da terra, entre o firmamento e a terra, – aquilo do qual os homens falam como sendo passado, presente e futuro: Aquilo é tecido, fiado e urdido no espaço”.

– ” Em que é, então, tecido o espaço?”

– Ele disse:

“Gargi, aquilo é o que os sábios chamam o Imperecível!

“Aquilo não é denso nem sutil; grande nem pequeno; não é incandescente como o fogo nem fluido como a água. Aquilo não faz sombra, nem é escuridão. Aquilo não é vento nem espaço. Aquilo não está ligado a nada. Aquilo não é o paladar nem o olfato; Aquilo não é a visão nem a audição; Aquilo não é a palavra nem buddhi; Aquilo não a luz nem vida; Aquilo não tem face nem medida; Aquilo não tem dentro nem fora. Aquilo a nada devora e por nada pode ser devorado.

A Harmonia nas Leis da Criação.

“É graças a esse Imperecível, Gargi, que o sol e a lua mantêm-se afastados, e assim continuam. É graças a esse Imperecível, Gargi, que o céu e a terra mantêm-se afastados, e assim continuam. É graças a esse Imperecível, Gargi, que segundos e minutos, dias e noites, quinzenas, meses, estações e anos se sucedem, e assim continuam.

É graças a esse Imperecível que alguns rios, ó Gargi, correm das montanhas imponentes para o Leste, e outros para o Oeste, cada qual seguindo seu curso pré-estabelecido. É graças a esse Imperecível, ó Gargi, que as gentes elogiam os magnânimos. É graças a esse Imperecível que os deuses dependem do pujari e os ancestrais dependem dos rituais oferecidos por seus descendentes.

“Todas as oblações que um homem possa oferecer neste mundo, ó Gargi, todos os rituais purificatórios que ele possa praticar, todas as asceses que ele possa impor a si mesmo, ainda que tudo isso se mantenha por milhares de anos, tudo terá um fim, a não ser que ele conheça esse Imperecível!

“Gargi, lamentemo-nos por todos aqueles que abandonam este mundo sem atingir o conhecimento do Imperecível! Porém, Gargi, aquele que parte deste mundo conhecendo o Imperecível, é em verdade um sábio, pois ele é conhecedor de Brahman.

“Gargi, esse mesmo Imperecível é observador não observado, o ouvinte que não é ouvido, o pensador que não é pensado, o compreendedor que não é compreendido. Não existe outro observador senão Ele. Não existe outro ouvinte senão Ele. Não existe outro pensador senão Ele. Não existe outro compreendedor senão Ele. É nesse Imperecível, ó Gargi, que o espaço é tecido”.

Então, Gargi disse: “Veneráveis brâhmanes, devem considerar-se muito afortunados se conseguirem livrar-se deste homem apenas prestando-lhe homenagens, porque nenhum de vocês será capaz de derrotá-lo numa discussão sobre Brahman”. E ela, Gargi Vachaknavi, calou, ficando em paz.

Yajñavalkya disse então:

– “Veneráveis brâhmanes, que algum de vocês, se assim desejar, me interrogue, ou então todos vocês podem questionar-me; ou ainda, eu interrogarei algum de vocês, ou poderei interrogar todos vocês juntos”.

Porém, nenhum dos brâhmanes atreveu-se a interrogá-lo. Então, ele os questionou através deste poema:

– “Tal como é majestosa a árvore, suprema na floresta, da mesma forma é, em verdade, o Homem. Seus cabelos são como as folhagens. Sua pele, a casca externa. Sob sua pele corre o sangue, assim como corre a seiva sob a casca da árvore. Quando ferido, a seiva escorre do seu corpo, como da planta cortada. Sua carne é a casca interna. Seus membros rígidos, como a madeira do tronco. Seus ossos são o cerne. Assim como da raiz da árvore derrubada cresce uma nova, como, e de que raiz, irá crescer o homem mortal, quando este é derrubado pelo Rei da Morte?

