Os mahavākyas, as grandes afirmações védicas, são palavras especiais que revelam, ou melhor, apontam, para o Ser ilimitado, Brahman. A Taittīriyopaniṣad, no Brahmavalli II:1, contém uma dessas grandes sentenças: Oṁ brahmavidapnoti pāram tadesabhyukta satyam jñānānantam Brahma. Traduzindo, isto significa: “Aquele que conhece Brahman, “alcança” o mais alto. Então, é dito: Brahman é existência, conhecimento e plenitude.”
Colocamos a tradução da palavra “alcança” entre aspas pois, para conhecer Brahman (i.e., a nós mesmos), não é necessário sair do lugar onde estamos, pois não há ações d nenhum tipo envolvidas, como veremos mais adiante.
É sabido que o objetivo do estudante dos Vedas, assim como o objetivo do Yoga, é mokṣa, a libertação. Isso significa a total eliminação do saṁsāra. A morte do corpo físico não é o fim do saṁsāra pois, após essa morte, há novos nascimentos, mesmo que eles aconteçam noutros planos (lokas).
Saṁsāra tampouco é sinônimo de estar vivo. Estar vivo não é um obstáculo para mokṣa. Até mesmo os obstáculos e dificuldades da vida não são a fonte do sofrimento, pois ela seria completamente monótona e sem objetivo não fosse por estas superações.
A verdadeira causadora do sofrimento é a mente, pois ela projeta as expectativas em relação a desejos inúteis. Essas expectativas têm como base a ignorância em relação a quem eu sou. No entanto, cultivando a objetividade perante a vida, bem como o entendimento da Realidade, podemos eliminar o saṁsāra.
Na frase Brahman é existência, conhecimento e plenitude, as palavras não qualificam nem descrevem Brahman, já que este não é um objeto, mas indicam (lakshanam), através de pontos claros, aquilo que deve ser conhecido.
A princípio, vemos Brahman como um objeto a ser conhecido, diferente daquilo que somos. Então a primeira frase do verso se torna clara: Aquele que conhece Brahman, “alcança” o mais alto. Na verdade, não me é possível “alcançar” aquilo que já sou. Apenas reconheço o que sou. Nada mais.
Ilustro esta peculiar situação com uma estorinha que me foi narrada por Swāmi Dayānanda, meu mestre: dez meninos atravessam um rio. Um deles é o responsável pelo grupo. Ao chegarem à outra margem, o líder conta o grupo, para ver se todos estão ali. Porém, ele só conta nove crianças. Fica desesperado achando que um deles tinha sido arrastado pela correnteza. Vendo seu desespero, um senhor aproxima-se e lhe pergunta pela causa da aflição. O menino lhe explica a situação. Vendo tudo de forma clara, o senhor lhe mostra que ele está esquecendo de contar a si mesmo.
Neste exemplo, constatamos que não precisou ser criado o décimo menino: ele já estava lá. O que acontece é apenas entendimento, compreensão. Este entendimento não é fruto de uma ação. Similarmente, o autoconhecimento já traz embutido em si mesmo um resultado que não é diferente dele mesmo.
As ações, por sua vez, precisam ser feitas. Seus frutos são objetos diferentes delas mesmas. Mas isso não significa que as ações sejam intrinsecamente ruins, nem que devamos renunciar a elas. Mesmo agindo, ainda há o risco de que o resultado não seja o esperado. Consiera-se na nossa tradição, que o resultado da ação seja de quatro tipos:
1. A criação (utpati) – uma ação pode criar uma coisa nova.
2. Purificação (saṁskāra) – a purificação do corpo
3. Modificação (vikāra) – a modificação de um objeto
4. Alcançar alguma coisa (apti) – se mover de um lugar para outro
Estes resultados são todos diferentes de mokṣa. Há obras na nossa tradição que falam sobre as ações como formas de se alcançar um resultado. A Kaṭha Upaniṣad, por exemplo, diz que “pelo caminho do sol, se alcança um resultado”. Mas em nenhum lugar as Upaniṣads dizem que este resultado seja diferente daquilo que você já é.
A tradição, chamada Śruti, nos fala sobre certos rituais, que podem gerar resultados desejáveis. Mas apegar-se constantemente a estes resultados mantém a pessoa condicionada. Ela age pelo desejo de alcançar aquele resultado que lhe traz conforto ou prazer (artha ou kāma).
