Há pessoas que acham que, na Índia antiga, as mulheres eram proibidas de praticar ou ensinar Yoga. Ainda que essa afirmação seja verdadeira se olharmos para a história recente da Índia, ela não reflete a verdade dos fatos da longa história do Yoga. Voltaremos sobre o tema mais adiante.
Este é um convite para questionar a ideia da proibição do Yoga para a mulher na Índia antiga, que se revela falsa depois de um passeio pelo textos onde estão registradas as descobertas e experiências dos yogins do passado desde a Idade védica, há mais de 3500 anos, até os mais recentes textos de Haṭhayoga no século XVIII.
As afirmações que você encontrará aqui podem facilmente ser comprovadas e confirmadas consultando as obras que usaremos como referência neste texto, bem como os links que aparecem ao longo dele, para expandir essas referências, caso isso seja do seu interesse.
Assim, se olharmos para a literatura do Yoga, veremos que há mulheres praticantes em todas as épocas desde o início da tradição do Yoga no alvorecer da cultura védica, que data do segundo milênio a.C.
Algo que chama a atenção no discurso daqueles que afirmam que o Yoga era proibido para as mulheres antigamente: como é que existe a palavra yoginī, que se refere à mulher que pratica ou ensina Yoga?
O termo yoginī não é um neologismo cunhado por algum mestre contemporâneo, preocupado em parecer politicamente correto no século XXI. Essa palavra data da Idade Védica, pelo menos de 1500 anos antes de Cristo.
Se mulheres não podiam praticar naquela época, qual seria a razão para se ter uma palavra para designar as praticantes de Yoga de sexo feminino?
O fato é que, dentro da vasta literatura do Yoga, as mulheres sempre aparecem. Ora como praticantes ou alunas, ora como mestras e professoras.
No início da linha do tempo da literatura do Yoga encontramos no mais antigo texto da espiritualidade indiana, o Ṛgveda, que data do segundo milênio a.C. (aproximadamente entre 1500 e 1200 antes de Cristo).
Nesse longo e belo texto, que contém o embrião daquilo que viria a ser chamado posteriormente de Yoga, são mencionadas 27 ṛṣikās ou mestras mulheres, dentre as quais destacam-se Vākambhriṇī, Viśvavāra, Ghośa, Sūryasavitrī, Śraddhā e Lopamudrā. Todas elas são consideradas mantradraṣṭaras, ou visionárias que revelaram a sabedoria e os mantras védicos.
Se quiser saber mais sobre as 27 mestras védicas, recomendamos a leitura do excelente livro Rishikas of the Ṛgveda, da nossa amiga Swāmiṇī Ātmaprajñānanda Saraswati.
A essas ṛṣikās, somam-se as yogiṇīs que aparecem nas Upaniṣads, como Maitreyī, esposa do sábio Yājñavālkya, ou Gargī, que desafia esse sábio a um debate metafísico numa das narrações da Bṛhadāraṇyakopaniṣad. Maitreyī é a protagonista, junto com o seu marido, do célebre diálogo sobre o amor que aparece nessa Upaniṣad.
Além de Maitreyī e Gargī, as mais conhecidas yogiṇīs do período das Upaniṣads, podemos mencionar ainda Jabalī, Umā Haimavatī, além da princesa-asceta Ghoṣā. Todas estas gurvīs (mestras) datam de, pelo menos, o primeiro milênio a.C., senão antes.
No panorama das mulheres renunciantes, destaca-se igualmente a erudita yoginī Sulabhā, que desafia e vence o rei Janaka noutro debate filosófico registrado no épico Mahabhārata, que data do período entre o século III a.C e o século III d.C .
Dentro do mesmo épico, a sábia Maitreyī é considerada uma erudita em Advaita e uma brahmavadiṇī, asceta cuja vida é focada na compreensão e na transmissão da natureza de Brahman, o Ser Ilimitado.
O Yogayājñavālkya é um interessantíssimo texto clássico que data do período entre o século II a.C. e o século IV d.C. Ele consiste de um extenso diálogo onde os protagonistas são novamente Yājñavālkya e Gargī. Nesse śāstra, Gargī aparece como a estudante do sábio, que responde todas as suas perguntas.
Ainda no período clássico da formação da literatura do Yoga, ao qual corresponde o Yogasūtra de Patañjali (do século IV d.C., aproximadamente), encontramos a mestra Goṇikā, mãe do sábio autor dos Sūtras.
