Brennan: Durante os últimos vinte e cinco anos você criou um substancial corpo do trabalho que vai desde monografias acadêmicas a artigos populares em revistas de circulação nacional, cobrindo uma ampla variedade de assuntos: da evolução da consciência humana à sexualidade e à ecologia, sem deixar de lado a filosofia e a espiritualidade da Índia em seus vários aspectos. Como você se vê como escritor?
Feuerstein: Escrever sempre foi para mim uma ferramenta para dar expressão a coisas que me movem profundamente. Meus livros refletem de algum modo o curso do meu próprio desenvolvimento intelectual e espiritual. Eu os escrevi porque estava pensando em certos assuntos que tinham se tornado importantes para mim; e acontece que escrever é a minha maneira preferida de formular os pensamentos. Outros autores ficam para cima e para baixo falando consigo próprios. Eu preciso me sentar e permitir que a minha consciência dirija a energia nervosa até os meus dedos de modo que estes possam colocar meus pensamentos no papel enquanto pipocam em minha cabeça. Eu tive que aprender a relaxar e não me complicar. Foi um processo longo e difícil. Durante anos escrever foi um trabalho duro, e eu não sei porque persisti nisso, sendo que não tinha nenhuma recompensa material. Agora é diferente. Agora o processo real de escrever é mais como uma brincadeira. Não franzo mais a testa nem cerro os dentes. Assim, tornou-se muito mais agradável. Na mesma hora, escrever parou de ser uma obsessão. Às vezes fico semanas ou mesmo meses fazendo outras coisas. No ano passado tirei três semanas de férias e consegui não escreveu uma única linha. Não poderia ter feito isto três ou quatro anos atrás.
Brennan: O que aconteceu que mudou a sua atitude?
Feuerstein: Eu suponho que paulatinamente fui transcendendo por completo o jogo intelectual de perguntas e respostas e descobri respostas suficientes para ficar mais tranqüilo, calmo e feliz comigo mesmo. Eu acredito e confio mais na minha intuição. O intelecto é um instrumento bastante limitado. É importante, naturalmente, e o trabalho intelectual pode ser uma aventura muito emocionante. Mas há muitas outras coisas na vida, e nós temos outras faculdades pelas quais podemos captar a realidade, que são ainda mais emocionantes. Neste momento na minha vida estou mais interessado em explorá-las.
Brennan: Você consegue visualizar um momento em sua vida no qual não exercerá mais a escrita como vocação?
Feuerstein: Às vezes eu penso em abandonar minha carreira de escritor por completo, mas isso não seria possível, pois finalmente estou tendo uma vida decente fazendo isso. Ao mesmo tempo, sinto um chamado para continuar comunicando os pensamentos que valem a pena através da escrita, e assim continuo a escrever… por agora. Mas quero diversificar ainda mais. Eu sinto que disse tudo o que tinha para dizer sobre o Yoga e o pensamento oriental. Naturalmente, há sempre livros que os editores querem publicar, que são encomendas difíceis de recusar, e revisões de trabalhos mais antigos que sinto que estou devendo aos meus leitores. Entretanto, eu me vejo escrevendo diferentes tipos de livros, e também quero explorar outros meios de expressão, como filmes, embora tudo que farei continuará a ter um foco espiritual.
Brennan: Você escreveu mais de vinte livros desde o início da década de 1970. Alguns deles, como ‘A Filosofia do Yoga Clássico’ ou ‘As Estruturas da consciência’, são trabalhos um tanto acadêmicos. Outros, como ‘Sagrada Sexualidade’ (publicado no Brasil) ou ‘A Loucura Sagrada’, são baseados em sua pesquisa acadêmica mas se dirigem a um público mais amplo, enquanto alguns, como ‘O Yoga vivo’, são totalmente populares. Todos eles estão vinculados de alguma maneira à espiritualidade, mas parece que você tem duas vozes: a do acadêmico e a do praticante espiritual.
