Uma yogiṇī afirmou num diálogo recentemente que o “Yoga é por natureza apolítico”. Apolítico é aquilo ou aquele que aquele que tem aversão ou não se interessa pela política. Ora bem, o Yoga faz parte do existir. A política também faz parte da existência ao ponto que é dito, com razão, que existir é um ato político.
O argumento mais comum para afirmar que o Yoga é apolítico é dizer que “Yoga é prática”, e que “prática não é política”. Esse argumento não leva em consideração a profundidade do próprio Yoga, pelo que creio que podemos deixar ele de lado.
O segundo argumento, mais importante, diz que o Yoga somente está interessado em compreender a identidade entre o indivíduo e o Absoluto, Brahman, e que tudo o mais (política incluída) pertence à esfera de māyā, o aparente, que não existe sem a presença desse Absoluto.
Embora isso seja 100% verdadeiro, esse argumento não contempla o outro lado do Yoga, que é a aplicação da visão libertadora no cotidiano, sem a qual esse ensinamento perde totalmente o valor e a relevância. Noutras palavras, o ensinamento de nada vale se não for aplicado no dia-a-dia, e aplicar esse ensinamento na prática implica coexistir em sociedade.
Um ponto curioso em relação a esta discussão sobre se o Yoga é político ou não é o contraste entre esse estéril debate entre os praticantes, e o fato de que existe uma forma de budismo politicamente engajado que ninguém questiona, ensinado pelo mestre vietnamita Thich Nhat Hanh.
Dá-nos a sensação que algumas pessoas no meio do Yoga acham que os nossos irmãos de caminhada budistas têm o direito de olhar para essa importante dimensão da existência, mas nós, praticantes de Yoga, não temos esse direito.
Paradoxalmente ainda, essas mesmas pessoas celebram o fato de o primeiro-ministro indiano dar aulas de Yoga para milhares de pessoas na celebração do Dia do Yoga a cada ano, deixando de lado o detalhe de que esses mega-eventos têm um claro cunho político, e o propósito de alavancar uma agenda extremista de intolerância a todas as religiões diferentes da forma de hinduísmo promovida pelo partido que está presentemente no poder na Índia.
Existir é um Ato Político
A afirmação “existir é um ato político” destaca a forma como a nossa própria vida e identidade são moldadas e influenciadas pelo contexto político e social em que vivemos. A afirmação é feita por razões como reconhecimento ou visibilidade de minorias, luta pela igualdade de direitos ou participação cívica.
É importante ressaltar que isso não quer dizer que todas as pessoas estejam o tempo todo engajadas na militância: a expressão destaca a maneira como nossa existência individual e coletiva é moldada pelas estruturas de poder e as dinâmicas sociais, o que nos coloca necessariamente no contexto político (sejamos cientes disso ou não, queiramos ou não). Voltaremos sobre o tema no fim deste texto.
O Yoga, por seu lado, é um ensinamento que mostra para a pessoa que ela é plena e livre de limitações. Essa visão libertadora vai acompanhada de um modo de viver, no qual as atitudes cotidianas têm um papel fundamental, já que não podemos separar a visão yogika do que acontece no dia-a-dia do praticante.
Essa extensão do ensinamento para a vida cotidiana é chamada Karmayoga, Yoga das ações ou Yoga da vida. Na aplicação dos valores e atitudes que o Yoga nos propõe, inevitavelmente tomaremos decisões e faremos ações que envolvem gestos políticos.
Dentre outras coisas, a vida política envolve a busca de soluções para os problemas e desafios que afetam uma comunidade ou uma nação. Isso ocorre por meio de negociações, debates, formulação de leis, implementação de políticas públicas e participação das pessoas.
O Papel do Dharma
Na vida de Yoga, o dharma tem um papel fundamental. Dharma, desde o ponto de vista individual, significa propósito, dever ou caminho correto de uma pessoa na vida. É o princípio ético que orienta as ações e decisões da pessoa, em conformidade com a sua natureza, vocação e responsabilidades sociais.
O dharma está intimamente ligado à ideia de viver em harmonia com a natureza e a sociedade. Também envolve cumprir certas obrigações de acordo com a disposição e maturidade emocional de cada um.
O Yoga enfatiza que cada indivíduo possui um dharma único, chamado svādharma, e que manter-se fiel a esse caminho é fundamental para o crescimento interior e o bem-estar geral. Isso implica em reconhecer as próprias habilidades, talentos, interesses e propósito na vida, e agir de acordo com essas características individuais.