Ātma não é um lugar ou objeto a ser alcançado, pois já está em todo lugar. Então como posso dizer: “ir para algum lugar?”A pessoa que está indo e o lugar que ela vai, são a mesma e única coisa. O problema é não reconhecer isto.
Através deste argumento entendemos que mokṣa não é algo a ser alcançado. Mokṣa é nosso estado natural. Porque um objeto a ser alcançado é sempre diferente de nós mesmos, ou seja, tão limitado quanto outro objeto qualquer. Um lugar que seja para ser alcançado por um “viajante” para onde ele está indo, deve ser diferente do viajante. Pois senão, não há a necessidade de ir a lugar algum.
O papel do Veda é revelar aquilo que os nossos sentidos e mente não podem e não conseguem perceber. Veda é o pramāṇa, o meio de conhecimento para o Ser. O Veda aborda tanto o dvaita como o advaita: o que é dual e o que é não-dual. Sem negar a dualidade da nossa existência samsárica, o Veda é a autoridade que revela o não-dual.
O argumento das pessoas (karmatas) que afirmam que as ações trazem libertação é que existem textos que falam sobre o valor da ação. Como o Veda fala sobre a importância das ações rituais, eles, equivocadamente afirmam que os jñānis estão indo contra o Veda. Mas para os jñānis, qualquer outro eventual lugar paradisíaco que possa ser alcançado pelo mérito das ações rituais feitas nesta vida é apenas transitório e, portanto, não é mokṣa.
Estes textos que falam em gati estão apenas focando no fruto da ação. Então os objetos alcançados também são Brahman. Mas isto não é o fim. O Veda vai mais fundo. Então não se pode considerar somente esta primeira etapa. A realidade é uma só, e essa realidade é Brahman. O real é uno, apesar das diferentes manifestações. Este é o ensinamento da Śruti.
Qualquer tipo de combinação entre ação e conhecimento é impossível porque a natureza de ambos é oposta.
O conhecimento é aquele que o assunto é a dissolução total do objeto e suas diferenças. O conhecimento mostra que as diferenças são apenas ilusórias. E em relação à ação o conhecimento se opõe. A ação é alcançada através de alguém, ou seja, alguém faz alguma coisa para alcançar um objetivo. Então neste caso vemos três objetos diferentes (a pessoa, a ação e o objeto a ser alcançado).
Quando se fala em conhecimento não há diferença, pois aquele que conhece, conhece a si mesmo. Todo este raciocínio vai nos levar à conclusão de que uma das duas posturas, a dual ou a não-dual, é falsa. O dual é o falso, pois é aparente e depende do não-dual para existir.
A dualidade é fruto da ignorância e por isso mesmo dizemos que ela é real.
Concluindo, lembremos que, na visão dos Vedas, as ações são apenas um meio, um sādhana para antarkāraṇashuddhi, a purificação do psiquismo que, por sua vez, ainda é, apenas, uma preparação para o autoconhecimento.
Namaste!
Ainda bem que existem os shatras para nos orientarem. Concordo que deve ser mais facil a busca por moksha, vivendo isolado. O grande desafio ‘e buscarmos a liberdade no mundo que vivemos, tendo como inspiracao a Gita e os ensinamentos da Krisna para Arjuna. Obrigada e parabens pelo texto e comentarios, essa troca so enrriquece o aprendizado e motiva a buscarmos mais e mais. Namaste! Rafa Bentes
Excelente texto!
Excelente texto!
Espiritualidade não é escapar da vida, mas, sim, escapar para dentro da vida. Se você escapa para dentro da vida, torna-se consciente das áreas com as quais você interage e obtém controle das qualidades que você expressa na vida. (Swami Niranjanananda Saraswati).
A grande dificuldade em perceber a unicidade, é natural, pois Tamas predomina na criação dos Mahabuthas(grossificação dos elementos).
Daí a ignorancia de quem somos. Ao aceitarmos as afirmativas dos mestres que somos uno, estranhamos pois eu sou um e Deus está fora, é superior, é outro. Qdo mudamos o ponto de vista, mesmo que só racionalmente, todos os paradigmas(padrões) mudam.