Feuerstein: Isso é verdade. Parafraseando Goethe, há duas almas no meu peito. Um lado meu tende a ser ponderadamente germânico; é o que uso para escrever minhas monografias. O outro lado é brincalhão. É a minha natureza lúdica, que aparece posteriormente, em meus trabalhos mais populares. Desta forma falo mais como praticante que como acadêmico. Mas a minha finalidade sempre foi comunicar algo valioso, que seja mais do que mera informação, que tenha o poder de mudar e atingir o leitor. Todo meu trabalho é uma variação sobre o mesmo tema: a espiritualidade, que assume várias formas e toca – ou poderia tocar – nossas vidas de diferentes maneiras.
Brennan: Como você explica esses dois lados da sua personalidade?
Feuerstein: Se eu quisesse ser petulante, diria que eu sou gêmeo, mas isto seria na melhor das hipóteses uma meia verdade. Meu trabalho acadêmico foi um estágio necessário em meu desenvolvimento pessoal. Eu comecei como um praticante espiritual, um aprendiz de feiticeiro se você quiser, quando eu era adolescente. Um conhecido me disse que, dado meu fascínio pelo Yoga e pelas coisas da Índia, eu poderia me transformar num yogi ou num estudioso do Yoga. Eu pensei que tinha o necessário para ser um yogi, um renunciante às coisas mundanas. Talvez eu tivesse algum potencial para isso. Mas, em todo o caso, antes desse lado meu ser realmente testado, a vida me presenteou com uma opção diferente e possivelmente mais desafiante: transformar-me numa pessoa comum em todas minhas atividades externas e cultivar uma vida interna extraordinária. Eu casei, tive filhos, e tive que me esforçar seriamente para fazer uma carreira. Eu soube cedo que queria ser escritor e escrever sobre assuntos espirituais. E para mim, naqueles dias, assuntos espirituais significavam Yoga. Estava preenchido pelo Yoga, quase obsessionado.
Brennan: Você transformou-se um estudioso e escritor de Yoga…
Feuerstein: Sim, eu escrevi meu primeiro livro, uma mini-introdução ao Yoga, aos dezenove anos de idade. Foi publicado na Alemanha. Meu primeiro livro em inglês (‘A Reappraisal to Yoga‘) foi publicado em 1971, alguns anos após a minha ida para a Inglaterra vindo da Alemanha, onde nasci logo após a Segunda Guerra Mundial. Esse livro, para qual recrutei uma co-autora (a estudiosa vêdica Jeanine Miller), inclui diversos ensaios bastante eruditos sobre Yoga. Então, no meio da década de 1970, fiz uma pesquisa de pós-graduação em filosofia indiana e, simultaneamente, antropologia social na Universidade de Durham, no norte da Inglaterra. Isso aconteceu depois de ter publicado já diversos livros. Eu senti que precisava ter credenciais oficiais para sustentar o meu trabalho. Não quis ensinar, mas tinha um apetite voraz para pesquisar. Por alguns anos dirigi um centro de pesquisa sobre Yoga, que recebeu o apoio de muitos estudiosos eminentes do mundo inteiro, incluindo Mircéa Éliade, mas que não me deu de comer. Meu sustento era feito através de traduções e trabalhos editoriais. Era um malabarismo constante.
Em 1979 cheguei à conclusão que, como ‘estrangeiro’ e estudioso dissidente, não poderia sobreviver economicamente no congelante clima acadêmico da Inglaterra. Assim, comecei a buscar novas oportunidades. De fato, estava cansado da Academia, que desde o início tinha achado decepcionante. Embora a Universidade de Durham fosse uma instituição altamente respeitada, ninguém parecia seriamente interessado nas Grandes Perguntas. Por um curto período pareceu que o meu centro de pesquisa iria tornar-se formalmente filiado à Universidade de Hull, o que se traduziria numa posição laboral bem estável. Infelizmente ou não, colegas ciumentos e uma dose maciça de incompetência administrativa deu a esse plano um final brusco, depois que a afiliação já tinha sido aprovada pela reitoria. Para mim essa foi a última gota, após quatorze anos muito difíceis porém instrutivos na Inglaterra.
Brennan: Foi aí que você veio para os Estados Unidos?