“Não respondam, “do sêmen”, porque ele nasce de alguém que está vivo. A árvore que cresce da semente, após secar, rebrota outra vez. Arranquem, porém, a árvore pela raíz e ela não tornará a crescer. Da mesma forma, quando a Morte arranca o Homem mortal pelas raízes, de que raiz irá ele crescer? Tendo nascido, ele não volta a nascer. Quem é que iria gerá-lo outra vez? Brahman é o entendimento, o contentamento. Ele próprio é a dádiva, o sankalpa do ofertante, a meta de quem, pacientemente, espera para conhecê-lo”.

Diálogo entre Yajñavalkya e Maitreyi

“Maitreyi, minha querida,” disse Yajñavalkya, “Vou renunciar a esta vida. Permita-me fazer uma partilha final (dos meus bens) entre você e Katyayani.”

Então, Maitreyi disse: “Venerável senhor, se de fato, a terra inteira, com todos seus tesouros me pertencesse, alcançaria eu a imortalidade através desses bens?” “Não,” respondeu Yajñavalkya, “sua vida seria apenas igual à daqueles que têm riquezas. No entanto, não há a mínima chance da imortalidade ser obtida através da abundância.”

Então Maitreyi disse: “O que deveria eu fazer então, com aquilo que não me torna imortal? Ensine-me, venerável senhor, sobre aquele que você conhece como o único meio de se alcançar a imortalidade.”

Yajñavalkya respondeu: “Minha querida, você já era minha amada antes, e agora menciona o assunto que me é mais caro. Venha e sente-se: irei lhe explicar. Enquanto lhe explico, medite sobre minhas palavras.”

Então Yajñavalkya disse:

“Em verdade, não é pelo amor ao esposo, minha querida, que o esposo é amado: ele é amado pelo amor ao Ser que, em sua verdadeira natureza, é uno com o Ser Ilimitado.
“Em verdade, não é pelo amor à esposa, minha querida, que a esposa é amada: ela é amada pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor aos filhos, minha querida, que os filhos são amados: eles são amados pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor à riqueza, minha querida, que a riqueza é buscada: ela é buscada pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor aos educadores, minha querida, que o educadores são venerados: eles são venerados pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo respeito aos guerreiros, minha querida, que os guerreiros são respeitados: eles são amados pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor ao mundo, minha querida, que o mundo é amado: ele é amado pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor aos elementais da natureza, minha querida, que os os elementais da natureza são amados: eles são amados pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor aos seres vivos, minha querida, que os seres vivos são amados: eles são amados pelo amor ao Ser.
“Em verdade, não é pelo amor ao Todo, minha querida, que o Todo é amado: ele é amado pelo amor ao Ser.

O Ser deve ser conhecido.

“Em verdade, minha querida Maitreyi, é o Ser quem deve ser conhecido. Palavras sobre ele devem ser ouvidas. Reflexões e meditações sobre essas palavras devem ser feitas. Pelo conhecimento do Ser, minha querida, através da audição, a reflexão e a meditação, tudo é conhecido.

“O educador rejeita àquele que enxerga a si mesmo como sendo diferente do Ser. O guerreiro rejeita àquele que enxerga a si mesmo como sendo diferente do Ser. O mundo rejeita àquele que enxerga a si mesmo como sendo diferente do Ser. Os deuses rejeitam àquele que enxerga a si mesmo como sendo diferente do Ser. Os seres rejeitam àquele que enxerga a si mesmo como sendo diferente do Ser. O Todo rejeita àquele que enxerga a si mesmo como sendo diferente do Ser. O educador, o guerreiro, o mundo, os deuses, estes seres vivos, o Todo, são o Ser.

Yajñavalkya e Vidaghdha

[A palavra Deus não existe em sânscrito com o sentido que lhe damos no Ocidente. Claro que alguém poderá ver deuses nos mantras hindus. Pessoalmente, prefiro ver os devas, os “deuses” hindus, como elementais da natureza, formas de energia ou representações simbólicas intuitivas das camadas da existência que transcendem a mente. A Brihadáranyaka Upanishad (III:9) deixa isso bem claro neste diálogo:]

“Então Vidagdha Shákalya perguntou: – Quantos deuses existem, Yajñavalkya?

