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Eu é uma Porta. Parte 2: Nisargadatta Maharāj

Nisargadatta é nos meus olhos um dos maiores mestre do século XX. O que o torna tão grande é principalmente sua enorme capacidade de tudo que lhe foi perguntado mostrar como sendo construído de conceitos, e através de sua inutilidade fazê-los desmoronar até que eles cheguem ao chão. Não importa o que o aluno ou discípulo sugeria, Nisargadatta mostrava que aquilo se reduzia a um apoio a idéias, e ele indicava a origem delas, a semente delas.

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Eu é uma porta: Nisargadatta Maharāj

Na primeira parte de ‘‘Eu’ é uma porta’, esbocei o marcante fenômeno de que no Advaita Vedānta, o termo ‘eu’ fica mantido até para indicar os níveis de realidade mais elevados, os níveis que vão ‘além da pessoa’.

A ajuda aqui contida consiste pelo intermédio de que com a manutenção do termo fica indicado que o sentimento ‘eu’, que é tão natural para a vivência da pessoa, em fato é mais profundo que a pessoa que temporariamente aparece, e que esse sentimento está presente continuamente, também agora.

Então, não é necessário primeiro uma coisa ser retirada ou separada para se fazer contato com a Verdade que você é. Na primeira parte eu falei da abordagem de Śrī Rāmaṇa Maharshi e agora eu quero levar a atenção para a verbalização de Śrī Nisargadatta Maharāj (1897-1981).

Nisargadatta é nos meus olhos um dos maiores mestre do século vinte (e talvez até de todos os tempos, mesmo sendo isso uma coisa muito difícil de se julgar).

Nisargadatta

O que o torna tão grande é principalmente sua enorme capacidade de tudo que lhe foi perguntado mostrar como sendo construído de conceitos, e através de sua inutilidade fazê-los desmoronar até que eles cheguem ao chão.

Não importa o que o aluno ou discípulo sugeria, Nisargadatta mostrava que aquilo se reduzia a um apoio a idéias, e ele indicava a origem delas, a semente delas.

Tudo, em realidade tudo, mesmo também uma coisa que ele mesmo tinha dito, era reduzido como sendo um conceito, e sendo assim não era verdade. A única coisa que é verdade, assim ele ressaltava, é aquilo que não é um conceito.

Porque ele já morreu, é a leitura de seus livros a única possibilidade de se aprender com ele (com exceção de uns pares segundos de darshan de fragmentos de vídeo).

E através dessa leitura fica claro que uma coisa que pode ser considerada humorística, na verdade, ele, o grande menosprezador de conceitos, constantemente ensinava com conceitos.

Ele pulava de um nível para outro nível, nomeava inúmeros termos sânscritos para um determinado nível, usava o mesmo ou um termo quase sinônimo para outro nível, e fazia toda a construção desmoronar naquilo que ele chamava de ‘o estado azul escuro de não-experienciar’.

Infelizmente isso fez com que muitos que buscavam a iluminação e que já tinham vislumbrado um pequeno sinal de quem eles realmente eram, continuarem com sua busca, a partir da tomada de conhecimento da mensagem ‘você é apenas o Absoluto’.

Incessantemente eles afirmavam que ‘conheciam consciência’ assim como também expressavam a frustração de que o ‘próximo passo’ não era atingido.

Eu tenho a coragem de dizer aqui: ‘o próximo passo’ não é um passo. O centro da questão está em exatamente ir até a fronteira do que é experienciado, e lá permanecer em silêncio. Não se deixe levar por qualquer observação sobre o Absoluto te seduzir a buscar algo depois daqui.

Mas, pode-se falar em contrapartida, justo Nisargadatta faz constante observações sobre o Absoluto, e mostra repetidamente que todo o resto é irreal!

Sim, esse é o confronto: ouvir que nós somos Aquilo, e que não podemos experienciá-lo, que dirá procurá-lo. Esse é o contínuo paradoxo que Nisargadatta nos apresenta. Como devemos lidar com esse paradoxo?

Maharaj próprio nos dá a resposta para esse pergunta – e efetivamente apresentando um conceito. Um conceito específico, que ele indicava com o termo ‘eu sou’, ou ainda também ‘eu sou’-estado.

