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Eu é uma porta. Parte 1: Rāmaṇa Maharshi

Uma das citações mais ouvidas no caminho da iluminação seja talvez a do ‘abandono do ego’. Mas o que se quer dizer com isso? Não se fala aqui da forma ‘bruta’ do ego, isso levaria a uma porta escancarada. Com efeito, a forma egoísta e evidente, como no exemplo ‘primeiro eu e o resto que se dane’, é na verdade por todo mundo rejeitada (em todo caso quando isso vale pra outra pessoa) mesmo que ele não se encontre num caminho espiritual.

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Eu é uma porta: Rāmaṇa Maharshi

Uma das citações mais ouvidas no caminho da iluminação seja talvez a do ‘abandono do ego’. Mas o que se quer dizer com isso?

Não se fala aqui da forma ‘bruta’ do ego, isso levaria a uma porta escancarada. Com efeito, a forma egoísta e evidente, como no exemplo ‘primeiro eu e o resto que se dane’, é na verdade por todo mundo rejeitada (em todo caso quando isso vale pra outra pessoa) mesmo que ele não se encontre num caminho espiritual.

Todo mundo sabe aonde o puro egoísmo pode levar, de modo que quando se diz que esse ego é um obstáculo, isso não é um conselho muito especial. O abandono desse ego não é suficiente para o caminho da libertação.

Não se fala tampouco do termo ‘ego’ como é usado em algumas colocações psicosológicas quando se fala de alguma forma de maturidade, como indicação de uma forma sadia de libertação das figuras paternas, códigos de grupo, etc., é alcançada.

Semelhante abandono do ego não é necessário de forma alguma, visto que se trata apenas de uma coisa prática (e uma coisa positiva; e com freqüência o fator pelo qual o ego bruto, com suas infantis características egoístas, não tome as rédeas da situação). Para se evitar mal entendidos, no máximo, você poderia iniciar uma discussão para o desenvolvimento de um novo termo aqui.

O ego, sobre o qual os mestres no caminho da libertação estão falando, como sendo por excelência o obstáculo, é em fato uma atividade do pensamento, um você mesmo em forma de pensamento que se identifica com um personagem que atua, e por isso pode ser visto e julgado. Um personagem que é ‘mais’ (ou ‘superior’) que outros personagens, ou exatamente ‘menos’(ou ‘inferior’) – e na maioria das vezes numa combinação alternativa de ambos.

Ramana

Em fato, esse ego existe pelo intermédio da comparação. Consciência de si mesmo é também uma indicação para isso, com a inclusão nessa palavra do freio da espontaneidade (especialmente aquilo que no adjetivo inglês ‘self-conscious’ está incluído).

Trata-se aqui de uma construída separação interna, o hábito vicioso de ver a partir de uma visão critica uma outra parte desse mesmo ego, e a de atacá-lo com opiniões depreciativas.

A característica principal do ego é o apego a essas opiniões sobre si mesmo, o que leva a uma construção de uma imagem de si mesmo que não quer ser dissolvida, mas justamente quer continuar. Isso é o que nos chamamos de ‘personalidade’, a continuação de uma imagem de si mesmo.

Toda atividade consciente do corpo como um todo, o pensar e o sentir giram em torno da personalidade por intermédio da pressuposição de que existe um ‘eu’ que faz uma coisa, e que essa é uma entidade constante e permanente.

Eu prefiro chamar isso não de ‘ego’ mas de ‘o eu’, por causa da possibilidade disso ser facilmente reconhecido como algo mais sutil que o ego bruto acima mencionado, mesmo com a constante interação de ambos (com a diferença mais importante de que o ego bruto é aonde outros reclamam de você, e desse ‘eu’ é principalmente você que sofre com você mesmo).

Apesar da subtilidade é então esse ‘eu’ aquilo do quals Budistas e Vedantas concordam entre si que, se você almeja libertação, deve ser abandonado. E aonde Budistas e Vedantas não concordam é sobre qual caminho e que terminologia precisa ser esclarecida em como a crença nesse ‘eu’ pode perder sua forca.