O sábio respondeu de acordo com o seguinte nivid (fórmula invocatória):

– Tantos como são mencionados no nivid do hino a todos os deuses, ou seja, 303 mais 3003 ( = 3306).

– Sim – disse Shákalya – mas quantos deuses existem mesmo, Yajñavalkya?

– Trinta e três.

– Sim – disse ele – mas quantos deuses há mesmo, Yajñavalkya?

– Três.

– Sim – disse ele – mas quantos deuses existem mesmo, Yajñavalkya?

– Dois.

– Sim – disse ele – mas quantos deuses há, Yajñavalkya?

– Um e meio.

– Sim – disse ele – mas quantos deuses existem, Yajñavalkya?

– Um.

– Sim – disse ele – mas quais são os 303 e os 3003 deuses?

Yajñavalkya disse: – Esses são apenas seus poderes (mahima). Eles são somente trinta e três.

– E quais são esses trinta e três?

– Oito Vasus, onze Rudras e doze Ádityas fazem trinta e um. Com Indra e Prajapati são trinta e três.

– Quais são os Vasus?

– O fogo, a terra, o vento, o sol, o céu, a lua e as estrelas. Estes são os Vasus pois configuram este excelente (vasu) mundo. Por isso são chamados Vasus.

– Quais são os Rudras?

– Os dez ares vitais do indivíduo, mais a consciência, que é o décimo primeiro. Quando eles partem deste corpo mortal, nos fazem chorar (rudra = chorar, gritar). Por isso é que eles são chamados Rudras.

– Quais são as Ádityas?

– Elas são as doze luas do ano. Elas são as Ádityas, porque carregam o mundo inteiro ao longo do tempo. Como elas andam (yanti) carregando (ádá) o mundo, são chamadas Ádityas.

– Qual é Indra? Qual é Prajapati?

– O trovão é Indra. O sacrifício é Prajapati.

– Qual é o trovão?

– O raio.

– Qual é o sacrifício?

– Os animais sacrificais.

– Quais são os seis deuses?

– O fogo, a terra, o vento, a atmosfera, o sol e o céu. Eles são seis pois o mundo inteiro é esses seis.

– Quais são os três deuses?

– Os três mundos (bhúr, bhuva, sváhá), pois é neles que todos estes deuses existem.

– Quais são os dois deuses?

– O alimento e a respiração.

– Qual é o um e meio?

– Aquele que purifica (o vento).

– Mas aquele que purifica é somente um. Como pode ele ser um e meio?

– Porque nele o mundo inteiro prosperou (adhyardhnot). Então, ele é um e meio (adhyardha).

– Qual é o deus único?

– A respiração. Ela é chamada Brahman, o Ilimitado.”

O Diálogo entre Driptabalaki e o rei Ajatasatru.

“Driptabalaki, do clã dos Gargyas, era um homem de vastos conhecimentos. Um dia, ele foi ao encontro de Ajatasatru, rei de Varanasi, e lhe disse:

– “Posso lhe instruir sobre o Ser?”

Ajatasatru respondeu: “Lhe darei mil presentes se conseguir, e então o povo espalhará esta notícia: ‘O nosso rei é tão generoso como o rei Janaka'”.

Então, Gargya iniciou seu discurso:

– “No Sol, lá no firmamento, existe um espírito. Reconheço esse espírito como o Ser”.

– “Não me fale dele desta maneira”, respondeu-lhe Ajatasatru. “Considero o Sol apenas como o regente da radiação e o rei de todos os seres da terra. Aquele que o reconhece deste modo torna-se Senhor, Comandante e Rei de todos os seres”.

Então Gargya disse: “Há um espírito na longínqua Lua. Reconheço esse espírito como o Ser”.

Ajatasatru respondeu-lhe: “Não me fale dele assim. Apenas considero a Lua como o grande rei Soma, envolto em vestes brancas. Aquele que assim o reconhece recebe diariamente o néctar do soma e nunca lhe faltará comida”.