A grandiosidade de Nisargadatta Maharaj, justamente formulada como ‘grande’ pelo seu total menosprezo a conceitos, pode com mesmo direito assim ser reconhecida baseada na doação desse mesmo conceito.

Ele tratava esse conceito, o ‘eu sou’-princípio, como aquilo que precisava ser digerido, engolido, dissolvido. Ele descrevia isso também como ‘o remédio definitivo’.

Na verdade, ele chamava isso frequentemente de no mínimo ‘a própria doença’, ou ‘a grande miséria’, mas os lugares aonde ele indicava de que modo o mesmo conceito agora justamente como sendo o remédio para a cura, são os indicadores do caminho para a liberdade.

Nós temos aqui então novamente um paradoxo: uma coisa que é uma doença é em sua essência natural, o próprio remédio.

Existe uma citação que concede a chave para a dissolução desse paradoxo. No meu modo de ver é essa a citação mais bela que existe, dentre a de todos os mestres, porque o total mistério da existência é num par de frases demonstrado, incluindo ainda a forma de lidar para se penetrar o mistério.

Tudo está incluído aqui e todo texto de Nisargadatta depois desse, pode a partir dessa luz e visão ser interpretado.

“O toque de ‘eu sou presente’ está em todo o ser; essa qualidade de ser tem uma pitada do amor pelo Absoluto, e é uma representação do Absoluto. (…) A Verdade é unicamente o total Brahman, o Absoluto, nada mais que Brahman”.

“Na percepção total de Brahman apareceu o toque de ‘ser’, de ‘eu sou presente’, e através daí iniciou-se a separação e o ser-‘diferente’. Mas esse ‘eu sou’-estado não é apenas um pequeno princípio; isso é Mūla-Māyā, a origem de toda ilusão”. (…)

“O grande princípio, Māyā, te leva, através de sua sedução, a fazer inúmeras coisas e assim você fica preso nas coisas que ele te mostra e finalmente (na sua morte) a sua luz, a qualidade-de-ser é apagada”. (…)

“Essa Māyā é tão forte que você se deixou levar completamente por ela. Māyā significa ‘eu sou presente’, ‘eu amo estar presente’. Ela não tem nenhuma outra identidade que o amor”.

“Conhecer esse ‘eu sou presente’ é ao mesmo tempo o seu grande inimigo e o seu melhor amigo. Embora seja possível que ele seja seu maior inimigo você faz bem em se aliar a ele – e então isso vai se virar ao avesso e te levar ao estado mais elevado. “ [1]

Saber que você está presente, ‘eu sou’, é um princípio universal, em todo ser presente da exata mesma forma, antecedente a qualificação ‘eu sou João’ ou ‘eu sou Ana’, em outras palavras ‘eu sou essa pessoa’.

Nisargadatta indicava esse ‘eu sou’-compreensão geralmente com o termo ‘consciência’ (cetana). Exatamente porque ele chamava essa consciência de ilusória e o termo ‘consciência’ é usado por outros mestres para indicar justamente o Altíssimo (na verdade como tradução do termo cit ao invés de chtana; veja no exemplo, “Eu” é uma porta, primeira parte), é necessário se parar para pensar no sentido que Nisargadatta dava a esse princípio.

E ele dava inúmeros sinônimos, como ‘conhecimento’, ‘consciência-Krishna’, ‘consciência-da-criança’, ‘semente’, ‘testemunha’, ‘Deus’, ‘ser’, ‘qualidade de ser’, ‘sattva’, ‘a química’, ‘Saguna Brahmam’, ‘o manifesto’, ‘o princípio supremo’: eles se resumem numa mesma coisa.

O centro da questão é o toque. Naquilo que em sua totalidade não é uma experiência, não é conhecimento, não tem forma e não é ‘uma coisa’, espontaneamente, sem qualquer razão, aparece uma coisa.

No instante em que se nota isso você pode falar algo como ‘aparece uma coisa’, e não antes disso. Então manifestação e a sua percepção são um e a mesma coisa. Este é o ‘toque’. Essa é a primeira de toda vibração, a mais sutil forma de toque que Nisagadatta deu o nome de ‘consciência’, o princípio ‘eu sou presente’.

O grande elemento da citação está na última frase: “Conhecer esse ‘eu sou’ é ao mesmo tempo o seu grande inimigo e o seu melhor amigo”. Aqui está tudo incluído – então você pode aqui ficar com um completo sentimento de descontrole.

