Como ser feliz? Acredito que poderíamos começar por colocar a pergunta no plural: como sermos felizes? Digo isto porque acreditamos que a felicidade seja um direito de todos e que, enquanto houver gente sofrendo, deveríamos nos ocupar de aliviar esse sofrimento.
Qual é a idade desta pergunta?
Você já parou para pensar se apenas nós mesmos nos fizemos esta pergunta? Este tema é velho como o mundo. O Svastivācanam, uma linda invocação que usamos nas práticas de Yoga, diz:
लोकः समस्lतः सुखिनो भवन्oतु॥
lokaḥ samastaḥ sukhino bhavantu ||
Que todos os seres, em todos os lugares, sejam felizes.
Existe um texto chamado Ṛgveda, que vem a ser um dos livros mais antigos da Humanidade. Nele, tem duas partes. Na primeira, ensina-se o modo de agir, karmakaṇḍa (como fazer os karmas, as ações). Na segunda, algo que se chama autoconhecimento, jñanakaṇḍa.
Estamos mencionando este livro porque ele, justamente, tem como objetivo responder à questão “Como sermos felizes no século XV a.C.?”, época em que o Ṛgveda foi composto. A resposta, independentemente do tempo ou do lugar onde tenhamos nascido, é sempre a mesma.
Essa resposta tem duas partes, que coincidem com as duas partes do Ṛgveda. Elas são:
1) precisamos conhecer a nós mesmos
para aprender a usar o discernimento; e
2) precisamos fazer ações corretas,
pois delas depende a nossa tranqüilidade.
Existe porém, uma única diferença entre a forma de viver no século XL a.C e o XXI desta era: a velocidade com a qual as coisas acontecem hoje em dia. A solução para esta situação é fácil: faça menos. Simplifique, aprenda a parar. Evite a primeira reação. Conte até 10.
Não se leve tão a sério. Brinque mais. Ajude os demais. Tire seu ego do centro das atenções durante alguns momentos a cada dia.
A pergunta não muda; a resposta, tampouco.
A pergunta não muda; a resposta, tampouco. Isso acontece, pois esta é uma questão universal. O Ser Humano tem se feito esta pergunta desde o início dos tempos, pois parece que esta preocupação é tão antiga quanto ele mesmo.
E, desde o início dos tempos, independentemente de quem nós formos, ou da época em que tivermos nascido, ou da nossa cultura.
A pergunta ‘como ser feliz?’ aponta para a presença da não-felicidade. Quando não temos conhecimento sobre o que somos, vivemos naquilo que se conhece como o mundo das dualidades. Em sânscrito, a palavra samsara significa ‘ficar andando em círculos’.
Tem um perfume francês que leva esse nome que, aliás, também pode ser traduzido como “sofrimento”. É como se estivéssemos usando esse perfume o tempo todo: “Saṁsāra, para aqueles que sabem o que querem”, diz a publicidade. E lá vamos nós, inocentemente, acreditando que a felicidade dependa de ter objetos como esse.
Este, talvez seja um dos erros mais freqüentes cometidos pelos humanos: acreditar que a felicidade dependa de pessoas ou objetos, que percebemos como a única fonte de felicidade.
Uma das mais belas coisas dos humanos é a liberdade, a consciência. Mas, ao mesmo tempo em que desfrutamos da glória de sermos auto-conscientes, essa glória não dura muito tempo, pois o espelho nos devolve a imagem de alguém que está tentando constantemente se completar satisfazendo desejos ou projetando expectativas nas pessoas e no mundo à sua volta.
Em suma, achamos que seremos felizes somente quando formos diferentes do que somos neste momento.
1. Como Ser Feliz e o Problema Fundamental.
Essa situação acontece por conta daquilo que poderia ser chamado O Problema Fundamental. Esse problema é assim: quando me olho no espelho, não vejo uma pessoa feliz e satisfeita. Não vejo um ser humano tranqüilo, pleno e realizado.
Estou sempre sentindo que algo me falta. Para me sentir feliz, então, acredito que preciso completar a mim mesmo, preencher esse sentimento de vazio no coração. Nesta situação, encontro-me fragilizado, exposto. Sinto-me fraco e indefeso perante um mundo que se mostra hostil e, muitas vezes, violento.
Apenas o conhecimento sobre o Ser elimina esse problema fundamental, e nos demonstra que não apenas os humanos, mas todos os seres vivos, incusive plantas e animais, são completos em si mesmos.