Budistas afirmam com naturalidade: “Não existe nenhuma entidade, nenhum ‘ser’ ou ‘eu’, apenas uma seqüência causal de processos psíquicos e corporais condicionados” – e eles não falam mais sobre um ‘eu’ (e desaconselham o falar em termos de um ‘eu’; como no exemplo de uma citação como: “Considerar a verdadeira natureza dessa consciência como ‘eu mesmo’ ou ‘eu’, é em fato uma visão limitada, uma confusão, um engano”. “[1].

O mais engraçado agora é que mestres da Advaita Vedanta concordam total e completamente com os Budistas sobre a não existência do ‘eu’-entidade, mas apesar disso continuam falando em termos de ‘si mesmo’ e ‘eu’, mesmo até para a indicação dos altos níveis de realidade. Por que eles fazem isso?

Tentaremos esboçar uma resposta através das mãos dos ‘Três Gigantes’ do século vinte Advaita, os três mestres mais importantes: Rāmaṇa Maharshi, Krishna Menon (Ātmananda) e Nisargadatta Maharaj.

Todos os três usam a palavra ‘eu’ como um termo para indicação do princípio mais elevado (ou quase mais elevado), respectivamente ‘Eu, Eu’, ‘Eu-Princípio’ e ‘Eu-sou consciência’. Com a visão da reprovação deles de ‘o eu’ como uma realidade, o que pode facilmente aqui causar mal entendidos levados pelo uso lingüístico!

Vamos primeiro escutar o mais velho dos três, Bhagavān Śrī Rāmaṇa Maharshi (1879-1950). Ele é, sem sombra de dúvidas, o que teve mais influência – não é por nada que ele é chamado por muitos de ‘o sol’ [2].

Ele se transformou no símbolo vivo da Advaita, na possibilidade de ainda nessa vida encontrar-se libertação. E é também principalmente desde o primeiro encontro com ele, nos anos trinta, que os ocidentais puderam efetivamente experenciar em realidade a realização de Si Mesmo.

Tudo em seu ensinamento procedeu, em fato, sobre o verdadeiro significado do ‘eu’. O ato de se fazer a pergunta ‘Quem sou eu?’ foi aquilo que todos que o procuraram foram convidados por ele a descobrir. Ele considerava isso como a verdadeira forma de investigação de si mesmo (vichara).

Ele mostrava que a real tomada interna dessa pergunta leva a dissolução de pensamentos e identificações, e ele na maioria das vezes se limitava em efetivamente fazer cada um experenciar os efeitos da pergunta, sem muitas explicações.

E mesmo assim Rāmaṇa Maharshi compreendia que a experiência-em-si para a maioria das pessoas não era apenas a parte existente necessária. A correta interpretação da experiência é da mesma importância. Por causa disso ele dava repetidamente explicações super detalhadas sobre a relação entre ‘o eu’ e aquilo que em realidade é o ‘Eu’, o definitivo ‘Eu’.

Ele dizia que ‘o eu’ (ahaṅkāra), ou como ele frequentemente o chamava de o ‘eu-pensamento’ (ahamvṛtti), precisa ser morto, destruído. Eu sempre tive problemas com esse modo de falar, porque isso nos parece convidar a combater uma batalha.

Eu acredito que os seres humanos, de modo geral, já enfrentam suficientes conflitos dentro de si, então eu continuo acreditando que essa terminologia agressiva requer bastante esclarecimento.

Reforço das nossas brigas interiores não pode ser o objetivo aqui, especialmente quando se almeja paz.

Ramana falava também de forma diferente. Quando alguém perguntava como esse ‘eu’ poderia ser eliminado, ele dizia, por exemplo: “Você não precisa eliminar o ‘eu’ impostor. Como é possível ‘eu’ eliminar a si mesmo? Tudo que você precisa fazer é encontrar a sua raiz, e se aprofundar nesse ponto.

