Todas as escolas de Yoga descritas no início do capítulo 2 de A Tradição do Yoga (Rāja, Haṭha, Jñāna, Bhakti, Karma, Mantra e Laya Yoga) são criações da Índia pré-moderna.
Com o Yoga Integral, de Sri Aurobindo, entramos na modernidade. Esse Yoga é a prova viva de que a tradição yogi, que sempre primou pela capacidade de adaptação, continua a desenvolver-se e a reagir às mudanças das condições culturais.
O Yoga Integral é a mais destacada tentativa de reformular o Yoga de acordo com as necessidades e as capacidades do homem moderno.
Śrī Aurobindo e o Yoga
Embora fizesse questão de preservar a continuidade da tradição yogika, Sri Aurobindo ansiava por adaptar o Yoga ao contexto singular do mundo ocidentalizado de hoje em dia.
Para fazê-lo, não se baseou somente na educação ocidental, mas também na profundidade da sua experiência e das suas experimentações com a vida espiritual. Juntava na sua pessoa as raras qualidades de um filósofo original, por um lado, e de um místico e um sábio, por outro.
Aurobindo via em todas as formas passadas de Yoga uma tentativa de transcender o envolvimento do ser humano comum com o mundo externo, tentativa essa que tomava a forma da renúncia, do ascetismo, da meditação, do controle da respiração e de um sem-número de outros meios yogikos.
Como expliquei na Introdução de A Tradição do Yoga, muitas escolas de Yoga esposam uma atitude que, por conveniência, podemos chamar de “verticalismo”: são caminhos que conduzem à Realidade Transcendente, ao Espírito, ao Si Mesmo ou à Essência Divina, concebida esta como separada, de algum modo, do mundo material.
Todos os Yogas verticalistas procuram ascender para além da vida convencional por meio de uma elevação da atenção.
Na magnífica obra The Life Divine, Aurobindo diz que os Yogas anteriores eram caracterizados pela “renúncia do asceta” (1).
Essa renúncia consiste numa subestimação do mundo material por parte do asceta, determinada pela força do contato deste com as dimensões supramundanas da existência, e em especial com o domínio resplandecente do próprio Espírito. Essa atitude negativa em relação ao mundo se resume na doutrina vedântica da ilusão, conhecida como máyá váda.
O termo máyá refere-se à irrealidade do universo manifesto – noção que, no geral, foi interpretada como uma afirmação do caráter ilusório do próprio cosmos.
Além disso, esse axioma metafísico foi muitas vezes associado à idéia de que a existência neste mundo é cheia de sofrimento, dor, pesar e tristeza, e por isso se afigura como perfeitamente inútil.
Em conseqüência, os filósofos e sábios verticalistas recomendaram vários caminhos que envolvem uma ou outra forma de renúncia externa.
Por outro lado, o Yoga Integral – chamado de Pūrṇa Yoga, em sânscrito – tem a finalidade explícita de fazer descer a “consciência divina” para o corpo e a mente humanos e para a vida comum.
Busca superar o paradigma tradicional que opõe o Espírito à matéria, paradigma que, segundo Aurobindo, surgiu junto com o Budismo há uns 2.500 anos.
Aurobindo admitiu que os filósofos e sábios da Índia empenharam-se periodicamente para derrubar esse influente paradigma, mas observou, por fim, que “todos viveram à sombra da Grande Renúncia, e, para todos, o fim último da vida é a tanga do asceta” (2).
Eis uma citação completa das observações inteligentes e eloqüentes de Aurobindo:
A concepção geral da existência caracterizou-se sempre pela teoria budista da cadeia do karma e pela conseqüente oposição entre escravidão e libertação: escravidão mediante o nascimento e libertação mediante o fim dos nascimentos.
Assim congregaram-se todas as vozes num grande uníssono, afirmando que nosso reino dos céus não está neste mundo, mas além dele, quer nas alegrias do eterno Vṛndavan, quer na altíssima beatitude do Brahmaloka; além de todas as manifestações num inefável nirvāṇa ou num estado onde toda a existência separativa se desfaz perante a unidade indistinta da indefinível Existência.
E no decorrer de muitos séculos, um grande exército de brilhantes testemunhas, santos e mestres, nomes sagrados para a memória da Índia e vultos dominantes da imaginação indiana, deram todos o mesmo testemunho e acenaram sempre com o mesmo apelo elevado e distante: a renúncia como única via para o conhecimento, a aceitação da vida terrena como o ato dos ignorantes, o fim dos nascimentos como o único uso correto do nascimento humano, o chamado do Espírito, a fuga perante a Matéria. (3)
É certo que Aurobindo não negou o valor do ascetismo, mas procurou situá-lo no lugar que lhe cabe dentro do contexto de uma espiritualidade integral.