Feuerstein: Sim, em 1981. Foi uma mudança enorme na minha vida. Não somente me desloquei geográfica e culturalmente, mas dei também adeus à academia. Como nunca tive nenhuma aspiração a subir a escada acadêmica, tinha ficado sempre como um forasteiro naquele meio. Mas agora estava também fazendo uma ruptura com a própria pesquisa. Enquanto os estudos acadêmicos sem duvida tinham afiado o meu intelecto e me fortalecido como pensador independente, eu estava perturbado pelo fato de que, quanto mais longe a minha mente ia, mais distante eu ficava do meu anseio espiritual original. Minha experiencia intermitente como editor não tinha me levado a lugar algum. Me sentia seco. Estou inclinado a pensar que a aridez espiritual é uma condição necessária para produzir monografias acadêmicas. Talvez eu esteja exagerando mas, penso que a intensa atividade intelectual aniquila o espírito. Eu acho que este é um assunto para se ponderar. De qualquer maneira eu me sentia aprisionado na minha própria força intelectual. Então quando se tornou claro que meus esforços acadêmicos fora da universidade não iriam me dar segurança financeira, entrei numa crise espiritual profunda. Eu lembrei que minha carreira tinha começado como um buscador, antes de ser um estudioso. Então, quando vim para os Estados Unidos vim principalmente como um buscador espiritual.
Brennan: Foi aí que você se tornou discípulo do Da Free John, como ele era conhecido naquela época?
Feuerstein: Certo. Eu favoravelmente impressionado pelos ensinamentos de Adi Da, do jeito que ele se expressou no seu chocante livro ‘A Prova Cientifica da Existencia de Deus será brevemente anunciada pela Casa Branca!’ Esse livro mostra seu lado mais intelectual. Claro que quando cheguei ao seu centro no norte da Califórnia descobri que ele não era nenhum Krishnamurti educado, mas um professor espiritual maluco que gostava de terapia do choque.
Brennan: Como você reagiu quando o conheceu?
Feuerstein: Fiquei intrigado, mas a minha reação emocional básica foi desconforto. Ele deixava muito claro que estava no jogo para aniquilar o ego e todas as suas manifestações. Essa é a função fundamental do guru como aquele que dissipa as trevas espirituais. Eu fui atraído por ele por causa desse papel. Entretanto basicamente, eu não acreditava nele.
Brennan: Mas você permaneceu com ele por vários anos.
Feuerstein: Sim, apesar de minha falta da confiança em Adi Da, eu reconheci que ele podia ser útil para o meu processo interno. Na perspectiva posso dizer que eu aprendi muito com ele. Ele ficava constantemente questionando minhas suposições convencionais sobre mim mesmo e o mundo, e eu estava ansioso para crescer. Assim eu apanhei muito. Mas chegou um ponto em que senti que tinha assimilado as lições que ele estava me oferecendo. Eu não queria repetir aulas mas continuar crescendo. Periodicamente revisava meu discipulado e meu envolvimento com sua comunidade, e, quando ficou claro para mim que eu tinha parado de crescer, eu fui embora. Em retrospectiva eu sinto que talvez minha falta de confiança não era somente uma limitação dentro de mim mesmo mas uma limitação que percebia nele como professor. Seu estilo maluco de ensinar, acredito, confundiu e machucou muito dos seus discípulos. Alguns estão ainda tentando se curar anos após terem abandonado a comunidade, talvez porque eles tenham entrado e saído pelos motivos errados. No meu próprio caso eu sinto que me beneficiei, embora duvide em recomendá-lo como professor. Quando alguém me pergunta se seria bom se envolver com ele e se juntar à sua comunidade, minha resposta padrão é: Somente se você quiser ir fundo na sua transformação interior e puder lidar com críticas pesadas. Eu acredito que ele é um praticante com poderes respeitáveis, mas eu também sinto uma ausência de compaixão nos seus escritos e na sua interação com seus discípulos. Naturalmente seus discípulos mais leais me indicam que em certas ocasiões eu não consigo ver seu lado compassivo. Talvez. Entretanto eu diria que se alguém for compassivo, isso ficará óbvio para todo mundo, e um monte de gente está se perguntando se existe suficientemente compaixão na vida e nos ensinamentos de Adi Da.
Brennan: Você pensa que a compaixão tem que se manifestar visivelmente como bondade, ou poderia a compaixão incluir igualmente uma certa abordagem disciplinar com o objetivo de mexer com os discípulos para trazê-los para o estado de expansão da consciência?