Uma outra vez ele se referia a essa morte: “É possível o ‘eu’ concordar com sua própria morte?” Se você procura o ‘eu’ você vai descobrir que ele não existe. Esse é o modo de se ‘eliminá-lo’. ”3 E: “Como pode se matar algo que não existe?”4

‘Você descobrirá que ele não existe’. Isso consta repetidamente como sendo o centro da argumentação. E ao mesmo tempo Ramana fala frequentemente sobre o ‘eu’, e o descreve como se ele existisse, de modo que você começa a se perguntar: ‘ mas o que existe de fato, e o que não existe?’ O próximo trecho esclarece esse ponto nitidamente.

“Assim como uma faísca pula do fogo, nasce a individualidade de dentro do Ser Absoluto. Essa faísca é o que chamamos de ‘eu’. Numa pessoa que não tomou Consciência de si mesmo (a tão chamada a-jnani) o ‘eu’ se identifica com um objeto, ao mesmo tempo em que ele aparece.

Sem semelhante associação com um objeto ele não tem condições de continuar a existir. Essa associação é exatamente o que chamamos de ‘ignorância’ (ajnana), ‘falta de consciência’, e é nessa falta de consciência (da irrealidade da sua associação com o objeto) que precisamos concentrar toda nossa atenção para que, então, ela encontre o seu fim.

Se a tendência do ‘eu’ em se mostrar como um objeto for eliminada, permanece o ‘eu’ em sua forma pura como o restante, que se discorre em unidade para sua Fonte.”5 Se abandonamos novamente do uso da palavra ‘morte’, então fica claro como sendo o ponto crucial a tão falada ‘associação’, a tendência do ‘eu’ de se mostrar como um objeto. Então é esse o engano.

O que é associado com o que? O que ou quem comete esse engano? Ramana Maharshi fala repetidamente sobre a associação como sendo um ‘emaranhado’, um ‘nó’ (granthi) dentro do Coração.

“Embora o corpo, que não tem percepção (jada), a partir de si mesmo não pode dizer ‘eu’, e Sua Percepção (Sat-Chit) que não conhece nascimento e morte, aparece no meio desses dois uma coisa como um ‘eu’, que tem o corpo como ponto de referência, e se identifica com ele.

Isso é o que se chama de o ‘emaranhado da Percepção com a falta de percepção’(chit-jada-granthi).”6. E, ele inclui ainda, isso é mais ou menos a mesma coisa que o ‘individuo’ (jiva), ‘ego’ (ahamkara), ‘capacidade de pensar’ (manas), etc.

Esse emaranhado precisa ser cortado, diz Rāmaṇa. Mais uma vez: o que se quer dizer aqui com esse aparente ato de violência? Em fato, consta repetidamente que o que se está falando aqui é de puramente olhar.

Simplesmente olhar. Você sempre pensou que você olhava, mas agora você é convidado a olhar como se você olhasse pela primeira vez. Então o que existe é apenas um encontro, ou não. Então você vai olhar aonde esse ‘eu-pessoa’ (isso é o que se quer dizer com emaranhado) se encontra.

Aonde eu posso achá-lo? Rāmaṇa usava para isso um exemplo muito bonito.

“O ‘eu’ é uma intocável associação entre o corpo e Consciência pura. Ele não é real. Enquanto você não olha com precisão ele permanece a te causar problemas. Mas quando você joga toda sua atenção para ele, ele consta como não existente. Existe uma história que ilustra esse fato”.

“Segundo a tradição um casamento hindu dura em média de cinco a seis dias. Aconteceu uma vez que num casamento a família da noiva achou que um estranho era uma testemunha da outra família, e por isso ele foi tratado com muito respeito”.

“Quando a família do noivo viu isso, pensou imediatamente que esse estranho era uma pessoa importante da família deles, e o trataram por fim com o mesmo respeito e reverência. O estranho se divertiu à vontade. Ele tinha se dado conta da situação”.

