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Memórias de Rishikesh

Eis aqui algumas notas esparsas e saudosas sobre as lembranças, engraçadas e patéticas, que ficam ao final de cada viagem, e que levam irresistivelmente o yogi peregrino de volta para a terra do Yoga, assim que o orçamento permite

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Rishikesh

É uma pequena cidade que fica no estado de Uttarakhand, no norte da Índia, a aproximadamente oito horas de viagem de Delhi. É considerada a ‘capital mundial do Yoga’, pois é o destino de dez entre dez praticantes que visitam o país. A cidade ficou famosa em Ocidente a partir da década de 1930, quando Swami Sivananda fundou, à beira do rio Ganges, o ashram da Divine Life Society.

Eis aqui algumas notas esparsas e saudosas, sobre as lembranças, engraçadas e patéticas, que ficam ao final de cada viagem, e que levam irresistivelmente o yogi peregrino de volta para a terra onde tudo começou, assim que o orçamento permite.


Panorama do rio Ganges ao norte de Rishikesh

Naqueles tempos, e até o momento em que o Yoga conheceu suas duas primeiras ondas de popularidade no Ocidente, nos anos 1950 e 1970, Rishikesh era um vilarejo pacato e minúsculo, onde se refugiavam os praticantes e estudantes da espiritualidade hindu.

Nesse sentido, é uma delícia ouvir as memórias de Swami Dayananda e outros mestres que viveram no lugar quarenta anos atrás, antes das estradas, do turismo e da especulação imobiliária que lenta, mas inexoravelmente, vai tomando conta dessa região.

Se você não for capaz de enxergar o belo e o sublime em coisas que não sejam limpinhas e cheirosas, este, definitivamente, não é o lugar para você.

Desde a chegada, seus sentidos são inundados por uma combinação de cheiros e sons antagônicos: o aroma do incenso mistura-se ao odor do estrume e do lixo; o esgoto a céu aberto e os escapamentos mesclam-se ao perfume das deliciosas comidas feitas na rua; o som sedutor dos mantras funde-se com o barulho impertinente das buzinas das motos e rickshaws.

O paradoxo da Índia em movimento, que já foi definido por alguém como uma ‘anarquia que funciona’, está igualmente presente em suas cidades sagradas.

Após uma longa temporada em Rishikesh, mergulhado no estudo, na prática e na convivência com pessoas das mais diversas procedências, nacionalidades, idades e objetivos que confluem nesta cidade em busca do Yoga, a gente fica com a nítida sensação de estar num zoológico.

É interessantíssimo sentar na beira do sagrado rio Ganges após um banho ritual purificador, gelado e vivificante, sentindo o sol da primavera na pele, e ver passar a multidão dos praticantes estrangeiros. É um desfile alegre, poeirento e colorido, de gente carregando mochilas, com trilha sonora nos mais diversos idiomas, que o aprende a reconhecer.

Alguns ostentam brilhantes carecas, vestindo a cor açafrão da renúncia, mas sem abrir mão de seus notebooks e celulares. Outros, às vezes usando dreadlocks rastafaris, dão mostras evidentes de serem fregueses do brown sugar, a heroína de baixa qualidade que está fazendo estragos entre a comunidade dos sadhus vira-latas da bacia do Ganges.

Existem os leitores do Yoga Journal, carregando seus tapetinhos imaculados, suas garrafinhas de água mineral, e seus guias de viagem Lonely Planet. Têm hippies que moram lá há décadas. Têm perdidos, desorientados e desocupados dos mais diversos tipos.

Têm iludidos que fantasiam se tornar monjes sem haver compreendido a responsabilidade implícita na renúncia ao mundo (sannyasa). Têm hippies-playboys em poderosas motos Enfield (uma espécie de Harley Davidson indiana), buscando impressionar garotas deslumbradas. Têm muito mais.

Há os israelenses que acabaram de sair do serviço militar, que aliviam a pressão de ter servindo por anos a fio no exército e a frustração com a violência em densas nuvens de charas ou bhang (flores ou pólen de maconha).

Há os americanos e europeus assépticos, que tomam banho de água sanitária quatro vezes por dia e olham com nojo para as vacas sagradas que fuçam nas pilhas de lixo. Há os integrados na paisagem do rio, cujas peles esqueceram o aroma do sabonete, que moram em acampamentos nas praias da Mãe Ganga.

E depois, os aspirantes a mestres, os devotos sinceros, os libertários que se inspiram em Krishnamurti, os religiosos, os jornalistas buscando escândalos ou entrevistas com iluminados, e até mesmo alguns turistas de boné, carregando equipamentos fotográficos, que se sentem chocados ou admirados pela fluidez desse caos, e com a desenvoltura que alguns estrangeiros mostram para se mover nele.

E têm muitos mais cruzamentos improváveis, como o hippie-playboy, o punk-devoto, o rasta-sadhu e outros, que somente são encontrados em lugares como Rishikesh, Gokarna, Goa ou Omkareshwar.