Ao seguir o seu dharma, uma pessoa é incentivada a agir com integridade, responsabilidade, compaixão e respeito pelos demais. Isso implica, no mínimo, cumprir certas obrigações familiares, sociais e profissionais.
Para mais além desse mínimo, o dharma está vinculado ainda com a busca da verdade, a compreensão da realidade em que vivemos e o compromisso em prol da maturidade emocional e o crescimento interior.
O Objetivo do Yoga: Liberdade
O objetivo do Yoga é mokṣa, a liberdade. Quando alguém declara ter esse objetivo como prioridade, essa é uma declaração política: implícita na declaração está a existência da pessoa que tem esse objetivo. Implícito também está o fato que a pessoa deve, de antemão, ter algum grau de reconhecimento por parte da sociedade, e de participação cívica na mesma.
Quando falamos em “grau de reconhecimento”, referimo-nos a coisas fundamentais como por exemplo o direito de exisitir, o direito de viver, o direito de ser livre para fazer escolhas, ou o direito de buscar a própria felicidade.
Se a pessoa tem esse grau mínimo de reconhecimento, engajar-se na espiritualidade ou dedicar-se ao Yoga parecem direitos inatos e são a extensão natural da vida interior de cada um. No entanto, quando esse mínimo não é garantido, a pessoa precisa primeiramente lutar por ele. Essa luta, em todos os casos, é uma luta política.
Porém, lembre por favor que luta política e partidarismo político são coisas diferentes. O partidarismo é uma espécie de fanatismo ou facciosismo político, que não tem nada a ver com política no sentido de direitos, relacionamentos e vida em sociedade.
A Ética do Yoga e a Política
Quando alguém declara ter interesse em praticar a ética do Yoga, os yamas e niyamas, isso também é uma posição política. Em primeiro lugar, o praticante posiciona-se contra a violência pelo voto de ahiṁsā. Esse posicionamento contra a violência não é uma atitude “abstrata’”, por assim dizer, mas deve apontar para situações concretas, como o discurso de ódio presente na agenda política de líderes que dividem para governar, ou em alimentar ódios étnicos ou fobias, para dar alguns poucos exemplos.
Em segundo lugar (se formos seguir a ordem do código de ética proposto pelo sábio Patañjali no Yogasūtra) a pessoa deveria defender satya, a veracidade, o que inclui, evidentemente, deixar de criar, repetir ou divulgar desinformação, pseudociências, mentiras e/ou teorias conspiratórias sem base na realidade.
Em terceiro lugar surge o valor da honestidade, asteya, o que implica, dentre outras coisas, cultivar o senso crítico quando algum político, seja da bandeira que for, faz a coisa errada. Asteya implica evitar ter dois pesos e duas medidas que sejam reguladas por nossas próprias preferências políticas, tipo, ignorar as atitudes desonestas do nosso candidato e focar somente nos atropelos ao dharma do bando oposto.
Essas três razões são alguns dos motivos pelos quais o Yoga sempre foi proibido nas ditaduras, como aconteceu na URSS: ditadores não gostam de pessoas que buscam a liberdade.
O mesmo vale hoje em dia nos países onde o Yoga continua proibido, como o Afeganistão ou a Malásia: os donos do poder têm medo do Yoga, pois o Yoga lida com liberdade e não se presta (ou não deveria prestar-se) a manipulações de nenhum tipo.
A Convergência entre Dharma e Política
A relação entre o dharma e a política no contexto da vida do Yoga pode ser entendida de diferentes maneiras, dependendo das perspectivas e interpretações individuais. Expomos aqui quatro considerações gerais sobre essa relação:
- Princípios éticos: o dharma enfatiza a importância de agir com integridade, responsabilidade e compaixão. Esses princípios éticos podem ser aplicados à esfera política, onde os praticantes de Yoga podem se envolver de maneira consciente e ética, buscando promover o bem-estar coletivo, a justiça social e a igualdade.
- Responsabilidade social: o Yoga incentiva os praticantes a reconhecerem suas responsabilidades sociais e a buscar uma vida equilibrada e harmoniosa em relação aos outros. Em termos políticos, os praticantes de Yoga podem envolver-se em atividades que promovam a justiça social, o respeito pelos direitos humanos e a sustentabilidade, agindo em conformidade com o próprio dharma e contribuindo para o bem-estar da sociedade.