Em outras passagens de Nisargadatta fica muito freqüente, através do ressalto do caráter-ilusório (‘o grande inimigo’), o descontrole apenas reforçado, porque aquilo que é realidade, o Absoluto, é descrito como ‘não-experenciável’.

Mas nesse lugar é descrito com grande força que, embora seja possível que ele seja seu maior inimigo você faz bem em adorá-lo totalmente. Então, ilusão ou não, isso não tem a menor importância nesse momento, porque no fim isso é Deus próprio, o princípio que constantemente é abundante, que torna tudo possível.

É bem verdade que isso inclui que você pode ser seduzido a se apegar a uma forma, mas também que exatamente através desse princípio pode ser libertado desse apego.

Num dos Puranas, os antigos livros do Hinduísmo, achamos uma passagem que se parece com essa citação. “Se você fizer todas as vontades Dela, ela fica satisfeita, e se torna a causadora da liberdade da humanidade.” [2]

Então o centro da questão está em adorar esse princípio o máximo possível, dar total atenção, agradar. O sentir ‘estou presente’ é tão comum, tão rotineiro, que você facilmente passa por cima dele.

Daí que Nisargadatta concede todo enfoque em exatamente agora não fazer isso, mas ao contrário dar-lhe toda honra e adorá-lo como o altíssimo Deus. Ele prega constantemente para se permanecer em silencio aqui e se devotar totalmente a esse sentir, a essa vivência, o toque.

“Adore o ‘eu sou’ como Deus; não existe outra coisa. Adore apenas somente esse princípio; não existe outra coisa para se fazer. Essa consciência ‘eu sou’vai te levar diretamente ao supremo, o Definitivo. Esse ‘eu sou’ existe enquanto a respiração vital está presente.

E se você adorar esse ‘eu sou’, como pura Manifestação Brahman (Saguna Brahman), então você atinge a imortalidade. (…) Você tem que constantemente se lembrar que isso (…) é somente Brahman; permaneça mastigando essa ameixa. Você tem que pensar continuamente nisso.”3

Nós podemos nos perguntar o que é ‘adoração’, porque essa palavra pode levar a uma associação com uma reza com palavras. Adoração é na verdade ‘com todo seu coração dar constantemente atenção a uma coisa’.

O melhor exemplo disso no mundo é a paixão. Se você se apaixona, toda sua atenção vai para o seu amante, quer você queira ou não. Você está cheio de paixão e tudo que acontece na direção do seu amante, flui sem dificuldade. Isso você pode chamar de adoração.

Então agora nós somos convidados a adorar isso, a devotar essa paixão em relação a um sentimento trivial, a vivência de uma coisa que não é um objeto, ‘o toque de Estar Presente’, ‘o sentir de Estar Presente’. Como podemos colocar em prática essa adoração?

Isso se resume em você se misturar completamente com essa qualidade-de-ser, com essa vibração primordial. Traga toda sua paixão para esse ‘lugar’ sem uma localização fixa, exulte essa vibração, e não se preocupe com o fato disso ser uma forma de dualidade, uma forma de energia ou uma ‘coisa do corpo’.

Adore-A, exulte-A, não segure ou guarde nada, se entregue completamente a Ela, de modo que você possa fluir com Ela. Então ela se revelará a você, numa dissolução, onde ‘dois’chega ao seu fim. Em tudo aonde Ela pode ser um inimigo, esse é somente o caso se você se deixar levar pela sua sedução.

“A fonte definitiva de toda felicidade é a sua qualidade-de-ser: permaneça lá. Se você se deixar levar pelo fluxo de Maia você cairá em miséria. (…) Permaneça em silêncio na sua qualidade-de-ser.” [4]

Aqui Nisargadatta indica então como o ‘altíssimo princípio’, o ‘eu sou’-princípio, o elemento libertador pode ser discernido do sedutor, o elemento de aglutinação. Eu comparo isso às vezes com um chafariz num tanque. O ‘eu sou’-princípio é a boca do chafariz.

Aqui a água esguicha com toda força para cima, o que faz com que milhares de gotas se formem que juntas formam o chamado ‘chafariz’. A boca do chafariz quase não tem forma, apenas a experiência de força motriz de ser, o impulso para uma forma.