Feuerstein:Eu penso que um professor pode ser firme ou até mesmo severo com seus discípulos, e mesmo assim ser compassivo. Marpa estava constantemente fustigando Milarepa. E Naropa estava constantemente fustigando Marpa. E Tilopa era testado incessantemente por Naropa. Mas Milarepa, Marpa, e Naropa estavam prontos para esse áspero tratamento nas mãos dos seus professores. Eram discípulos espiritualmente extraordinários, enormemente motivados e dedicados por completo ao caminho. A maioria dos buscadores espirituais, especialmente os ocidentais, são de um calibre mais baixo e requerem conseqüentemente uma aproximação mais suave, em que a compaixão do professor fique mais evidente. Senão, teremos uma situação que se percebe como abuso. Eu acredito firmemente na virtude que os budistas chamam bondade amorosa.
Brennan: A devoção ao guru parece uma peça central da prática avançada espiritual. Como devemos compreender tal devoção? E que orientação você daria a alguém que estivesse preparado para se abrir para um professor espiritual?
Feuerstein: Guru-Yoga é um elemento fundamental da prática espiritual nas tradições como hinduísmo e budismo. Pode ser descrito como um processo alquímico de transmissão espiritual em que o próprio estado de consciência do professor modifica o estado de consciência do discípulo. Este processo se desdobra, com a sábia compaixão do professor sendo um pólo, e a receptividade devocional do discípulo sendo o outro. A devoção ao guru não é uma forma de escravidão imatura mas pede uma atitude de autocompreensão e autotranscendência aguçada da parte do discípulo. Está baseada na constatação de que o professor se oferece como um guia e até mesmo como um meio para a iluminação ou a libertação espiritual. No Ocidente existe uma tendência a confundir o papel do guru com o do professor que apenas passa conhecimento intelectual ao invés de despertar a sabedoria dentro de cada um. Como é possível adquirir conhecimento de fontes impessoais como livros e fitas de instrução, nós geralmente não avaliamos nossos professores. Então, quando aprendemos com um guru, acabamos por transferir a mesma atitude indiferente a essa relação. Aguardamos pelo conhecimento — idealmente em um par de horas — que nos ilumine rapidamente e ainda nos ajude e nos ver livres do guru. A fim de beneficiar-nos do Guru-Yoga, devemos primeiramente entender que este não é sobre comunicação de conhecimento mas sobre transmissão de sabedoria ou de um estado de expansão da consciência. De acordo com a tradição esotérica hindu, a palavra guru denota alguém que é capaz de dissipar a escuridão espiritual. A menos que entendamos termos com este, nós não poderemos relacionar-nos diretamente com um professor que seja um guru. O outro erro cometido pelos estudantes ocidentais, que raramente compreendem como o Guru-Yoga funciona, é deificar a pessoa do guru e esperar então um rio constante de milagres que nos transformem sem esforço algum. Quando os milagres previstos não acontecem, o discípulo imaturo sucumbe ao desapontamento, à frustração, e não infrequëntemente, também à difamação do guru.
Brennan: Você escreveu um livro importante, ‘Holy Madness’ (‘Loucura Sagrada’), destilando algumas de suas experiências com Adi Da. Também houve numerosas acusações de assédio e exploração sexual pela parte de notáveis líderes espirituais do Yoga e de tradições budistas. O que você pensa destas acusações em general, e o que você diria sobre isso com referência específica a Adi Da?
Feuerstein: Acho que respondi esta pergunta razoável e claramente no meu livro, que, aliás, foi o assunto mais difícil sobre o qual tenha escrito. Foi tão extraordinariamente difícil porque eu tive que avaliar muito cuidadosamente minha própria experiência pessoal, que foi razoavelmente boa, se comparada com as experiências daqueles que reivindicaram ter sido danificadas pelo comportamento amalucado de adeptos como Adi Da. Preferiria não entrar em detalhes sobre esse assunto novamente, desde que o discuti exaustivamente no meu livro. Permita-me apenas dizer que devemos ser prudentes na escolha dos nossos professores. Se você sente no plexo solar que alguma coisa está errada, deve examinar atentamente o comportamento do seu professor. Se, após a consideração devida, você conclui que não está em sintonia moral com esse professor, deve confronta-lo (o que pode chegar a ser demasiado desafiante para a maioria dos estudantes) ou simplesmente se afastar. Não devemos nunca violar nossos próprios princípios morais em favor de alguns ideais espirituais abstratos. Se suas qualidades morais possam parecer demasiado convencionais e ‘espiritualmente imaturas’, deixe que assim seja. Mas, eu acho, se nós silenciarmos nossa própria consciência para caber em um molde mais largo (mesmo que seja mais ‘maduro’), estaremos cortejando o desastre. Eu vejo o relacionamento entre um guru e seus discípulos ou suas discípulas como o que existe entre os membros de uma orquestra. Tem que haver um maestro que conheça todas as nuances da obra musical, embora não esteja tocando todos os instrumentos. Como discípulos, nós devemos tocar nosso próprio instrumento, e aprender a faze-lo belamente. Um professor espiritual genuíno ajudará sempre um discípulo a agir deste modo.