Afirmou que os antigos pensadores e sábios hindus levavam muito a sério o axioma vedântico de que só há uma única Realidade, mas não davam o devido valor ao axioma correlato de que “tudo isto é Brahman”.
Em outras palavras, ignoravam a presença da Divindade não-dual no mundo em que vivemos; ignoravam que não há distinção alguma entre a Divindade e o mundo.
A crítica que Aurobindo faz da metafísica e do Yoga tradicionais do Hinduísmo está essencialmente correta, embora ele tenha preferido ignorar aqueles esforços esporádicos que, como o Sahajayāṇa (“Veículo da Espontaneidade”), tinham evidentemente por objetivo uma visão de mundo e uma ética mais integradas.
Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que o ideal do sahaja (“espontaneidade”) é uma tentativa de superar as limitações do verticalismo tradicional. É verdade, porém, que mesmo algumas escolas do Sahajayāṇa contêm um forte elemento ascético.
E não se pode dizer de modo algum que elas esposem uma ética de afirmação do mundo baseada na evolução, como faz o Yoga Integral.
O “Yoga supramental” de Aurobindo gira em torno da transformação da vida terrestre. Ele queria ver o paraíso na Terra – uma existência totalmente transmutada, mas neste mundo. Escreveu:
A diferença fundamental está na doutrina da existência de uma Verdade Divina dinâmica que pode descer para este mundo de Ignorância, criar nele uma nova consciência da Verdade e divinizar a Vida.
Os antigos Yogas vão direto da mente para a Divindade absoluta e vêem toda a existência dinâmica como Ignorância, Ilusão ou Lila; quando se entra na Verdade Divina estática e imutável, dizem eles, escapa-se da existência cósmica…
Meu objetivo é o de realizar e também manifestar a Divindade no mundo, trazendo cá para baixo, para esse fim, um Poder que ainda não se manifestou – como a Supermente. (4)
O que é a Supermente? É aquilo que Aurobindo chama de Consciência da Ordem – rita chit, em sânscrito – por trás da mente ordinária. É o “verdadeiro agente criador da Existência universal” (5).
É o vínculo dinâmico entre o eterno Ser-Consciência-Bem-Aventurança e o cosmos condicionado. A Supermente é a criadora do mundo, pois é o princípio absoluto da vontade e do conhecimento; organiza-se nas estruturas das dimensões sutil e grosseira (isto é, as dimensões manifestas) da existência.
Segundo Aurobindo, a Supermente é o motor da evolução, que ele compreende como um progresso contínuo rumo a formas de consciência cada vez mais elevadas.
Como tal, é ela também a responsável pela manifestação do cérebro e da mente humanos. A mente tem a tendência inata de ir além de si mesma e captar o Todo maior.
No entanto, como nos comprovam com a máxima evidência as histórias da filosofia e da ciência, ela está destinada a não alcançar esse seu objetivo.
Tudo o que a mente humana pode fazer é admitir as suas limitações intrínsecas e abrir-se para a realidade superior que é a Supermente.
Mas essa abertura sempre se reflete subjetivamente como a morte da personalidade egóica limitada pela mente – e essa experiência é terrível para o indivíduo espiritualmente imaturo.
Em suas obras, Aurobindo descreve o que ele mesmo sentiu no interior com a descida da Supermente e a conseqüente anulação da mente:
… alcançar o nirvāṇa foi o primeiro resultado radical do meu próprio Yoga. Lançou-me ele de repente num estado situado acima do pensamento, no qual o pensamento não existia; um estado que não era sustentado por nenhum movimento vital ou mental.
Não havia ego nem mundo exterior – apenas que, quando o olhar se voltava para fora através dos sentidos imóveis, algo percebia ou criava sobre o seu mais absoluto silêncio um mundo de formas vazias, sombras materializadas sem substância real.
Não havia nem Um nem muitos, tão-só unicamente Aquilo, sem traços distintivos, sem relações, puro, indescritível, impensável, absoluto e, não obstante, sumamente real, o único real. (…) permaneci nesse nirvāṇa dia e noite, até que ele começou a admitir em si outras coisas ou a modificar-se mesmo que minimamente; e o coração íntimo da experiência, uma memória constante dela e do seu poder de voltar a se impor permaneceram até que por fim começaram a dissolver-se numa Superconsciência maior vinda de cima.