E, para cada um desses estrangeiros, há pelo menos dez indianos curiosos ou insistentes, alguns dos quais fazendo perguntas como ‘where are you going from?’, ‘which country, sir?’, ‘do you want Kashmiri chocolate?’, ‘can I take a picture with you?’, ‘give me five rupees’, ‘Harih Om, Baba’, etc.

Traduzindo: ‘de onde você está indo?’ (assim mesmo!), ‘qual é seu país, senhor?’, ‘você quer comprar chocolate da Caxemira?’ (este está querendo vender drogas), ‘posso tirar uma foto com você?’, ‘dê-me cinco rúpias’, ‘e aí, malandro!’ (tradução livre de ‘Harih Om, Baba’), etc.

Dentre os yogis indianos, percebe-se claramente a diferença entre os que estão na coisa só pelo dinheiro e os praticantes de verdade, assim como é possível distinguir (às vezes, não na primeira olhada) os sadhus falsificados dos de verdade, que carregam seus tridentes e andam sem falar, com o olhar altivo.

Aliás, a bem da verdade, sadhu é o nome dado a todas as pessoas que se dedicam à busca espiritual, havendo renunciado ao mundo. Aquele grupo de renunciantes que se conhece popularmente como sadhus, é o dos naga babas, portadores do tridente, que andam nus, esfregam cinzas dos campos crematórios no corpo e deixam crescer o jata, cabelo em dreadlocks rastafaris que deixaria Bob Marley morto de inveja.

Algo é comum a todas estas espécies, estrangeiras ou não: é visível em quase todos a mesma sede de se conhecer, de encontrar o sagrado para firmar-se e viver nele.

Rishikesh

Neste sentido, esse verdadeiro exército estrangeiro de praticantes, devotos, aspirantes e curiosos, está totalmente integrado com os devotos hindus, que peregrinam para Rishikesh e os lugares sagrados (pithas) nas montanhas do Himalaia, como Badrināth, Kedarnāth, Gangotrī e Yamuṇotrī.

Isso cria uma certa efervescência no lugar, na qual não é infreqüente fazer bons amigos, reeencontrar companheiros de caminhada ou conhecer pessoas que podem nos informar por exemplo que Krishna Das está de incógnito na cidade, cantando kīrtaṇs no templo de Hanumān, que Swāmi Dayānanda  chegou de surpresa e está ensinando a Chāndogyopaniṣad num ciclo de palestras, ou que haverá um satsaṅg com Sri Sri Ravi Shankar nessa noite.

É uma delícia ficar numa comunidade de yogis, chamadas ashrams, estudando, aprendendo e praticando, imerso na cultura onde o Yoga nasceu e evoluiu.

É igualmente um privilégio poder estar em contato com as tradições vivas do hinduísmo, onde até o presente momento existem mestres iluminados, compassivos e generosos, como Swāmi Dayānanda e outros, que transmitem incondicionalmente o Brahmajñana (Conhecimento sobre a Realidade) no mesmo lugar, no mesmo contexto e da mesma maneira que sempre aconteceu ao longo dos milênios, na tradição conhecida como parampara.

Estar em contato com o astral de Rishikesh é uma ótima oportunidade para refletir e repensar a própria vida. Alguns anos atrás, ao passar uma temporada no Dayananda Ashram, escrevi isto: ‘Estou mesmo sentindo necessidade de simplificar minha vida. Poderia nadar no rio o dia todo.

Trazer a roupa de borracha e fazer umas travessias a nado. Os ensinamentos aqui no Ashram fazem pleno sentido. Entendo tudo e quero mais. Sinto necessidade de estudar muito mais. Fazer mais rituais.

Aprender mais mantras. Conviver mais com estas pessoas. Praticar mais. Ter mais calma e mais tempo para as coisas importantes aqui no Ashram. O ensinamento é verdadeiro. A tradição está bem viva aqui. Isso é perceptível’.

É verdade que não é preciso sair da própria poltrona para perceber a verdadeira identidade. Porém, uma viagem para um lugar como este ajuda a atiçar e motivar a busca pela própria verdade.

A jornada, especialmente se for para um lugar sagrado, enriquece e aprofunda a caminhada no Yoga. Faz uma diferença enorme na vida de qualquer praticante dar-se a oportunidade de permanecer exposto a esse conhecimento num lugar assim.

O mais curioso, é que, de volta para o Brasil, surge a constatação que nós vivemos nesse mesmo zoológico aqui na terrinha: hippies, surfistas, celebridades ocas, adolescentes em busca da própria identidade, executivos estressados, loucos, obsessionados e desorientados de todo tipo buscam no Yoga um sentido mais profundo para suas vidas.

Essa é a nação do Yoga, uma nação plural, aberta, humana, bela e sublime, e às vezes contraditória e paradoxal, como todas.