Então o conselho é o seguinte: permaneça na boca do chafariz, fique aqui, e se entregue a essa vibração sem forma. Tente, de nenhum jeito, fazer algo com essa força motriz.

“Quais processos naturais você poderia parar? Tudo acontece espontaneamente. Nesse momento você é consciência própria; isso é jorrante, vibrante, incitado ao movimento. Não pense que você é algo que está separado dessa jorrante e vibrante consciência.” [5]

Permanecendo na boca do chafariz, em adoração a Aquilo que tudo isso torna possível, liberdade é concedida a você.

“O fiel, que não se deixa distrair por mais nada, e Deus, que é fascinado por essa devoção, são atraídos um ao outro, e no momento que eles se encontram face a face, ele fluem formando um só.

O fiel perde automaticamente sua consciência direcionada a objetos, e assim que isso retorna, ele vê que perdeu sua identidade _ perdida na de Deus, de Quem ele não pode mais ser separado”6, e “Eu sou Deus, eu sou o fiel, eu sou a adoração; isso é tudo uma coisa só, um mesmo princípio.”7

Deus perdeu o caráter de Maia, Sedutora, assim que você vê que você não precisa se deixar levar por Ela para suas formas geradoras. Você precisa apenas prestar atenção a Aquilo que A observa.

“Medite sobre aquilo que sabe que você está aqui sentado. A sensação de que esse corpo é seu é identificação com o corpo, mas aquilo que sabe que o corpo está aqui é a manifestação do Absoluto.” [8]

Então o aspecto libertador do ‘eu sou’-princípio está contido tanto no aspecto de conhecimento e percepção como no da entrega. Aqui jñana (conhecimento, compreensão) e bhakti (devoção) fluem completamente num só.

Às vezes isso quer dizer que a entrega mostra que fazer discernimento não é mais necessário; e às vezes isso quer dizer que a compreensão cuida para que a entrega não aconteça por acaso à manifestação própria, ao escorregadio.

Apenas Aquilo que é permanentemente o caso, merece a sua entrega. “Eu seduzi Maia, e quando Maia se entregou totalmente a mim, eu não pude mais fazer uso dela e então eu a joguei fora.” [9]

O perceber que seu corpo está aqui é ‘conhecimento’. Esse conhecimento é Conhecer por si próprio, e isso forma o aspecto libertador, porque é literalmente a manifestação do Absoluto, assim como justamente foi dito numa citação anterior (veja por favor a citação da nota 8).

Conhecer Absoluto manifesta-se como ‘conhecer-uma-coisa’. Então ‘consciência’ e ‘o Absoluto’ não são mais coisas diferentes, como com freqüência baseado em muitas citações de Nisargadatta é suposto.

Existe apenas uma Consciência. Essa tem um aspecto Absoluto e um dinâmico, vivo, (aspecto consciente), o ‘toque’. A única coisa necessária para se ver é que certa vibração é sempre a mesma coisa que conhecer essa vibração, e que o conhecer próprio é o mesmo que Conhecer Absoluto.

Que aqui não existe nenhuma separação. Apenas: no Absoluto não existe nada para se Conhecer, de modo que Nisargadatta sempre chama isso de ‘no-mind state’, o estado aonde a atenção se dissolveu em si própria.

“Existe apenas um estado, não dois. Quando o ‘eu sou’-estado está presente, você vai ter muitas experiências nessa consciência, mas o ‘eu sou’ e o Absoluto não são dois. No Absoluto aparece o ‘eu sou’-estado, e então aparece ‘vivência’”. [10]

Você poderia dizer que ‘você se deixar levar pela Sedutora’ resume-se a apego a credibilidade na pegajosa força do passado, na força das tendências, das vāsanās, ao invés de agüentar a permanecer puramente com o ‘toque atual’, a ‘forma (que aparece) nesse instante’.

A substância que cola, ou o aspecto pegajoso do ‘eu sou’-princípio existe através da construção de histórias, no momento presente aparece a criação de um ‘corpo sutil’, um ‘eu-forma’, uma forma que tem que permanecer.