Enquanto isso, porém, realização acrescentou-se à realização e veio fundir-se à experiência original. Num estágio incipiente, a visão de um mundo ilusório deu lugar à percepção de que a ilusão não passa de um pequeno fenômeno superficial que tem por trás de si uma suprema Realidade Divina e, no coração de todas as coisas que a princípio só pareciam figuras ou sombras cinemáticas, uma intensíssima Realidade Divina. (6)
Aurobindo considerava o ser humano transformado pela Supermente como o auge da evolução. A Natureza, que é uma forma de Deus, esforça-se para produzir o ser verdadeiramente espiritual, que vai além do “homem vital” e do “homem mental”.
Esse evolucionismo yogi não é muito bem compreendido na Índia, e mesmo entre os que buscam a espiritualidade no Ocidente a obra de Aurobindo não é tão conhecida quanto deveria ser.
Mas o Yoga Integral é uma força espiritual viva que, nas palavras do filósofo Haridas Chaudhuri, “continua fertilizando o solo espiritual do nosso mundo” (7).
No nível prático, o Yoga Integral se baseia na ação sincronizada da aspiração pessoal, que vem “de baixo”, e da graça divina, que vem “de cima”.
A essência da aspiração, porém, é a entrega de si mesmo, e essa entrega tem de ser completa para que a graça possa realizar a sua obra de transformação. Aurobindo contrapunha esse caminho ao esforço pessoal áspero que caracteriza o caminho do ascetismo (tapasya).
O Yoga Integral não prescreve nenhuma técnica, uma vez que a transformação interna é realizada pelo próprio Poder Divino. Não há rituais, mantras, posturas ou exercícios de respiração obrigatórios.
O aspirante deve tão-somente abrir-se àquele Poder Superior, que Sri Aurobindo identificava com a Mãe. Essa abertura e essa invocação da presença da Mãe são compreendidas como uma forma de prece ou de meditação.
Aurobindo aconselhava os praticantes a concentrar a atenção no coração, que, desde a mais remota antigüidade, é considerado o portal que leva a Deus.
A fé, ou certeza interior, é considerada uma das chaves do crescimento espiritual. Os outros aspectos importantes da prática do Yoga Integral são a castidade (brahmacarya), a veracidade (satya) e uma permanente disposição calma (praśānti).
Para Aurobindo, a Mãe não era um princípio abstrato ou uma divindade transmundana, mas a força da graça encarnada na própria esposa com a qual ficou casado a vida inteira.
Ele compreendia a si mesmo como a Consciência, e a ela como a Śakti, ou Poder divino, manifestos na forma física.
(1) Sri Aurobindo, The Life Divine, vol. 1 (Pondicherry, Índia: Sri Aurobindo Ashram, reed. 1977), p. 23.
(2) Ibid., p. 23.
(3) Ibid., p. 23. A atitude verticalista surgiu antes do Budismo, que muitas vezes é erroneamente acusado de ter introduzido na herança espiritual da Índia uma atitude negativa em relação à vida. O Budismo, como o Hinduísmo, inclui correntes horizontalistas, verticalistas e integrais.
(4) [Manibhai, org.], A Practical Guide to Integral Yoga: Extracts Compiled from the Writings of Sri Aurobindo and The Mother (Pondicherry, Índia: Sri Aurobindo Ashram, reed. 1976), p. 31.
(5) Sri Aurobindo, The Life Divine, vol. 1, p. 174.
(6) Sri Aurobindo, Sri Aurobindo on Himself and on The Mother (Pondicherry, Índia: Sri Aurobindo Ashram, 1953), pp. 154-155.
(7) H. Chaudhuri, The Integral Philosophy of Sri Aurobindo, em H. Chaudhuri e F. Spiegalberg, orgs., The Integral Philosophy of Sri Aurobindo: A Commemorative Symposium (Londres: Allen & Unwin, 1960), p. 17.
॥ हरिः ॐ ॥
Copyright © 2003 Georg Feuerstein, Yoga Research and Education Center.
Extraído do livro A Tradição do Yoga (traduzido por Marcelo Brandão Cipolla), Editora Pensamento, São Paulo.
Digitado por Cristiano Bezerra.
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॥ हरिः ॐ ॥
Olá Pedro!
Hari Om
Moro em São Paulo e sou praticnte de yoga. Gostaria de conhecer e praticar o YOGA INTEGRAL de SRI AUROBINDO – PURNA YOGA. Você pode me indicar alguma escola aqui em São Paulo dessa modalidade?
Gratidão
Namaste
enky