- Liderança consciente: os princípios do Yoga também podem influenciar a forma como os praticantes se envolvem na política como líderes ou influenciadores. Eles podem buscar uma liderança baseada em valores éticos, transparência, sabedoria e empatia, buscando o equilíbrio entre ação política e a busca de objetivos elevados.
- Serviço desinteressado (seva): o seva é uma práticas de Yoga que envolve ação desinteressada e serviço aos demais. Na política, os praticantes de Yoga podem aplicar os princípios do seva ao se engajarem no serviço público, procurando servir o bem comum e o interesse coletivo, ao invés de buscar apenas benefícios pessoais.
É importante ressaltar que a maneira como o dharma é aplicado à política na vida de Yoga pode variar de acordo com as interpretações individuais e com as diferentes abordagens. Cada praticante pode encontrar seu próprio caminho para integrar os princípios do dharma na esfera política, buscando sempre agir de maneira consciente, compassiva e em benefício do bem comum.
“Mas de onde veio essa ideia?”
A esta altura, o amigo(a) leitor(a) pode perguntar-se de onde vêm essas afirmações: o autor deste artigo pode estar a exagerar? Vamos fundamentar e reafirmar o ponto de conexão do Yoga com a política com dois temas: por um lado, os exemplos que podemos ver nos mestres de Yoga do passado recente e, por outro lado, os exemplos visíveis no grande épico Mahabhārata, dentro do qual encontramos o maior tratado de Yoga da vida: a Bhagavadgītā. Pela análise dessas duas fontes, perceberemos que existe uma firme conexão entre Yoga e política.
Mestres de Yoga e Política
Muitos dos grandes mestres de Yoga do passado recente estiveram involucrados em lutas políticas, e em prol da liberdade social. Listamos aqui alguns exemplos.
- Swāmi Dayānanda (1824-1883) foi o fundador do Ārya Samāj. Ele comentou o Ṛgveda e lutou ativamente contra o domínio imperial, contra o sistema de castas e em prol dos direitos das mulheres. Suas observações políticas foram uma fonte de inspiração para muitos líderes políticos na luta da Índia pela independência. Ele foi o primeiro em usar o termo Swārājya, que significa autogestão e se resume na afirmação “a Índia para os indianos”, em 1876.
- Śrī Aurobindo (1872-1950), mestre de Pūrṇa Yoga, foi preso em 1908 por “atividades revolucionárias” e por lutar contra o domínio imperial da sua Majestade britânica. O mestre Aurobindo chamou o seu trabalho de Vedantismo Político. Seu modus operandi, que seria posteriormente imitado por Mahātma Gandhi, era a resistência pacífica. Se quiser saber mais sobre o Vedantismo Político, leia por favor este artigo: https://www.jstor.org/stable/42743375
- Swāmi Vivekānanda (1863-1902), mestre de Jñānayoga e ativista social, foi um dos arquitetos da independência indiana. O Swāmi lutou para erradicar o sistema de castas, o analfabetismo, a pobreza, o casamento infantil, e em prol da educação das mulheres.
Ainda podemos mencionar Gaṇapati Muṇi (1878–1936), erudito de sânscrito, poeta e ativista, discípulo de Rāmaṇa Mahaṛṣi, Swāmi Kuvalayānanda (1883-1966), professor de Yoga, fundador do Kaivalyadhama Center e pioneiro em pesquisas científicas envonvendo Haṭhayoga, e muitos outros.
Para onde você olhar, mestres de Yoga sempre se envolveram em lutas sociais, ativismo, educação e política, e sempre em defesa dos oprimidos e contra as tiranias. Esses exemplos apontam para uma tendência que sempre se fez presente na comunidade dos praticantes de Yoga: o Yoga não está separado das circunstâncias sociais em que vivemos, pois as nossas identidades são sempre influenciadas por esse contexto.
Noutras palavras, é impossível separar o Yoga do viver cotidiano. É impossível separar o Yoga da sociedade na qual ele é praticado e vivido. Yoga é liberdade mas é igualmente uma forma de viver, e essa forma de viver, necessariamente, envolve existir e fazer coisas em sociedade.
A Política no Mahabhārata
Lembremos do contexto do Mahabhārata, no qual é transmitido o objetivo do Yoga dentro do diálogo da Bhagavadgītā: trata-se de uma guerra entre dois exércitos, uma disputa pelo poder entre dos lados da mesma família.