॥ हरिः ॐ ॥

Se estiver planejando uma viagem à terra do Yoga, leia por favor também:
1) Dicas de viagem à Índia e
2) Ir à Índia para que?

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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9 respostas para “Memórias de Rishikesh”

  1. Acabei de chegar em Rishikesh e vou ficar até dia 17/05/2015, tem algum brasileiro nessa data aqui?

  2. Estou aqui em Rishkesh lendo vc! E Rsks é tudo isso mesmo!
    Apesar de ja ser 2014 sua descricao continua perfeita pra agora…
    Namaskara

  3. Caro Pedro, fiquei muito feliz em encontrá-lo na rede. Estou cogitando ir à Bangalore, ou melhor, ao asrham da Arte de Viver em janeiro/2012. Suas impressões e dicas sobre a Índia são muito preciosas.Gostaria de saber de vc, se possível, alguma coisa sobre o asrham da arte de viver. Entrei em contato com a Arte de Viver em abril de 2011 e desde então fiz dois cursos. Vou fazer 57 anos em dezembro e penso que já está na hora de ir. A vontade é enorme e, pra falar a verdade, sinto quase um impulso em direção à Índia. Cresci muito desde o primeiro curso que fiz aqui no Rio. Enfim, se puder e quiser, diga-me alguma coisa para que me sinta mais segura. As pessoas, de um modo geral, \\\’desaconselham veementemente,\\\’ alegando o perigo em se contrair doenças e tudo mais. Claro que já obtive informações na própria arte de viver. Gostaria de saber de alguém fora de lá. Não duvido de nada, pode ter certeza. Só preciso de alento, não adianta ir insegura ou tão insegura. um grande abraço, natercia.
    =======
    Oi Natercia,
    Acho que na atualidade as coisas estão bem mais fáceis do que antigamente para viajar para a Índia. Eu iria sem pensar duas vezes. É verdade que o padrão de higiene lá é diferente ao padrão de higiene aqui, mas também é verdade que o padrão de higiene no Brasi é bastante inferior ao da Europa. Então, se você não for uma pessoa fresca, pode ir para lá numa boa.
    Pedro.

    1. Oi Natercia, vcs já veio para Bangalore ou ainda está pensando? Resolvi escrever pq estou morando aqui em Bangalore desde julho e já visitei o Art of Living. É muito bonito, limpo, as pessoas são atenciosas, acho que se é sua vontade, venha mesmo. Quanto a doenças, é mandatório a vacina da febre amarela, além das habituais que fazemos no Brasil. O que mais acontece aqui p/ nós de fora é diarreia por conta da comida, mas isso vc pode tomar um pouco mais de cuidado onde e o que come e não precisa ter esta experiencia..hehe…as ruas são sujas, mas nem todas; as vacas andam nas ruas, mas nem todas ruas…acho q isso não deve ser o q decida vc de não vir. Acho que terá uma experiência incrível.E não concordo que os padrões higiênicos dos europeus sejam melhores que os dos brasileiros, nós somos muito, mas muito mais “cheios de nojinhos”.Espero que tenha ajudado! Pricila

  4. Bem-haja!

    Estou indo para Rishikesh e estou sentido medo e ansiedade, porque sei que vou encontrar algo muito forte e profundo, mas ainda não tinha lido nada sobre Rishikesh com que me identificasse.

    Somos todos Um. Abraço e fiquemos na vibração do Amor…

    Sou de Portugal, tenho 31 anos e sou de Peixes. É agoraaaaa!! Ai, que emoção, que medos, que … AAaiiiiii!!! YahooooIIIII! 🙂

  5. Pedro, meu amigo, é um prazer enorme ouvir suas histórias, obrigado…

    Om Shanti,
    Celso.

  6. Belo texto, Pedro. Traduziu a essência da experiência de estar em Rishikesh, que por sua vez, é a cidade-essência, como dizes, da busca espiritual do Yoga.

    Escrevi um texto quando estive lá, em 2001/2002. Está em: http://www.edukbr.com.br, na seção Conjunto dos Relatos de Viagem – Relato de uma viagem à Índia.

    Abraços,
    Renato.

  7. Hari Om! Rishikesh realmente é um lugar muito especial. Provavelmente, foi lá que eu vivenciei as experiências mais interessantes e profundas na Índia. Sentir o olhar de um verdadeiro Sadhu, estar nos pujas e sentir realmente o que é um ato devocional, ter um bate-papo com um Swami, comer com as mãos, lavar a alma no Ganges, estar entre um monte de “hanumans” numa trilha para o templo de Nilakantha, dizer namastê sempre de coração e muito mais. Quem tiver a oportunidade, não deixe de passar por lá. É transformador! Namastê a todos, muita paz e muita luz.

  8. Rishikesh é um lugar mágico! O lugar mais lindo que já vi, e que até hoje habita meus sonhos, desde quando estive lá… Nas minhas meditações, lá é o lugar!!! Obrigado ao Pedro por ter me levado lá de novo, cantando mantras!! Hari Om!!

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