A força pegajosa em si ou que cola você pode chamar de ‘corpo causal’, o local de coleção das gravadas tendências latentes, a primeira semente da individualidade, de um jīva. [11]

O ‘corpo causal’ é uma indicação para aquilo em nós que faz agora com que uma forma seja produzida, e o que nos seduz a manter essa forma. Ele nos seduz a não reconhecer essa forma como ‘nesse momento puro toque de Consciência’, ou seja, como algo que momentaneamente cada vez morre, e que então é substituído por outra forma.

Isso é o que se quer dizer com o termo ‘causal’, de causador. O corpo causal faz com que você perca a consciência de que você, sempre, agora, agora, agora, é novo e que nunca nasceu.

E esse causar se dá por meio das tendências, uma vez que a partir do momento que existe manifestação, faz com você grude-se a ela, de modo que formas possam permanecer.

O corpo causal é na tradição Advaita, devido ao seu caráter aglutinante e obscurecedor, colocado no mesmo nível de ‘falta de compreensão ou conhecimento’ (ajñāna, assim também avidyā).

Nisargadatta, que na sua forma lingüística foi fortemente influenciado pela tradição de Samkhya, uma escola antiga de Dualismo da Índia, explicava, às vezes, esse processo de aglutinação por meio dos termos emprestados de Sāṅkhya: sattva, rajas e tamas.

Estas são as três gunas, as qualidades que definem e dão cor aos nossos atos (rajas é a característica excitante, turbulenta, aquilo que leva a atividade e projeção, tamas a lenta, congregante, obscurecedora, e sattva é a qualidade que mantém o equilíbrio, a qualidade de ser, clareza ou conhecimento).

Nisargadatta descreveu essa passagem através de sattva assim: “O saber de que você está presente (sattva) por si mesmo, durante a condição de acordado, sente como uma miséria; apenas porque você está fascinado por tantas coisas, você está em condição de suportar esse estado de ser.

Essa qualidade de ser (sattva), o saber ‘eu sou presente’, não pode suportar a si mesma. Isso é insuportável, tão só, unicamente tendo compreensão de si mesma.

Daí aparece rajas; que leva consigo o ‘estado de ser’ para diversas atividades, de modo que ele não precise ficar sozinho consigo mesmo – essa situação é na verdade muito difícil de se suportar.

E tamas é a qualidade mais vulgar, a menos nobre. Ela dá a chance de alguém assumir algumas atividades como ‘minhas’. Ela dá o sentimento ‘eu sou aquele que faz isso’. Rajas leva você para diversas atividades e tamas te dá o sentimento de ser o ‘causador’ dessas atividades”. [12]

Você poderia dizer que a força de rajas é, na verdade, relativamente uma força livre, que por si mesma não precisa ficar grudada a nada. É com a adição e efeito de tamas que faz com que a situação chegue à aglutinação.

Essa qualidade faz com que nós queremos permanecer, que nos leva ao apego a uma coisa, ao isolamento, à preocupação, e por aí vai. Através de tamas chegamos a nossa estória pessoal, uma história, colada em cima de uma atividade espontânea.

Você poderia interpretar o conselho de Nisargadatta assim: você não pode fazer outra coisa que permitir que rajas apareça, porque ela é inerente a forca espontânea de manifestação; receba-a, mas reconheça cada vez de novo o ponto aonde isso começa, o primeiro ‘toque’.

Nisargadatta chama esse toque também de ‘alfinetada’. Isso é sattva. Nisargadatta usa esse termo também como ‘consciência’, a alfinetada, ‘a vivência do toque’. Isso é o que chamei de ‘a boca do chafariz’: aqui você participa em verdade de um casamento entre sattva e rajas. Permaneça em silêncio (sattva) dentro da esguichante força (rajas).

Se você se dedicar a isso, a dar toda honra a essa alfinetada, essa ‘consciência’, sua busca termina. O ‘fazer’, a sua tentativa de ir além dessa consciência, aqui você pode soltar, porque isso não te leva a nada.

“Você não pode nunca se ‘isolar’ de consciência, a menos que consciência completamente foi absorvida com você, e então totalmente satisfeita, se desprenda de você. Consciência abre a porta para você transcender consciência. Existem dois aspectos: um é conceitual, consciência dinâmica, cheia de idéias e formas, e o outro é Consciência transcendente.”