“Quando por um momento um membro da família do noivo foi perguntar quem era esse convidado e saíram a sua procura, o estranho sentiu o cheiro de problemas e bateu as pernas. Da mesma forma funciona com o ‘eu’. Quando você o procura de verdade, ele desaparece”. [7]

Então, porque Consciência se associa com falta de consciência, matéria inerte, aparece de dentro da Consciência uma faísca que ao pular comete o engano de se prender a essa associação, a esse apegamento, – isso é o que se chama de ‘apego’.

Através do olhar com precisão se esse apego é real chega-se a conclusão de que não existe algo assim. O ‘eu’ existe então pelo grau da falta de questionamento.

Essa é, em principio, uma forma de se abordar isso. Esta é a ênfase do término de uma coisa (daí o uso da palavra ‘destruição’), o ver da não-existência de algo.

Existe também uma outra forma, e, no que eu descobri ao longo do trabalho de tradução do Rāmaṇa Upaniṣad , e a meu ver que contém algo mais essencial – talvez o mais essencial. Na terminologia de que primeiro algo precisa ser destruído (‘visto’, ‘morto’ ou como colocado isso é colocado em palavras) existe a possibilidade de interpretação disso como um acontecimento no tempo, numa seqüência.

‘Primeiro isso, então sim livre’, parece a mensagem. Mas o que ficou claro pra mim é, em fato, que Rāmaṇa dá igual ênfase a aquilo que está sempre presente, então agora já em mim presente e acessível, o aspecto de gerar luz a partir de si mesmo dentro do ‘eu’.

Apesar do emaranhado pelo qual Consciência se misturou com seu objeto, o corpo físico, Consciência-por-si mesma se mantém continuamente pura, não emaranhada com o que quer que seja.

E o convite é agora em reconhecer e constatar que ‘eu’ em fato agora já está presente por intermédio dessa Consciência-por-si-própria. “O ‘eu’ funciona como o emaranhado do Ser, que é mera Consciência, com o corpo físico, que é lento e ‘sem percepção’ (jada).

O ‘eu’ é por causa disso chamado de chit-jada-granthi. Em sua busca na Fonte do ‘eu’-pensamento (aham-vriti) você deve se prender com todas as forcas ao essencial aspecto-Consciente do ‘eu’: desse modo a busca tem que levar a realização da pura Consciência do Ser.” [8]

O aqui chamado ‘eu’-pensamento (aham-vṛtti) é por Ramana também chamado de aham-idam: a combinação de ‘eu’ (aham) com um objeto, de algo em que se pensa e ‘isso’ (idam).9

Aham-idam consiste então em pura Consciência, ou ainda puro ‘eu’, e tudo aquilo em que Consciência está consciente de, o que quer dizer tudo aquilo que é objeto do ‘eu’. Esse objeto (idam) é por fração de segundo modificado por um outro.

Então dentro desse ‘eu’-pensamento movimenta-se continuamente uma alternação de ‘issos’, aonde o ‘eu’ tanto se identifica com uma quantidade de ‘issos’ (‘eu sou isso’, aham-idam), como também se separa de uma quantidade de ‘issos’ (‘eu e isso’, do mesmo modo aham-idam).

A combinação aham-idam leva idam sempre para a multiplicidade, uma constante alternação, mas aham permanece sempre o mesmo. Sempre singular. Esse é um ponto importante.

O que nos chamamos ‘objeto’ (ou trata-se agora de um objeto material, que pode ser sentido, ou um objeto psíquico, um pensamento) é em fato, sempre, uma coexistência de sujeito e objeto: adam e idam (‘eu’ e ‘isso’).

Eu estou agora com um determinado objeto; agora eu estou com o próximo objeto; e agora eu estou com um outro objeto, etc. Sempre aham-idam. Sempre essa mistura, o emaranhado (que em fato é o mesmo que o acima mencionado cit e jaḍa). E aqui dentro permanece aham (‘eu’) sempre o mesmo.