Essa disputa é política: reis lutam entre si pelo poder. Um bando, o dos Pāṇḍavas, pretende acabar com a tirania imposta ao povo pelo outro bando, o dos Kurus. Há intensas negociações que, devido à recusa dos Kurus em negociar, conduzem à guerra. O amigo leitor há de concordar com o fato que essas negociações feitas com o intuito de evitar um grande derramamento de sangue, são pura política.
O mesmo vale para o Rāmāyāṇa, outro texto que admite uma leitura yogika. Quando Rāma, que representa o buscador, vá ao encontro de Sītā, que simboliza Ātma, precisa derrotar o líder político de Laṅkā, o rei-demônio Rāvaṇa.
Em ambos os casos, no dos Kurus e no de Rāvaṇa, essas personagens representam o egoísmo e todas as distorções que impedem que a pessoa enxergue a sua própria natureza.
Ao longo das suas mais de 100.000 estrofes, o Mahabhārata lida com questões como governança, justiça, poder e ética. Apresenta uma variedade de sistemas políticos que incluem a monarquia, a republicanismo e até o anarquismo. O épico descreve as virtudes e defeitos de diferentes personagens, e suas ações e decisões refletem suas crenças políticas.
O texto analisa igualmente os desafios e perigos do poder. Os Kauravas, que são retratados como gananciosos, criminosos e corruptos, procuram perpetuar-se no poder pelo engano, a manipulação e a violência.
Por contraste, os Pāṇḍavas, que são retratados como virtuosos e justos, se esforçam para proteger as pessoas e defender o dharma, mesmo diante de grandes adversidades e ao custo do próprio bem-estar e perda de privilégios.
O Mahabhārata também oferece insights sobre o papel da ética na tomada de decisões políticas. Apresenta a ideia de rājadharma (o dever do governante), que inclui proteger o bem-estar do povo, promover a justiça e defender o que é certo.
Os personagens do épico são frequentemente confrontados com escolhas difíceis, e as decisões que eles tomam, bem como as ações que realizam, refletem suas crenças sobre o que é certo e justo, como é o caso de Arjuna no diálogo da Bhagavadgītā, ou nas atitudes que Karṇa toma em relação aos seus irmãosPāṇḍavas, que não o reconhecem como tal.
5 Razões pelas quais Existir é um Ato Político
- Em contextos autoritários ou opressivos, simplesmente existir e ser quem você é pode ser um ato de resistência política. Ao afirmar sua identidade e expressar-se livremente, você desafia as estruturas de poder que buscam controlar e moldar as pessoas de acordo com suas próprias ideologias.
- Em muitas sociedades, certos grupos ou indivíduos podem ser marginalizados, oprimidos ou negados em sua existência devido a sua raça, etnia, gênero, orientação sexual, religião ou outras características. Nesse sentido, afirmar a própria existência é um ato político de reivindicar visibilidade e reconhecimento, desafiando a discriminação e a exclusão.
- Ao afirmar a própria existência, muitas vezes estamos reivindicando direitos e igualdade perante a lei. Os movimentos sociais, como o feminismo, a luta contra o racismo e pelos direitos civis, o movimento LGBT, entre outros, são exemplos de afirmação da existência de diferentes grupos que têm, historicamente, sofrido discriminação.
- A política está intrinsecamente ligada à construção de narrativas e identidades coletivas. Ao afirmar a própria existência, estamos contribuindo para a diversidade de perspectivas e experiências, questionando as narrativas dominantes e expandindo as possibilidades de como nos vemos e somos vistos.
- A própria existência em sociedade requer interações políticas, desde a participação em eleições e movimentos políticos até a exigência de políticas públicas que promovam a igualdade e a justiça social. Ao reconhecer que existir é um ato político, podemos ser incentivados a nos engajar mais ativamente na construção de um mundo mais justo e inclusivo.
Você consegue ver o Yoga em coexisência com essas cinco questões? Se a sua resposta for positiva então, para você, o Yoga não pode ser “por natureza apolítico” como disse a praticante que mencionamos no início, e a quem agradecemos a inspiração para escrever este texto.
ॐ ॐ ॐ
Saiba mais aqui, aqui (textos em português)
e aqui (em inglês): Why Yoga Has Always Been Political
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Excelente e muito esclarecedor o texto! Yoga é Vida e não pode ficar fora dela!