Brennan: As tradições espirituais não recomendam aderir ao próprio professor no tempo bom ou no tempo ruim, por assim dizer? Hoje muitos estudantes ficam indo de um guru para outro. Você mesmo mudou, se posso dizer assim, deixando Adi Da e indo estudar com um lama budista…
Feuerstein: Uma pergunta oportuna! Muitos buscadores espirituais contemporâneos têm feito uma trajetória fora da tradição guru-discípulo. Eu critico esta visão do caminho, embora a compreenda também. Nós no ocidente não temos nenhum modelo de como deve ser um discípulo. Freqüentemente nos aproximamos de um mestre com expectativas imensas: iluminação pela mera presença do guru. Esperamos receber iniciação imediata, buscamos o estado mais elevado de consciência numa única sentada, e avançar no caminho espiritual correndo. E tudo isto sem ter que nos esgotar demasiado. O que não levamos em consideração são as nossas próprias pré-condições karmicas. Algum tempo atrás, um amigo meu queixou-se : embora recebesse ajuda espiritual de seu professor novo há vários meses, não tinha tido nenhuma das visões ou outros sinais que lhe dariam a pauta de estar na trilha direita. Eu tive que lembrá-la que, para encontrar postes indicando os kilômetros ao longo do caminho, primeiro é necessário realmente andar um kilômetro, e depois outro. Nossos professores não podem andar por nós. Mas deixe-me voltar à sua pergunta. É desejável seguir a orientação de um professor até atingir o mesmo grau de realização que ele conseguiu. Mas se, por quaisquer razões, surgirem obstáculos intransponíveis no relacionamento com um professor, nós faríamos muito bem em admitir isso (após ter tentado corrigir a situação) e seguir nosso caminho, gratos pelos ensinamentos recebidos sem nenhuma culpa. Se o professor for verdadeiramente sábio e compassivo, não procurará nos prender mas se despedirá com bênçãos. Em favor de Adi Da, posso dizer que ele nunca tentou me reter, mesmo tendo a minha partida causado considerável mal-estar em sua comunidade e muitos problemas na sua organização. No entanto, em relação a diversos outros estudantes conhecidos meus, ele teve uma reação diametralmente oposta, fazendo o papel do professor traído, ferido e ciumento. Isto evocou enormes sentimentos de culpa neles, talvez um sinal de que estavam abandonando o mestre pelos motivos errados.
Brennan: Que seriam os motivos justos para abandonar um guru?
Feuerstein: Você levantou agora a pouco o assunto do assédio sexual nas mãos de um guru. Eu consideraria isto uma razão muito boa para terminar um discipulado. No geral, entretanto, eu diria que o motivo certo para uma pessoa poderia ser absolutamente errado para outra pessoa. Somente cada um pode dizer, o que é bom ou o que é ruim, considerando sua experiência pessoal. Se o guru fizer seu trabalho direito, o discípulo experimentará inevitavelmente momentos de rebelião e passará até mesmo por sentimentos de desespero. Olhe a história clássica do santo tibetano Milarepa, que mergulhou repetidamente no mais profundo desespero devido aos atos e palavras ásperas do seu professor, Marpa. Contudo, Marpa não provocou esses sentimentos em Milarepa com nenhuma motivação sádica, mas para ajudar seu discípulo a trazer à tona e superar suas limitações kârmicas inatas. Muitos poucos de nós são Milarepas, naturalmente. E demasiados estudantes ocidentais se levam muito a sério (e aos seus egos). Muitos parecem pensar que os gurus nos provocam problemas desnecessários. Mas a verdade é que os gurus têm um trabalho muito duro conosco, ocidentais.