Com outras palavras, em todos os segundos que nõs imaginamos que apenas unicamente objetos estão sob nossa atenção, está presente ao mesmo tempo ‘eu’, como sujeito (atenção: exceto quando ‘o eu’, em forma pessoal, que em fato é o objeto, e que aparece temporariamente). Sem o sujeito não pode existir um objeto.

Não aparece nada. O conselho de Rāmaṇa é o seguinte: permaneça sempre junto ao sujeito, ele está o tempo todo presente, – mesmo que sua atenção continuamente seja sugada na direção de objetos. Não tem problema.

No instante em que você percebe que sua atenção se dispersou você pode imediatamente no próprio objeto de atração reconhecer o sujeito (o aspecto luminoso que sua presença irradia), ele está sempre presente.

Ele existe agora e ininterruptamente. Nunca ele está ausente. Permaneça com aham, ‘eu’. Cada vez mais puro, cada vez menos disperso por opiniões, como ‘eu sou isso’, ‘eu estou indo muito bem’, ‘eu não tenho valor’, etc.

E aqui também dentro dessas opiniões você reconhece a presença pura de ‘eu’, sempre sujeito, a partir de si mesmo irradiando luz ao que quer que seja. A partir de si mesmo?

Sim, a partir de Si Mesmo, porque quanto mais você procura a fonte de ‘eu’, mais você verá que ‘eu’, em fato ‘Eu’, existe, completamente por si mesmo, livre de objetos, irradiante, ininterrupto ‘Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu’.

Então, como eu escrevi em uma nota nesse artigo, “‘eu’ é agora presente, permanente e irradiante – na verdade emaranhado a diversos ‘issos’, mas isso não diminui em nada sua irradiação, sua presença luminosa.

Os ‘issos’ precisam apenas ser reconhecidos como tal ou deixados de lado, de modo que eles possam se dissolver em puro ‘eu’. E então o efeito da pergunta ‘quem sou eu?’ é também o de que todos os ‘issos’ desaparecem e você experiencia um vazio, uma ausência de tudo que é objetivo.

Isto é ‘eu’ na forma pura da palavra. Permanecendo aqui você cai em Aham sphurana, a primeira vibração-do-‘Eu’, a fonte de toda a manifestação.”10

Ramana empregava repetidamente a expressão Aham sphurana como indicação para a experiência de ‘Eu, Eu’ (Aham Aham), [11] a manifestação mais original de ‘Eu’.

Sphurana é algo como o primeiro jorro, é a vibração de existência ainda pura e total. Aham spuhurana é presença contínua, ininterruptamente fresca e nova, e isso é ainda também exatamente o que ‘Eu’ sempre sou. Em realidade eu nunca estou misturado ao que quer que seja.

Eu acredito que essa abordagem é essencial. Do contrário nasce um mal entendido de que existe um ‘eu’ que na verdade é ruim, e que precisa ser destruído, depois disso restará uma terra sem dono, da qual um novo e limpo ‘Eu’ nascerá. Em verdade não existem dois eus, nenhum ‘eu’ precisa ser substituído por um outro ‘Eu’.12 ‘Eu’ é sempre o mesmo, sempre irradiando luz e sempre presente.

O único ponto aonde o termo destruição de Ramana reporta é o ‘eu-pensamento’ (aham-vritti), o emaranhado de ‘eu’ com um objeto (aham-idam), a tendência do ‘eu’ de fazer conta de que é um objeto.

Isto já consta na quarta citação de Ramana (veja nota 5) que é mencionada nesse artigo; aonde ele utiliza a terminologia “no fim ‘eu’ permanece em sua forma pura” como descrição do término do emaranhado. Ele não diz: “nascerá’ um novo ‘Eu’”.