“Aqui você nem encontra o conceito ‘eu sou’. O conceito Saguna Brahman (Brahman com as qualidade ou características das gunas) é o resultado do toque da irradiação ou reflexo da Consciência transcendente, Nirguna Brahman, com o corpo funcionando.” [13]

Então, embora inicialmente seja importante fazer discernimento entre consciência (cetana) e Consciência (cit), a partir de um determinado momento é essencial apenas abraçar consciência- como-toque (vibração), isso quer dizer, como vivência em si nesse instante, de modo que toda resistência dissolva e dessa forma toda dualidade.

O toque é a sua Ajudante, que te unge na sua entrega e na dela, e você mostra que você sempre esteve intacto, livre e inseparável, sem que você tenha que trabalhar duro para isso. Então de certo modo Nisargadatta ressalta: “Eu, o Absoluto, não sou esse ‘estado-eu sou’”, [14], mas de outro modo:

“Você precisa entender que esse ‘eu’ não é diferente nos diferentes níveis. Como o Absoluto é o ‘eu’, que para poder se manifestar precisa de uma forma. O mesmo ‘eu’ Absoluto torna-se o ‘eu’ manifestado, e esse ‘eu’ manifestado é a consciente fonte de tudo. Nesse estado manifestado isso é o Absoluto-com-Vivência.” [15]

O marcante aqui é que Nisargadatta, assim como em inúmeros outros lugares, a palavra ‘eu’ também permanece utilizando como palavra para o Definitivo. Ele diz, por exemplo, paralelamente ao fato dele se referir a si próprio como ‘Eu, o Absoluto’: ”Sem falar de Mim não existe nada. Apenas Eu existo”, [16] e “Se o estado de qualidade-de-ser (‘eu sou’) completamente foi absorvido, é apenas o que sobra o eterno ‘Eu’”. [17]

‘Eu’ mostra-se então como sendo o termo para nós em todos os três níveis: a pessoa pensa e sente ‘eu’, o toque ou vibração de estar presente é a Vivência de ‘eu’ sem pensar (sem ‘de mim’), e o Definitivo é ‘eu’, sem a vivência dele. Isso significa que a Verdade que nós somos sempre está presente, aqui, também agora.

No se sentir identificado com uma forma específica permanece também o convite para reconhecer aquilo que está mais próximo, em verdade ‘eu’, em sua essência natural.

É ‘eu’ uma porta? O Mestre responde: “Não existem portas para Parabrahman, querido jovem.” [18]

॥ हरिः ॐ ॥ 

Notas

1. Prior to Consciousness (redação: Jean Dunn). Durham, NC: Acorn, 1985; p. 12-13.

2. Chandi (=Devi-mahatmya; esse forma uma parte do Markandeya Purana), I. 57; e também IV.9. Citado por Vivekananda: The Complete Works of Swami Vivekananda, Vol. VII. Calcutta: Advaita Ashrama, 1986 (10th ed.); p. 216.

3. The Experience of Nothingness (redação: Robert Powell). San Diego, CA: Blue Dove, 1996; p. 51-52. Tradução em Holandês no Yoga Advaita, 1981, V-4; p. 157.

4. Prior to Consciousness; p. 21.

5. Consciousness and the Absolute (redação: Jean Dunn). Durham, NC: Acorn, 1994; p. 78. Tradução em Holandês Bewustzijn en het Absolute. Heemstede: Altamira, 1996; p. 95-96.

6. Self-knowledge and Self-realisation (Adaptação do livro Atmajnana Ani Paramatma Yoga). Traduzido por V.M. Kulkarni. Bombay: Ram Narayan Chavhan, 1963; p. 35.

7. Prior to Consciousness; p. 54.

8. Prior to Consciousness; p. 103.

9. The Experience of Nothingness; p. 86. Tradução em Holandês no Yoga Advaita, 1981, V-4; p. 172.

10. Prior to Consciousness, p. 42.

11. O aspecto aglutinador do princípio ‘eu sou’ soa, no idioma de Ramana Maharshi, como o ‘corpo causal’. O aspecto libertador daqui ele chamava de ‘Eu, Eu’, ‘Aham sphurana’.

12. The Ultimate Medicine (redação: Robert Powell). San Diego, CA: Blue Dove, 1994; p. 22. Tradução holandesa De ultieme Werkelijkheid. Heemstede: Altamira, 1992; p. 35-36 (é uma pena que na tradução holandesa a palavra remédio não é mencionada no título).