Brennan: É possível que nós no Ocidente não estejamos preparados para seguir o discipulado tradicional sob um guru? Deveríamos talvez formular uma nova aproximação do espiritual, mais adequada ao nosso tipo de personalidade ocidental?
Feuerstein: Esta era a postura de Jung, e parece também ser a opinião de muitos outros terapeutas. É verdade que numerosos ocidentais encontram grandes obstáculos pessoais em seu discipulado com mestres orientais. E os mestres orientais nem sempre avaliam corretamente as dificuldades de seus discípulos ocidentais. Conseqüentemente houve muitos dramas recentemente, nos círculos espirituais que envolvem ensinamentos orientais e gurus. Eu penso que o drama é causado pelo fato de que os nossos egos e personalidades ocidentais são altamente cristalizados. Nas sociedades tradicionais, o indivíduo está muito mais fundido com os valores e os modos de ser do seu grupo particular e geralmente não está sujeito a o tipo de intensa auto-expressão, típica do nosso individualismo ocidental. Nós glorificamos o indivíduo e defendemos com unhas e dentes nosso direito inato a fazer o que bem entendermos. Freqüentemente nós ouvimos alguém justificar um ato repreensível dizendo que “deu vontade”, ou dizendo “não ligo para o que os outros pensam”. Poucos gurus orientais parecem compreender que este é não apenas um traço psicológico pessoal mas um problema estrutural que concerne à medula da nossa sociedade pós-moderna. Mas deixe-me responder a suas duas perguntas. Eu não penso que nosso excessivo individualismo nos impeça de fazer parte de um aprendizado espiritual tradicional. Só será mais difícil no começo. Entretanto, uma vez que nós adquirimos determinado grau de autocompreensão, poderemos negociar nosso tipo particular de egoísmo e crescer talvez mesmo mais rapidamente no trajeto espiritual do que alguém com um ego mais fraco que pudesse confundir a autotranscendência genuína com autonegação. Um guru que compreenda os assuntos importantes para seus discípulos ocidentais obviamente poderá ser muito mais útil para eles que um professor que seja negligente com suas peculiaridades individuais. Enquanto à formulação de uma aproximação espiritual nova para encaixar nas nossas necessidades ocidentais, eu sinto que tal aproximação crescerá naturalmente a partir dos nossos esforços atuais com diferentes práticas espirituais, sejam orientais ou ocidentais. Muitas tradições espirituais submeteram-se a mudanças significativas no passado, precisamente para adaptar-se às situações novas. O Tantra, por exemplo, desde o início viu a si próprio como uma reformulação de ensinamentos antigos, com a finalidade de servir às necessidades daqueles nascidos na atual era das trevas, kali-yuga.
Brennan: Então você diz que ensinamentos como os do Tantra vêm ao encontro das nossas necessidades espirituais atuais?
Feuerstein: O que estou dizendo é: aqui no Ocidente mal começamos a compreender os ensinamentos orientais. Há ainda muito que nós podemos e devemos descobrir sobre eles. Para fazer isso, precisamos colocar em prática os ensinamentos, ao invés de meramente ler livros bonitos sobre eles. Somente então poderemos começar a apreciar seu valor para o nosso momento atual. Ao mesmo tempo, as pessoas trazem vários graus de maturidade e de compreensão para suas práticas, e assim, alguns indivíduos irão se beneficiar mais dessa aproximação do que de outros. Eu acredito que, em longo prazo, se a nossa motivação for pura, seremos conduzidos àqueles ensinamentos que melhor preenchem as nossas necessidades. Mas mesmo o encontro com mestres e ensinamentos que não se revelarem inteiramente positivos pode ainda ser construtivo para nós. Nós apenas devemos aprender a estimar onde nós estamos no caminho espiritual, e a não colocar a culpa nos demais quando algo não funciona bem. Como praticantes espirituais devemos sempre evitar desperdiçar nossos esforços. O truque é aprender rapidamente com os próprios erros. E aí nos mantemos em movimento e crescendo.