– “Existe um espírito no relâmpago”. disse Gargya, “Reconheço esse espírito como o Ser”.

– “Não me fale dele dessa maneira”, disse o rei. “Considero o relâmpago apenas como uma coisa resplendecente. Aquele que o reconhece assim torna-se resplendecente, e resplendecente será sua descendência”.

Então, Gargya disse: “Existe um espírito no espaço. Reconheço esse espírito como o Ser”.

– “Como pode dizer isso?”, replicou o rei. “Considero o espaço apenas como a plenitude que não se abrange. Aquele que o reconhece assim enche-se de plenitude, de filhos e riqueza, e seus descendentes não desaparecem deste mundo.

Então Gargya disse: “Há um espírito no vento. Reconheço esse espírito como o Ser”.

Ajatsatru respondeu:

– “Não me fale assim. Reconheço o vento apenas como o invencível Indra,.um exército inconquistável. Aquele que o reconhece assim torna-se um conquistador invencível que conquista todos os demais”.

Então Gargya disse:

– “Há um espírito no fogo. Reconheço esse espírito como o Ser”

Ajatasatru respondeu:

– “Não me fale dele assim. Reconheço o fogo como uma poderosa força elemental. Aquele que o reconhece assim torna-se todo-poderoso, e poderosa se torna a sua linhagem”.

Então Gargya disse:

– “Existe um espírito nas águas. Reconheço esse espírito como sendo o Ser”.

Ajatasatru respondeu:

– “Como pode dizer isso? Reconheço esse espírito como uma reflexão maravilhosa. Aquele que o reconhece assim é honrado por tudo aquilo que reflete sua própria natureza, assim como seus descendentes”.

Então Gargya disse:

– “Existe um espírito no espelho. Reconheço-o como o Ser”.

O rei respondeu-lhe:

– “Então, fale-me dele assim, pois reconheço esse espírito como efulgente. E aquele que assim o reconhece torna-se efulgente, como efulgente será sua descendência. Ainda, comparado aos demais, supera-os em seu resplendor”.

Então Gargya disse:

– “Há um espírito no ruído do andar do homem. Reconheço esse espírito como sendo o Ser”.

Ajatasatru respondeu-lhe:

– “Não me fale dele assim, porque o reconheço como a vida. E aquele que assim o reconhece, torna-se a força da vida, e, nas ações do cotidiano, essa força vital não o abandona antes de tempo”.

Então, Gargya disse:

– “Existe um espírito nas direções da terra. Reconheço esse espírito como o Ser”.

Ajatasatru respondeu-lhe:

– “Não me fale dele assim, porque o reconheço como o Segundo [manifestado], inseparável da Unidade [não manifestada]. Aquele que o reconhece desta maneira, adquire esse Segundo e não é afastado pela pluralidade”.

Então Gargya disse:

– “Há um espírito na sombra. Reconheço esse espírito como o Ser”.

Ajatasatru respondeu:

– “Não me fale dele assim, porque o conheço como um reflexo da morte. Aquele que assim o conhece, torna-se poderoso neste mundo, e a morte não ceifa sua vida antes de seu tempo chegar”.

Gargya disse:

– “Existe um espírito no corpo humano. Reconheço esse espírito como o Ser”.

Ajatasatru respondeu:

“Não me fale dele assim, porque o reconheço como o possuidor de uma entidade. Aquele que assim o reconhece, vem a possuir essa entidade, como também sua descendência”. Gargya manteve-se silencioso.

Então o Rei perguntou-lhe: – “É tudo?”

– “É tudo!” respondeu Gargya.

Disse o Rei:

– “Se isso é tudo, então, nada sabemos!” Gargya dirigiu-se ao Rei:

– “Você consente em que me torne seu discípulo?”, perguntou Ajatasatru.

– “É contra os costumes um brâhmane aproximar-se de um guerreiro e pedir-lhe que discurse sobre o Ser. Não obstante, te instruirei com toda clareza”.