Entretanto, o que o Veda ensina é algo que pode parecer absurdo aos nossos olhos: esses sentimento de inadequação nasce da ignorância que carrego. Essa ignorância não é uma ignorância intelectual, mas existencial.
Não sei quem sou. Mas, se de fato quero ser feliz, preciso desse auto-conhecimento, que é a vacina contra a ignorância. O Veda nos ensina que não há causa real nem razão suficiente para aceitarmos o sofrimento humano como algo natural.
2. Problemas ilegítimos, soluções ilegítimas.
Digo que pode parecer absurdo porque a proposta do Veda é revolucionaria, apesar da sua vetusta idade. Essa proposta é assim: o problema da minha infelicidade, o problema do meu sofrimento, não merece solução!
Tem em sânscrito uma palavra com a qual se define esta questão. Esta palavra é aśocya. Aśocya designa algo sem importância, algo pequeno. Uma infantilidade, uma besteirinha.
Não obstante, quando olho para meus problemas desde dentro deles, tenho imensa dificuldade em vê-los como algo sem importância, ou sem poder sobre mim. O que vejo, pelo contrário, é que eles são tubarões famintos prestes a me devorar.
Se, por exemplo, neste momento, eu tiver um problema qualquer que ofusque a minha paz interior, ele é o mais grave do mundo. Mas, se no momento seguinte, a solução para aquele problema pontual aparecer, o meu sentimento de paz e tranqüilidade volta, e fico feliz novamente.
O problema não é o problema:
o problema real é como lido
com os problemas tópicos.
Uma vez, no Nepal, vimos uma frase do sábio Śāntideva escrita na parede de um mosteiro: “Para que preocupar-se com algo que tem solução? Para que preocupar-se com algo que não tem solução?”
Quando tenho um problema qualquer, como por exemplo quando quebro um braço, tenho uma situação tópica. Mas, quando me faço a pergunta “Por que justo eu?”, torno esse probleminha pontual num problema universal.
O Professor Hermógenes soube dar uma tradução perfeita para o português desse tão profundo conceito: Não se preocupe com ninharias. Tudo é ninharia!
3. Compreendendo a natureza do sofrimento
Preciso compreender que o sofrimento existe para meu próprio benefício. Preciso compreender que o sofrimento existe para meu próprio amadurecimento, pois é justamente através do desconforto e da insatisfação que crescemos.
Para tanto, preciso aprender a aceitar e reconhecer o bem em tudo o que acontece comigo. Pessoalmente, tenho dificuldade em aceitar a existência de um Deus punidor, que nos castiga pelas nossas falhas.
Mas, às vezes, o remédio que preciso tomar para me curar é amargo. Apesar do sabor amargo, aceito o remédio com reverência, pois existe uma razão para isso. Depois vou compreender.
O sofrimento está baseado na
identificação com a mudança.
O sofrimento está baseado na ideia equivocada de que somos o devir dos acontecimentos que têm lugar nas nossas vidas. A tristeza está baseada na identificação com a mudança.
A dor está baseada nessa ideia de sermos a mudança. Todas estas coisas tem um início e um fim. A felicidade plena, chamada ānanda, nos ensina o Veda, não tem início nem fim. Ela é eterna.
O sofrimento nasce do desejo, do apego. Quando fico feliz na presença de alguém que amo ou de um objeto ou situação pela qual sinto atração, tendo a me agarrar a essa pessoa, objeto ou situação, já que não vejo essa felicidade em mim mesmo.
Então, quando não tenho mais essa pessoa ou situação do meu lado, sofro. Sem essa situação, fico infeliz. Desse estado, surge a confusão. Esta é a definição de samsara.
Assim, fico dentro de um círculo vicioso:
1) desejo/aversão ==> 2) sofrimento ==> 3) confusão;
1) desejo/aversão ==> 2) sofrimento ==> 3) confusão; etc.
A confusão me leva para o desejo, que me leva para o sofrimento, que produz mais confusão, e assim vamos…
Não é através da satisfação dos desejos que nos tornamos mais felizes, mas pela capacidade de ver nossos eventuais objetos de desejo com objetividade, sem projetar neles valores subjetivos.
Assim, podemos enxergar objetivamente o dinheiro como sendo apenas dinheiro, e não como uma fonte de felicidade, um relacionamento como um relacionamento, e não como a solução final contra o nosso medo da solidão, etc.
4. A Resposta Àquela Pergunta
Como corpo, tenho um início, um meio e um fim. Como Ser, sou eterno. Preciso compreender isto, e perceber a identidade entre o que Eu sou e o Ser.