Brennan: Em que direção se supõe que estejamos indo?
Feuerstein: Felicidade e paz maiores. Sabedoria e compaixão maiores. Simplicidade e sinceridade maiores. Todas estas palavras apontam à mesma circunstância, que foi descrita nas tradições espirituais de mil maneiras diferentes.
Brennan: Joseph Campbell recomendava para seus ouvintes: “corra atrás da felicidade.” É essa uma outra descrição possível?
Feuerstein: Bem, sim e não. Para ser ‘cri cri’, devo dizer que a felicidade não fica se movendo por aí, ou seja que nós não podemos ficar perseguindo-a para cima e para baixo. Ela está sempre presente. Nós devemos apenas aprender a parar de ofusca-la com nossas ilusões mentais. E, realmente, não é a ‘nossa’ felicidade. A felicidade é a mesma para todos os seres e todas as coisas. É a condição ou a realidade essencial de tudo. Mas é provavelmente isso mesmo o que Campbell quis dizer, de qualquer maneira. Mas as palavras de efeito podem ser algo bom se nos ajudarem a entender mais claramente os fatos.
Brennan: É evidente, pelos seus textos, que você é sensível à maneira em que usamos a língua. Você analisa freqüentemente termos específicos para trazer à tona seus significados escondidos ou perdidos. Você pensa que a língua é uma das formas através das quais nós não somente escondemos a nossa natureza verdadeira, mas a revelamos também?
Feuerstein: A língua esmiúça a realidade e no processo também a distorce. Isto se torna muito aparente quando alguém fala mais do que uma língua mãe ou viveu em outra cultura por um período prolongado. Isso acontece também porque alguns termos são impossíveis de se traduzir a outra língua. Não têm nenhum equivalente. Os esquimós têm mais palavras para a neve do que nós poderíamos imaginar, e os beduínos têm uma escala inteira dos termos para descrever seus amados camelos. Mas se fizer a tentativa de traduzir para suas respectivas línguas palavras inglesas como “photolithography”, “Darwinism”, ou “preoperational thought”, você precisaria um número de letras bem maior.
Entretanto, a linguagem não apenas obscurece a realidade, ela também a desvenda nos tornando cientes de nossos hábitos lingüísticos e de como estes velam a realidade. Alguns cientistas pensam no dia em que terão uma Teoria de Tudo, mas esta é uma daquelas ilusões infelizes às quais as mentes inteligentes podem sucumbir. É uma ilusão porque cada teoria está baseada em algum tipo de linguagem, mesmo que seja puramente matemática. E a linguagem será sempre incompleta, se comparada com a realidade. É uma rede moldada sobre a realidade, e como toda rede, é finita, nós não poderemos nunca pegar o grande peixe da realidade. Somente poderemos “conhecer” a realidade quando transcendermos todo conhecimento, toda linguagem e até a própria mente e nos transformarmos na pura realidade, em toda sua nudez, que é a nossa natureza essencial. Estritamente falando, esta constatação não é um ato cognitivo. A mente é deixada para trás. Nós incorporamos nosso estado verdadeiro de ser por um momento ou, no caso dos grandes mestres iluminados, permanente e irrevogavelmente.
Brennan: Mas então os mestres iluminados começam falar sobre aquilo do que não se pode falar…
Feuerstein: …Sim! Esse é um outro paradoxo maravilhoso. Fora a plenitude ou o vazio da sua visão, os grandes mestres se sentem movidos — ou pelo menos alguns deles o fazem — a se comunicar conosco, que estamos ainda aprisionados nas nossas percepções limitadas da realidade. Eles poderiam ficar calados, mas raramente o fazem. Daqueles que o fazem mal ouvimos falar, mas seu silêncio é trovejante. São balizas da realidade, abram-se suas bocas ou não.
Naturalmente, no discurso sobre a realidade final, os mestres devem recorrer à língua, momento em que estão inevitavelmente sujeitos às mesmas limitações lingüísticas que incomodam a pessoa ordinária também. Mas, eu diria, os mestres iluminados são melhores em segurar a língua porque viram através da rede da ilusão, e é por isso que suas palavras podem nos inspirar, não obstante as limitações inerentes à linguagem. Algo a mais se comunica através das suas palavras. E este “mais” é uma forma da transmissão espiritual, um tipo de imposição que surge da própria condição iluminada e que toca com suas faíscas nosso ser. Mas para aproveitar verdadeiramente as palavras dos mestres iluminados, nós devemos aprender a ouvir com os ouvidos abertos, com o coração aberto e com a mente aberta.