O Ser está no sono.

Pegando Gargya pela mão, o Rei levantou-se e começaram ambos a caminhar. Ao chegar do lado de um homem adormecido, chamaram-no usando vários nomes:

– “Ó Grande Rei Soma, usando em vestes brancas!” Porém, o homem adormecido não acordou. Então, o Rei sacudiu-o com suas mãos e acordou-o. O homem ergeu-se. E Ajatasatru disse:

– “Quando este homem estava adormecido, onde se encontrava o Ser, do qual consiste a consciência? E desde onde é que ele retornou?”

Gargya não sabia responder.

O rei Ajatastru disse:

– “Enquanto este homem dormia, o Ser que configure a consciência apossou-se da precepção dos sentidos e recolheu-se no coração. Quando isto sucede, se diz que o homem dorme. Então a respiração, a palavra, a visão, a audição e o pensamento são cativos desse Ser [respondem a ele].

“Também lhe pertence o mundo dos sonhos, quando o homem sonha. Então ele acredita que se tornou um grande rei ou um grande sábio, e vive [no sonho] em condições confortáveis ou desconfortáveis. Como um grande rei, levará consigo o seu povo e, atravessará os seus domínios, por onde desejar. Do mesmo modo esse Ser apodera-se das faculdades da vida desse homem, e vagueia à mercê de seus desejos.

“Quando o homem está no sono profundo e nada percebe, esse Ser vai desde o coração até o alto da cabeça, através dos setenta e dois mil canais chamados hitah, que ligam o centro do coração ao do alto da cabeça. Tal como um jovem, um grande rei, ou um grande sábio podem descansar, depois de ter atingido seu zênite, assim, acontece com o Ser.

“Assim como os fios sutis derivam da aranha, assim como a centelha deriva do fogo, derivam do Grande Ser todas as vidas, todos os mundos, todos os deuses, todos os seres em todas as direções. Pela compreensão dos mistérios do Universo, [a visão] das Upanishads nos auxilia a atingir a Realidade da Realidade. Os ares vitais são uma realidade, e Ele é a realidade [desses ares vitais]. “

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Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

6 respostas para “Brihadaranyaka Upanishad (fragmento)”

  1. MARAVILHOSO. FAZIA ANOS QUE EU NÃO LIA SOBRE ESTE ASSUNTO
    PARTICIPEI DA COMUNIDADE HARE KRISHNA EM SÃO LOURENÇO DE MINAS NOS ANOS 70. E HOJE FIQUEI EMOCIONADA AO LEMBRAR ESTES ENSINAMENTOS.TENHO UMA FILHA COM O NOME DE ANANDA OUTRA INDRA E A SAMANA.
    OBRIGADA SONINHA.

  2. Muito Legal Como nós meros estudantes poderíamos descrever esse conhecimento tão claramente como está exposto nas Upanishads! Obrigada pela tradução. Um abraço, Joana.

  3. Obrigada por transmitir e perpetuar o conhecimento.
    Este site faz parte constantemente de minha entrega ao yoga, e me fortalece em momentos de fraqueza, me escalrece em momentos de dúvida, e me concentra nos momentos do turbilhão.

  4. Valeu Pedro!
    Maravilhosa esta Upanishad, mesmo que sendo só uma parte. Mais uma vez obrigado por disponibilizar estas traduções e poder compratilhar conhecimento através do yoga.pro.
    Om abração!
    Mauricio Salem

  5. Pedro,

    Que bom vc ter disponibilizado desta forma tão clara e acessivel tamanha preciosidade. Esta leitura fez o meu dia! Já repassei pra espalhar a alegria.
    Muito Grata
    HARI OM TAT SAT

  6. Pedro,

    Eu te amo por essa tradução. Depois da cronologia, você ainda manda essa?

    Muito obrigado pela sua dedicação ao Yoga, estava chateado que não ia dar para ir fazer o Curso II sobre as Upanishads, mas acabo de ter uma compensação com esse texto.

    Um abraço.

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