Esse Ser não está separado nem é diferente da Totalidade que permeia todos os aspectos da Criação. O Ser existe desde antes da Criação, e irá permanecer depois dela.
Para apontar para o Ser, primeiramente preciso negar aquilo que ele não é. Por exemplo, você não é seu corpo. O corpo não é o Eu. Qual á a essência do Ser? Para saber como ser feliz, preciso primeiramente responder esta perguntinha.
Se eu for definir um objeto, preciso dar alguns adjetivos para colocar certos atributos nesse determinado objeto. Essas palavras me ajudam a diferenciar esse objeto dos demais.
Por exemplo, para definir esta planta digo, ‘a planta pequena, de folhas claras, que está à direita da planta mais alta’. Assim faço uma distinção entre essa planta e todas as outras.
O Ser é designado pelas palavras saccidānanda. Essas palavras não são adjetivos. Não podem ser consideradas atributos nesse sentido, mas são aquilo que o Ser é.
1) Sat significa real, verdadeiro. Literalmente, quer dizer ‘Aquilo que Permanece’, ‘Aquilo que não tem fim’. É aquilo que sempre foi, é e sempre será. Ninguém precisa dizer para você que você existe, que você é real. Você já sabe disso, certo?
2) Cit significa consciência, auto-existência. Para que haja transformação, é preciso que haja uma testemunha, que tenha estado aqui no passado. Isso permite que a transformação seja apreciada.
O que você iria achar se eu lhe dissesse: ‘vou lhe revelar um grande segredo: você existe!’ Ninguém precisa dizer para você que você existe, que você é real. Você já sabe disso, certo? Por que você pode dizer que você existe? Porque você é auto-consciente! Você existe, e sabe que existe. Isto é chit.
3) Ānanda significa muita felicidade. Plenitude. Essa é a matéria prima que configura sua essência. Por que podemos afirmar isso? Como podemos ter certeza? Por que, sempre, sempre, retornamos ao estado de felicidade.
Entre os momentos de tristeza, de insegurança, as dúvidas da mente nos aliviam (temporariamente, é verdade). Não há mal que dure 100 anos. Nenhuma forma de sofrimento permanece para sempre. Essa é a prova de que o sofrimento não faz parte da nossa real natureza.
Eu sou esse Ser! Compreendendo isto, saberei responder à pergunta do título. Em suma, você já é a felicidade que está procurando!
Uma piada ilustrativa do Swamijī: digamos que você pudesse falar diretamente com Deus, e Lhe pedisse uma cabeça, pois acha que você não tem uma.
O que você acha que Ele responderia? “Tem certeza? Eu não posso lhe dar uma cabeça, pois você já tem cabeça. Mas se insistir, posso providenciar uma segunda.”
Portanto, lembre por favor que você não pode se tornar algo que você já é.
॥ हरिः ॐ ॥
Leia também o artigo Chaves para a Felicidade.
Veja esta palestra (em inglês) do Swāmi Paramārthānanda sobre a Rāmagītā, que igualmente aborda o tema através da jornada espiritual dos Vedas.
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Belíssimo texto que traz conforto para a nossa alma! OM!
Fui infeliz durante pelo menos 10 anos da minha vida, mas esse quadro está mudando, pois estou me esforçando muito para alcançar meus objetivos. Gratidão por compartilhar essas dicas incríveis! Adorei o blog, ganhou um novo leitor, mutíssimo obrigado!
Maravilha de artigo, inspirador!
Pratico yoga há uns 5 anos e cada dia que passa sinto as modificações que vão acontecendo com meu corpo, e como o de todos meu objetivo é ser feliz para o outro aceitando-o da maneira que ele é sem tentar modificá-lo, não é fácil e na maioria das vezes me sinto só e confusa. Consigo ser serena grande parte do meu tempo, só fico muito triste por que o número de pessoas que estão neste caminho é muito pequeno, me parece que o maior mal do ser humano é o medo de ir ao encontro de sua verdade.
Ola a todos, jah eh a terceira vez que leio esse artigo sobre como ser feliz no sec XXIi… Excelente artigo! Excelente palavras de Pedro Kupfer!
Acredito que o “estado” de santosha é um otimo niyama para podermos cultivar o tempo inteiro. Pelo menos, essa consciencia sobre o santosha, tem me ajudado a viver, com mais felicidade, os meus dias! Harih Om! Namaste.
Eu amo Yoga!
Obrigado pelas palavras de luz!
Paz!
Yoga … conhecimento … prazer de ler e ser. Estou adorando esta descoberta!
Paz & Luz!
Eu adoro o Yoga!!!