Algo existe agora e sempre existiu, e isso fica no fim em sua forma pura: ‘Eu – Eu’. Em algum ponto ele afirma: “O ‘eu’ estremece a ilusão de ‘eu’ e permanece no fim, mesmo assim, como ‘eu’. Este é o paradoxo da Realização de Si Mesmo.

Aquele que tomou Consciência de Si Mesmo (o jnani) não vê aqui nenhum conflito.”13 E continuando: “Somente a destruição do ‘eu-pensamento’ é Liberdade. Mas esta pode somente se tornar realidade através da manutenção continua da atenção em ‘Eu, Eu’. (…)

Existe o tempo todo apenas um ‘eu’; o que de tempo em tempo aparece é o ‘eu-pensamento’ enganador de si mesmo – enquanto o ‘eu’ intuitivo é permanência contínua, luz irradiante a partir de si mesmo, o que quer dizer, anterior mesmo que ele e a sua manifestação”. [14] (o relevante aqui é o uso do I capital na tentativa de indicar o puro ‘Eu’ em Português, não é suficiente.

O uso da letra maiúscula é uma tentativa de mostrar uma diferença, e aqui consta no fim de tudo que existe apenas um ‘eu’, sempre o mesmo e imutável. No Tamil, a língua de Ramana, não existe o uso da letra maiúscula, e em Inglês ‘I’ é sempre ‘I’).

Pela tomada de conhecimento do conselho de se limitar toda a atenção ao mero sujeito, o aspecto consciente, com exclusão dos objetos, pode nascer a pergunta: Mas essa ênfase de atenção para o ‘puro-eu’ não é um pouco estranha para uma abordagem que se considera não dualista?

É que o completo ponto de partida de duas realidades (Consciência e matéria inerte) já soa dualista, e o conselho em concentrar a atenção total e completamente a uma dessas duas realidades, pura Consciência ou puro ‘eu’ (ou ‘Eu’, ‘Eu, Eu’, Sujeito), é em fato a exclusão de uma coisa, e isso você pode, apesar de tudo, efetivamente chamar de dualista.

Não caímos aqui na grande armadilha da Advaita, aonde você parece ser encorajado a se separar da sua vida diária como uma pessoa normal de carne e osso? Como pode uma abordagem tão dualista levar a não dualidade?

Sobre isso Ramana diz alguma coisa como que não existe uma outra forma que não seja a de evitar a atenção para a multiplicidade de pensamentos e sentimentos, para tudo que é objetivo, mas efetivamente e exclusivamente enquanto você ainda vivencia o objetivo como separado do sujeito.

Então, enquanto você olha com olhos dualistas, você deve exclusivamente enfatizar o aspecto da consciência. “Primeiro você tem que discernir consciência (chit) de ausência de percepção (jada), e exclusivamente ser consciência.

Apenas depois você pode começar a perceber que falta de consciência não está separada de consciência”.15 Em: “Conheça primeiro o sujeito, pergunte-se apenas depois sobre o objeto. Em fato o sujeito contém o objeto. Esse aspecto particular é um aspecto global.

Veja primeiro você mesmo e depois os objetos.”16 Em outras palavras, ‘consciência e matéria inerte não são duas realidades; essa é apenas uma forma de falar que oferece certo reconhecimento `a aquele que busca, o que pode levá-lo a experienciar por si mesmo que ‘matéria’ está contida no conhecimento da sua própria natureza.

“‘Eu’ (aham) e ‘isso’ (idam) apresentam-se juntos agora, mas ‘isso’ está contido em ‘eu’ – eles não existem separados um do outro. O ‘isso’ precisa dissolver-se no ‘eu’, e com ele completamente formar um. O ‘eu’ que resta é o ‘eu’ real.”17

Esse ‘eu’, sempre presente e real, é ‘Eu, Eu’, aquilo que resta quando por intermédio da pergunta ‘quem sou eu?’ a combinação ‘eu-isso’ é purificada de todos os ‘issos’.