Ao meditarmos na unicidade, percebemos que o tal livre arbítrio é muito relativo. Se somos uno, o projeto já está pronto.A peça já está escrita e o nosso papel, que vivemos como a realidade, não nos deixa perceber que já somos o que buscamos.
Não precisamos fazer nada, só perceber essa realidade.Não precisamos ir p/ os himalaias nem entrar num monastério. Se não percebermos essa realidade, isso também não muda nada, a não ser p/ nós mesmos.
A diferença de nós e os sábios é que eles sabem que são a felicidade que procuram, todos já somos, mas eles sabem e nós não. É dificil aceitar isto, pois tenho que jogar fora a personalidade que sou.
Salve Bruno,
li e re-li seu texto, assim como o primeiro comentário que é do Pablo e aqui continuo no meu exercício diario. Na maioria das vezes não é nada facil perceber a diferença entre o ego e o Ser……. Como yogar é praticar, continuo me exercitando diáriamente neste ponto em busca de moksha.
Abraços.
Adriane
Namaste!!!
A unicidade de que trata os Vedas, é um conceito difícil de se absorver.
Primeiro aceitamos porque vem de origem confiável, porém não sentimos assim.
Depois ao meditar no conceito de que já sou a felicidade que procuro, que não há o que procurar, que tudo é a Consciência, alguns padrões são quebrados.
O conceito de livre arbítrio, por exemplo.Pouquíssimas coisas foram escolhas nossas.Fomos levados a tomar atitudes pelos nossos condicionamentos, f´sicos, psíquicos, sociais e principalmente biológicos.De fato foram reações e não ações,mas não percebemos assim.
Ex: Existe a possibilidade matemática de que eu saia nu na rua, porém pela minha educação, moral social, etc, eu nunca vou sair nu na rua.O conceito de livre arbítrio ficou muito relativo, práticamente não existe.
Conceitualmente aceito o princípio da unicidade no intelecto.Mas falta a vivência o vrptt-viap, (acho que é isso), o movimento da mente que percebe a realidade.Daí a liberação, a imortalidade, a plenitude.Sat,Cit,Ananda.Ainda chego lá.
Prezado Joan,
A Gita nos fala sobre este exemplo, sobre esta escolha. A renúncia nem sempre é a opção mais “correta” a ser tomada. Cada um de nós tem um dharma a cumprir. E assim o mundo caminha. Nós somos matéria, e assim sendo, não há como não sermos materialistas. Há sim, uma forma de colocarmos o valor adequado a cada objeto com o qual nos relacionamos. Krsna ensina a Arjuna o valor das suas ações.
Porém ao mesmo tempo o ensina que estas ações não servirão de nada se não estiverem permeadas pela atitude correta. Nossas ações devem nos apontar para este Conhecimento. Para um mundo melhor, de mais respeito e equilíbrio. Assim, quem sabe, podemos ser estes yogis ou monges no meio desta babilônia. Concordo que não é fácil. Mas como escrevi no texto, qual seria o sabor da vida se não houvesse estes obstáculos para superarmos?
Grande abraço!!!
A energia que nos circunda é Una e todos somos uno perante o cosmos. Racionalmente, consigo ter a percepção de que estamos conectados em uma cadeia ,porém, o mundo que vivemos nos leva sempre ao dual.
A pergunta que mais me martela é: Como “SER”, num mundo capitalista e egoísta? Acredito que somente aqueles que se desprenderam realmente do mundo material, como os monges tibetanos, os verdadeiros yoguis indianos, ou pessoas que escolheram de corpo e alma a renuncia como meio, terão a possibilidade de encontrar o caminho do SER.
Desses pequenos questionamentos chego a conclusão que a racionalidade deve caminhar com a atitude, uma casada com a outra de forma a cpncretizar o ato do desprendimento. Se percebermos, a maioria dos iluminados, dedicaram uma vida inteira para a espiritualidade e a renuncia.
Será que um um monge cristão ou budista, conseguiria sobreviver nesse estilo de vida? Nessa babilônia? Não é a toa que eles se isolam, justamente para não serem contaminados com o material.
Admiro muito esses homens, pois não é fácil viver contra a maré. Requer força, perseverança e coragem para enfrentar a solidão. Desejo que todos encontremos o caminho do meio, e aos que o econtraram no meio da babilônia, por favor, não hesitem em trocar as experiências!!
Namastê.
Joan Pablo.