Mesmo que a sua história apareça transfigurada pelo mito, como é o caso de muitas outras mestras e mestres, é significativo o fato de que a tradição do Yoga recolha a lembrança de que Patañjali aprendeu com uma mulher, e que essa mulher era a sua mãe.
Se dermos mais um salto adiante na linha do tempo até o período medieval (séculos IX a XVI d.C.), que viu surgir com muita força o Tantra e o Haṭhayoga, veremos que as mulheres continuam a ter um papel preponderante.
A Haṭhayoga Pradīpikā, por exemplo, menciona instruções práticas para mulheres (III:85, III:93), além de dedicar a prática de vajrolīmudrā exclusivamente a elas (III:98-103). Esse trecho de seis estrofes foi muitas vezes censurado nas traduções deste texto, junto com outros ślokas que mencionam práticas e rituais onde a sexualidade representa um papel importante.
Tal é o caso da tradução de Swāmi Vishnudevananda, que optou por apagar esse trecho e colocar um aviso dizendo que essas práticas não são “sáttvicas”:

Esse trecho muitas vezes silenciado, onde Svātmarāma Yogendra, o autor da Haṭhayoga Pradīpikā, se dirige unicamente às mulheres, diz assim:
Vajrolī para a yoginī
अभ्यासान्निम्तांम् चान्द्रीं विभूत्या सह मिश्रयेत् ।
धारयेदुत्तमाङ्गेषु दिव्यदृष्टिम् प्रजायते ॥ ९८॥
abhyāsānniḥsṛtāṁ cāndrīṁ vibhūtyā saha miśrayet |
dhārayeduttamāṅgeṣu divyadṛṣṭiḥ prajāyate || 98 ||
III:98. Misturam-se cinzas com bindu (semen) após a prática de vajrolī e esfrega-se
esta mistura nas partes nobres do corpo, obtendo-se assim a visão divina.
पुंसो बिन्दुं समाकु ञ्च्य सम्यगभ्यासपाटवात् ।
यिद नारी रजो रक्षेद्वज्रोल्या सापि योगिनी ॥ ९९॥
puṁso binduṁ samākuñcya samyagabhyāsapāṭavāt |
yadi nārī rajo rakṣedvajrolyā sāpi yoginī || 99 ||
III:99. Se uma mulher praticá-lo o suficiente como para dominar esta técnica, se for
capaz de absorver o bindu do homem e o retiver dentro de si por meio de vajrolī,
tornar-se-á uma yoginī.
तस्याः किम् चिद्रजो नाशं न गच्छित न संशयः ।
तस्याः शरीरे नादश्च बिन्दुतामेव गच्छित ॥ १००॥
tasyāḥ kiṁcidrajo nāśaṁ na gacchati na saṁśayaḥ |
tasyāḥ śarīre nādaśca bindutāmeva gacchati || 100 ||
III:100. [Assim,] sem dúvida, evita-se a perda da mínima quantidade de fluxo vital
feminino. No corpo [da yoginī], o nāḍa transmuta-se em bindu.
स बिन्दुस्तद्रजश्चैव एकीभूय स्वदेहगौ ।
वज्रोल्य्अभ्यासयोगेन सवर्सिद्धिम् प्रयच्छतः ॥ १०१॥
sa bindustadrajaścaiva ekībhūya svadehagau |
vajrolyabhyāsayogena sarvasiddhiṁ prayacchataḥ || 101 ||
III:101. Se o sêmen (bindu) e o fluido feminino (rājas) permanecerem unidos no
interior do corpo mediante vajrolī, conseguir-se-á todo tipo de siddhi.
रक्षेदाकञ्चनादूध्वर्ं या रजः सा हि योगिनी ।
अतीतानागतं वेत्ति खेचरी च भवेद्ध्रुवम् ॥ १०२॥
rakṣedākuñcanādūrdhvaṁ yā rajaḥ sā hi yoginī |
atītānāgataṁ vetti khecarī ca bhaveddhruvam || 102 ||
III:102. A yoginī que preserva seu rājas mediante a ativação ascendente pode
conhecer o passado e o futuro e alcançar a perfeição em khecarī.
देहिसिद्धम् च लभते वज्रोल्य्अभ्यासयोगतः ।
अयं पुण्यकरो योगो भोगे भुक्तेऽपि मुक्तिदः ॥ १०३॥
dehasiddhiṁ ca labhate vajrolyabhyāsayogataḥ |
ayaṁ puṇyakaro yogo bhoge bhukte’pi muktidaḥ || 103 ||
III:103. Mediante a prática de vajrolī, obtém-se a perfeição do corpo [beleza, graça e
força]; este tipo de Yoga proporciona mérito e, ainda que coexista com a experiência
sensual, conduz à libertação, mokṣa.