O ‘Eu, Eu’ restante pode apenas se manifestar (sphurana) quando a ilusão de todos os ‘issos’ desaparece. Esse sphurana, essa primeira forma de manifestação, não se trata da manifestação no uso comum dessa palavra. Não é uma coisa aonde existe uma multiplicidade.

Você não pode fazer um objeto disso. Você pode apenas juntar-se a isso, através do reconhecimento. Eu, Eu, Eu, contínuo, sem forma, sem conteúdo, sem som ou cor. Mais que isso não há nada que fazer, nesse ponto você deve permanecer e aqui repousar.

Tudo aquilo que eventualmente é mais ‘profundo’18 o ‘Absoluto’, ‘Iluminação’ ou outro termo qualquer, é graça e misericórdia. Aprofunde-se nesse ponto, ‘Eu, Eu’; aqui termina sua busca.

Então, como resposta a pergunta feita anteriormente “por que mestres Advaita utilizam ainda o termo ‘eu’ como indicação para uma coisa real?” pode-se dizer: porque ‘eu’ está tão perto, porque ele é aquilo que está mais próximo de tudo que existe.

Todo mundo reconhece isso como totalmente familiar, completamente como ‘si mesmo’. O que todos procuram é realização de si mesmo: você tem que ver a verdade por você mesmo e ‘eu’ é aquilo que está sempre presente e que se mostra como a chave.

A chave não está em nenhum outro lugar fora de você, e nunca precisa ser procurada. Você não precisa ir a lugar algum para encontrar e experimentar ‘eu’. Aonde quer que você vá você está lá. ‘Eu’ está presente, agora. ‘Eu’ é uma porta, e ela está sempre aberta.

॥ हरिः ॐ ॥ 

Notas

1. Tsoknyi Rinpoche, Drubwang, Carefree Dignity. Discourses on Training in the Nature of Mind. Kathmandu: Rangjung Yeshe, 1998; p. 31.

2. Talks with Sri Ramana Maharshi. Três volumes em um. Tiruvannamalai (Tamil Nadu): Sri Ramanasramam, 1955; nr. 197. A partir daqui apenas indicado como Talks.

3. Talks, nr. 615.

4. Talks, nr. 328.

5. Talks, nr. 286; veja também a divergente tradução em Maharshi’s Gospel . Tiruvannamalai: Ramanasramam, 1939; 6a edição, 1957; p. 26-27.

6. Ulladu Narpadu (os Quarenta Versos), Verso 24. Traduzido por Sri Sadhu Om, em seu The Path of Sri Ramana ;Part One Tiruvannamalai: Sri Ramana Kshetra, 1971; p. 60.

7. Talks, nr. 612.

8. Maharshi’s Gospel; 6a edição, 1957; p. 82.

9. Para o uso do termo aham-idam por Ramana, veja Talks, nrs. 177, 277, 314, 323, 363, 569, 577, 589 e 626. É recomendado a leitura sobre o tema aham e idam na tradição Advaita: Michael Comans, The Method of Early Advaita Vedanta. Delhi: M. Banarsidass, 2000; p. 425-436.

Aqui ele fala do estilo de Padmapada, um discípulo de Shankara. Padmapada que, foi o primeiro a usar essa específica forma lingüística, usava ao invés de aham também an-idam (‘não isso’). Aham-idam aparece como termo também na tradição Kashmir Shaivism; nesta isso é descrito como a unificação do Absoluto (Aham) com toda forma de manifestação (idam).

10. Rāmaṇa Upaniṣad, p.170 (nota 4).

11. Sobre o termo ‘Eu, Eu’ (Aham Aham): eu considero esse termo melhor que o conhecido termo Ser (em inglês Self) porque ‘Eu, Eu’ fala constantemente na primeira pessoa, e o termo ‘o Ser’ fala em terceira pessoa, de modo que o ‘Ser’ parece indicar alguém que está num lugar distante.