13. Consciousness and the Absolute; p. 97. Tradução em Holandês Bewustzijn en het Absolute; p. 115-116. Aqui foi feito o uso de colchetes para se indicar a ligação entre consciência e Consciência, isso foi feito baseando-se em inúmeras observações da antiga Tradição Advaita e baseado no livro I Am That, p 65: “consciência (chetana) aparece através da reflexão de Consciência na matéria”. O mesmo foi também citado em Seeds of Consciousness, p.170; e em I Am That, p.274.

14. Prior to Consciousness; p. 27, e muitos outros lugares.

15. Prior to Consciousness; p. 114. Para deixar claro e evidente que ‘eu’ sempre foi e permanecerá ‘eu’ evitou-se aqui de propósito a letra maiúscula. Veja também a observação sobre isso na primeira parte desse artigo, também publicado na revista Inzicht de fevereiro de 2001, p.44.

16. The Ultimate Medicine; p. 29. Tradução em Holandês De ultieme Werkelijkheid; p. 41.

17. The Nectar of the Lord’s Feet (redação Robert Powell). Longmead, Shaftesbury (Dorset): Element, 1987; p. 43. Tradução em Holandês Zelf-realisatie. Hillegom: Altamira, 1988; p. 52.

18. The Nectar of the Lord’s Feet; p. 57. Tradução em Holandês Zelf-realisatie; p. 67.

॥ हरिः ॐ ॥

Philip é professor na tradição do Advaita Vedanta, na Holanda. Este texto foi originalmente publicado em holandês neste website. Traduzido para o português por Ana Ferraiuoli. Reproduzido com autorização do autor e da tradutora.

॥ हरिः ॐ ॥

Veja aqui a primeira
parte deste artigo

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro Kupfer em Conheça, Sociedade
  ·   10 minutos de leitura

4 respostas para “Eu é uma Porta. Parte 2: Nisargadatta Maharāj”

  1. O que mais me marcou foi a frase” “no mind state, em que a atenção de dissolveu em si própria”, pois foi exatamente isto o que aconteceu aqui, e que é literalmente o fim da busca, e consequentemente o fim do sadhaka e do jnani. Não sobra nada, nem história pra contar, o que é uma pena rsrs, pois só agora lendo este texto é que fui entender os conceitos de Raja, Tamas e Satva:

    – Rajas: são os acontecimentos que ocorrem sem uma causa específica;

    – Tamas: É o surgimento do pensador reivindicando para si a autoria dos acontecimentos “fiz isto e aquilo”

    – Sattva: a testemunha silenciosa que observa Rajas e Tamas como fenômenos ou aparições na Consciência.

    Uma pena mesmo rsrs… pois Aqui não se faz mais necessário nenhum conceito. “Aqui” é antes do Eu Sou, qdo ele é descartado por Rajas e não sobra mais nada. A Testemunha existe, mas ela não cumpre mais o papel de uma sentinela fortemente armada na vigilância da mente.

    Sei lá, fica até difícil falar sobre… chamam-se a isto de “iluminação” ou “despertar”, mas chamo apenas de o fim da busca.

    O sadhaka e o jnani é o último conceito a ser descartado: “sou um sadhaka”, pois o sadhaka sério tem a si mesmo em mente o tempo todo, como recomendava Nisargadatta.

    Uma vez que a própria Graça retira vc do estado de atenção – que é tbm um estado de tensão – já não existe mais o sadhaka e nem mesmo o jnani.

    The end.

  2. Continue no paradoxo, esteja alerta essa é a beleza do caminhar. Ideias perigosas trazendo mais adrenalina. Fome de viver. Na paz dos grandes mestres….

  3. Texto pesado.
    Nisargadata Marahaj apesar de falar sobre aspectos que não consegui entender, visto que sua visão unicista lhe dava, em comparação a nós dualistas ou unicistas racionais mas não libertos ainda, um entendimento da existencia e principalmente do tempo, que para ele não existia, peculiar.
    Porém o conceito trigunamita ou seja dos três gunas na criação está presente na tradição tantrica. Nisargadata é o maior expoente do Dakshina Tantra da linha Shivaista, onde tudo é Shiva (consciencia). Shakti é uma projeção de Shiva e tem nome e sobrenome Maya Shakti. Tá lá no Tattva Bodha.

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