Portanto, temos aqui um claro exemplo não apenas de presença da mulher nas práticas tántricas medievais de Haṭhayoga, mas igualmente uma instrução dirigida específica e exclusivamente para ela. Cabe lembrar que a Haṭhayoga Pradīpikā data do século XV d.C.
A mesma recomendação para as mulheres em relação à prática de vajrolī mudrā é feita no Dattātreyayogaśāstra, um texto ainda mais antigo que a Pradīpikā.
Se quiser aprofundar-se mais no papel da mulher nas práticas medievais de Haṭhayoga, recomendamos a leitura do sub-capítulo Women Yogis, do livro Roots of Yoga, de James Mallinson and Mark Singleton, a partir da página 78.
Ainda no mesmo período, entre os séculos XIV e XVI, vemos o surgimento do Bhaktiyoga, Yoga devocional popular, com uma enorme força. Esse movimento foi liderado dentre outras, pelas devotas-poetisas Lalla Ded, também conhecida como Lalleśvarī (1320–1392), da Cachemira, e Mīrabai (1498-1547), do Rajastão.
Ambas foram yoginīs de muito valor, que deixaram uma obra poética impressionante no que tange à compreensão do Ser Ilimitado. Igualmente, foram ativistas pelos direitos das mulheres numa época em que o patriarcado já começava a mostrar os dentes.
Mīrabai liderou o movimento feminino que resultou na aceitação das mulheres no templo de Kṛṣṇa de Mathura. Quando o sacerdote principal do templo se interpôs no seu caminho e disse para ela e suas amigas que somente homens podiam entrar no templo, Mīra olhou para ele e os outros que o acompanhavam e disse: “Não vejo nenhum homem aqui. O meu homem é Kṛṣṇa, ele está no altar, e vou encontrar-me com ele agora”. Os sacerdotes, pasmados, a deixaram entrar. Desde aquele dia, as mulheres são livres para venerar Kṛṣṇa nesse templo, bem com no de Vṛndāvaṇa.
O Patriarcado
Nada disso, porém, exclui a realidade que mencionamos no início: o patriarcado, de fato, dominou o Yoga nos últimos séculos, a partir das mudanças comportamentais impostas pelos mughals (a partir do século XVI d.C.) e a moral puritana do império britânico durante o século XIX. Nesse período, em alguns reinos do sub-continente indiano, o Yoga (e demais práticas do Tantra) não foi apenas proibido para as mulheres, mas para todo o mundo.
Durante esse período, o moralismo puritano, a misoginia, o machismo e a homofobia foram instituídos. Isso não significou apenas um enorme retrocesso naquele período em relação às liberdades civis que vigoravam no passado, mas se estendeu até muito recentemente. Lembremos que a lei que penalizava a homossexualidade na Índia foi instituída pelos ingleses no século XVII, e somente foi derrogada em 2018.
A perseguição às mulheres e a misoginia do estado derivada do legado colonial britânico seguiu um rumo muito similar, pelo que era de esperar-se que elas fossem discriminadas também nos ambientes de Yoga e na espiritualidade. A sociedade indiana ainda tem uma enorme ferida aberta em relação aos direitos das mulheres, que você certamente conhece bem.
Conclusões
No entanto, extrapolar esse passado infame porém relativamente recente da história do Yoga para o mais remoto, não é somente um erro colossal na interpretação desses fatos. Ele consiste também em apagar a memória de todas as yoginīs da antiguidade, bem como sermos injustos com as mulheres praticantes, mestras e professoras do presente.
A pessoa que diz defender “as tradições”, e ao mesmo tempo afirma que as mulheres não podiam praticar antigamente está a dizer, indiretamente, que a presença das mulheres no Yoga nos dias de hoje seria fraudulenta, pois não haveria base histórica para ela. Nada está mais longe da verdade, nem da própria tradição, como vimos.
Lembremos que, antes dessas circunstâncias recentes na história indiana relativas ao patriarcado, sempre houve yoginīs e gurvis. Essas yoginīs tiveram nomes, vidas e trajetórias que ficaram registradas na tradição, da mesma maneira que os homens. Não deixemos que a lembrança delas morra. Honremo-las sempre, e façamos jus à linda, inclusiva e plural tradição da qual fazemos parte.
॥ हरिः ॐ ॥
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
Biografia completa | Artigos