É possível que Rāmaṇa tenha pego esse termo emprestado da Vivekacūḍamaṇī ; o termo aparece nos versos 137 e 219. Ramana traduziu esse texto para o Tamil desde sua juventude.

Rāmaṇa ia tão longe no seu entusiasmo sobre a idéia de Aham Aham que em sua tradução ele escrevia Aham Aham (em Tamil Nan Nan) aonde no texto original em Sânscrito apenas Aham (ou nada) estava; veja os versos 127, 213, 214, 381, 409 e 536. A melhor tradução em inglês de Viveka-chudamani é no meu ver a de Anthony J. Alston, The Crest Jewel of Wisdom. Londres: Shanti Sadan, 1997; p. 86 e 135.

12. Mesmo David Godman, comentador de Ramana, que, em geral merece meu respeito por suas interpretações, usa a visão de ‘substituído’. Veja seu artigo “‘I’ and ‘I-I’: a Reader’s Query”. No The Mountain Path; Vol. 28, nr. 1&2, Junho 1991; p. 79-88 (veja p. 80 e 85 em particular). Este é um dos melhores artigos, talvez o melhor, que eu conheço sobre os textos de Ramana.

13. Talks, nr. 28.

14. Talks, nr. 139.

15. Talks, nr. 192.

16. Talks, nr. 199; veja também nr. 310.

17. Talks, nr. 626.

18. ‘Profundo’ fala aqui do comportamento daquele que busca pode ser continuado. David Godman comete, no meu ver, um engano na nota 12 do artigo mencionado, que tem a ver com isso. Na minha forma de ver ele tenta inutilmente fazer um discernimento entre ‘Eu, Eu’ e ‘o permanente Ser’.

Ambos (mesmo que eles sejam usados como respectivamente ‘primeira manifestação’ e a ‘Fonte dessa manifestação’) formam a capacidade de discernimento, em outras palavras, como se acontecesse um processo depois de ‘Eu, Eu’, então isso não é mais uma coisa da pessoa.

Deixar-se levar por Aham sphurana significa que mesmo a capacidade de discernimento, até esse momento nosso instrumento mais útil, aqui pode ser abandonada. Isso nos serviu para vermos a diferença entre ‘eu’ e ‘isso’, mas aqui termina sua função. Apenas entrega a permanente Realidade é aqui o adequado.

॥ हरिः ॐ ॥

Continue a leitura aqui,
com a segunda parte deste artigo

॥ हरिः ॐ ॥

Philip é professor na tradição do Advaita Vedanta, na Holanda. Este texto foi originalmente publicado em holandês neste site. Traduzido para o português por Ana Ferraiuoli. Reproduzido com autorização do autor e da tradutora.

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subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

8 respostas para “Eu é uma porta. Parte 1: Rāmaṇa Maharshi”

  1. Gilmar,
    Apenas agora leio sua pergunta e comentário. Já fazem muitos anos e posso imaginar que você já encontrou a reposta para sua pergunta. Este texto faz parte do livro \\\’eu é uma porta\\\’, escrito por Philip Renard, publicado na Holanda em 2008 – e deve ser publicado no Brasil ainda este ano (2017)!
    Namasté

    1. Pedro, em qual canal posso ficar sabendo da publicação em português-BR, do livro Eu é uma porta, de Philip Renard? Gostaria muito de adquiri-lo. Obrigado. Aldrin

    2. Pedro, em qual canal posso ficar sabendo da publicação em português-BR, do livro Eu é uma porta, de Philip Renard? Gostaria muito de adquiri-lo. Obrigado. Aldrin

  2. Muito profundo ensinamento; gostaria de ressaltar que posso perceber esse eu ilusorio mas ainda nao consigo perceber que o sujeito e o objeto sao a mesma coisa,,,
    Muito obrigado

  3. Uai, verifiquei que quase todas as postagens que aparecem à direita, foram escritas por Pedro Kupfer. E do Philip, não tem mais? E as partes 2, 3, 4, 5, 6, 7…, quando teremos?

    Abraço.

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