Brennan: Uma pergunta final. Por que, após anos estudando e praticando a tradição hindu, você começou a praticar buddhismo tibetano?
Feuerstein: No verão de 1992 eu fui ver a Mãe Meera, na Alemanha, a quem considero um grande canal de luz. Eu tinha experimentado sua presença espiritual durante minhas meditações por três meses mais ou menos, e vinha sentindo uma necessidade crescente e imediata de encontrá-la. Eu fui com as maiores expectativas e esperanças. Eu fiquei duas semanas na vila pequena perto de Frankfurt, Alemanha, onde – uma mulher nascida na India – decidiu misteriosamente viver. Quando eu voltei para casa minha vida começou a mudar em vários aspectos.
No entanto, eu não considero a Mãe como um guru no sentido exato da palavra. Eu nunca esperei nada mais do que a sua benção. Ela não negou nada para mim, e eu tive o coração aberto como resultado dos meus quatro darshans com ela. Um dos meus desejos internos era estar com alguém que pudesse me ajudar nas minhas praticas de meditação e que pudesse vestir uma aura luminosa, o que os buddhistas chamam de um amigo espiritual, ou kalyana-mitra. Eu esperava também por um curador que tomasse conta de alguns dos problemas de saúde que eu tinha naquela época. Encontrei os dois na forma do meu amigo e mentor Lama Segyu Choepel Rinpoche, um lama (tulku) brasileiro reencarnado na tradição buddhista tibetana, que foi reconhecido formalmente como sendo da linhagem dos Segyupas, um ramo da ordem de Gelugpa.
No início eu achei estranho que meu mentor viesse a ser um buddhista, mas eu nunca experenciei nenhuma dificuldade intelectual pelo fato da minha pratica espiritual, sádhana, ter assumido um sabor distintamente buddhista. Até onde sei, a prática espiritual é prática espiritual. Eu sempre considerei Buddha e os seus ensinamentos com muito respeito, e me sinto muito afortunado e feliz de poder ter o apoio de um lama tão capaz e gentil, que, sendo um ocidental, pode apreciar as mudanças peculiares que acontecem nos ocidentais que praticam seriamente o sádhana buddhista. De fato, aprecio cada vez mais o enorme valor de alguém que representa uma linhagem inteira de professores e é um instrumento de transmissão espiritual. Mas não há nada difícil em escrever sobre isso. Sim, difícil é tentar entender sem ter a experiência direta.
Eu estou praticando basicamente a medicina de Buddha, que é uma prática espiritual muito bonita, que envolve aprender como ser um curador presente no mundo. De qualquer forma, minha vida tem se movimentado em círculos, quando eu era jovem tinha uma habilidade natural de curar, que ficou dormente pois eu estava com o foco no meu trabalho de desenvolvimento intelectual. A cura agora faz parte integral das minhas aspirações diárias de obter iluminação para o bem estar de todos os seres. Eu acredito que ações de compaixão – equilibradas com sabedoria – são componentes muito importantes na vida espiritual. Isso abre o nosso coração e nos coloca em contato com a felicidade que ilumina a existência e nos dá força e coragem para continuar o caminho espiritual.
Copyright © 1998 Georg Feuerstein, Yoga Research and Education Center. Todos os direitos reservados.
Edward Brennan, Ph.D, é professor de estudos religiosos na Universidade do Estado de Cleveland, Ohio. É autor do livro A Reforma Radical do Cristianismo e de numerosos artigos acadêmicos.
Georg Feuerstein, Ph.D, é diretor fundador do Yoga Research Center (Centro de Pesquisa do Yoga) e autor de muitos livros, incluíndo A Tradição do Yoga, Enciclopédia Shambhala de Yoga, e Em busca do Berço da Civilização: Nova Luz sobre a Índia Antiga, em co-autoria com Subhash Kak e David Frawley. E-mail: Yogaresrch@aol.com
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