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Considerações práticas sobre os doshas: aplicações do Ayurveda no Yoga do cotidiano

O corpo, sendo parte integrante da natureza, é orientado pelo mesmo princípio de inteligência (Brahma) que rege as leis naturais (dharma). Quanto mais atentos ficamos a esta inteligência, maior é a consciência acerca de nossas verdadeiras necessidades e mais adequadas são as nossas ações, que passam a ser orientadas pelo propósito de suprir estas necessidades, extraindo do meio os elementos complementares para a obtenção do equilíbrio

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O corpo, sendo parte integrante da natureza, é orientado pelo mesmo princípio de inteligência (Brahma) que rege as leis naturais (dharma). Quanto mais atentos ficamos a esta inteligência, maior é a consciência acerca de nossas verdadeiras necessidades e mais adequadas são as nossas ações, que passam a ser orientadas pelo propósito de suprir estas necessidades, extraindo do meio os elementos complementares para a obtenção do equilíbrio. O problema acontece quando interrompemos esse ‘fluxo’ de inteligência, nos afastando da nossa natureza através de hábitos nada naturais.

O corpo nos apresenta vários sinais quando em desequilíbrio. Porém não lhe damos a devida atenção, quando esta seria a oportunidade de erradicarmos um condicionamento nocivo em formação, ainda não ‘enraizado’.

Quando os sinais se tornam mais intensos, causando-nos um incômodo mais considerável (doenças e dores fortes), procuramos abafá-los através de comprimidos paliativos, prosseguindo com nossos hábitos, e nos acostumando ao desalinho, cultivando agora as sementes das enfermidades que iremos colher na velhice.

Nosso corpo acostuma-se ao desajuste ao ponto de perdermos o nosso referencial de saúde. Para regressarmos à ‘fonte’ de equilíbrio é necessário que ativemos a inteligência mais ‘próxima’ àquela da qual nos afastamos: o discernimento (advindo do buddhi). Através deste, repensamos nossas necessidades, escolhas e ações, iniciando um caminho mais difícil, porém necessário, de mudanças de hábitos, na busca pelo equilíbrio e na descoberta de nossa verdadeira natureza.

A insatisfação com a situação atual é o primeiro passo para a busca do equilíbrio, querer melhorar é o segundo. A partir daí, é necessário um esforço contínuo para a modificação de atitudes.

Os conhecimentos do Ayurveda associados ao Yoga nos oferecem ótimos indicadores nesse caminho de auto-descoberta, auxiliando-nos a compreender nossa natureza (prakrti) e trabalhar para diminuir nosso estado de desequilíbrio (vrakrti), harmonizando nossas relações e aprendendo a extrair da vida maiores oportunidades de crescimento.

Que este texto possa cumprir a finalidade de orientar, através de uma análise prática de cada dosha (tipo constitucional físico e psíquico), o leitor a encontrar uma aplicação útil desse conhecimento em seu Yoga cotidiano.

Pitta

Sol, fogo e calor são elementos associados às pessoas deste dosha. De natureza intensa, normalmente não passam desapercebidas. Possuem um brilho peculiar que aparece nos olhos, na pele e na expressão.

Essa intensidade, presente na vida das pessoas de fogo manifesta-se em suas ações, pensamentos, sentimentos e nos seus objetivos. São ávidas por desafios, situações que lhes estimulem a inteligência e as emoções, pois do contrário, entediam-se com facilidade.

A ‘bem-aventurança’ de pitta é proporcional ao seu desempenho em suas tarefas. Sentem-se em ‘paz’ quando bem-sucedidos.

Geralmente são excelentes no trabalho. Eficiência é uma de suas características marcantes. Adoram reconhecimento e costumam se esforçar para merecê-lo. Não que sejam dependentes dos aplausos para se valorizarem, muito pelo contrário, pois amor próprio não costuma lhes faltar. Mas um elogio é algo que apreciam e recebem com freqüência por se destacarem em suas atividades.

Essa obsessão pela eficiência, no entanto, pode comprometer a saúde física e mental das pessoas de pitta, pois quando mal conduzida, essa busca transforma-se em excesso de cobrança de si mesmo e dos outros, insatisfação constante e desejo por um perfeccionismo inalcançável.

O fogo em excesso ‘infla’ o ego das pessoas de pitta intimidando os que estão à sua volta. O poder torna-se a mola propulsora dos desejos e das ações, definindo sua conduta e a pessoa pode transformar os relacionamentos humanos em jogos de ganhar ou perder, dominar ou ser subjugado.

A competição torna-se um vício, as vezes implícita e camuflada, porém presente nos momentos mais inusitados. Deturpa a visão, impedindo as pessoas de pitta, quando imersas nesse ‘esquema’, de enxergarem a realidade, concebendo formas mais amistosas de se relacionar com outros.

Fazer da vida um jogo é estar sob tensão constante diante da ameaça da perda, o que para as pessoas de pitta pode acontecer quando sua opinião não é aceita, sua atuação não é elogiada, ou não tiram a ‘nota máxima’ no ‘colégio’ e na vida. Possuem um padrão de expectativas alto e logo frágil, facilmente quebrável pelas contingências normais da vida. Por isso sofrem muitas contrariedades em seu dia-a-dia, e reagem a elas quase sempre com impaciência ou raiva, culpando o mundo de ser tão devagar ou ineficiente.

Diante dessa inabilidade em aceitar as próprias limitações, os tipo pitta são os que possuem maior dificuldade em perceber que estão em desequilíbrio. Ainda mais quando os sintomas desse desequilíbrio são socialmente valorizados. Ambição, excesso de organização, de ordem, trabalho, competitividade, que são ensinamentos priorizados desde os primórdios da vida estudantil, mas que, sozinhos, sem outros valores, representam um coquetel explosivo nas mãos de pessoas deste dosha.

São as sementes de um futuro distúrbio gástrico, dentre outros desequilíbrios resultantes do excesso de ‘fogo’ no corpo: inflamações em geral, doenças de pele (erupções, acne, manchas, vermelhidão), sensações de calor (estômago, cabeça, febre), problemas de visão, toxinas no sangue, acidez, hemorróidas, etc.

Mediante a percepção de alguns destes sintomas ou de um comportamento excessivamente crítico e intolerante em relação às pessoas (sendo o atraso e a desorganização alheios causas freqüentes de ataques de fúria, além da sensação de que o desempenho dos colegas e subordinados nunca é satisfatório). Há então sinais claros de que chegou a hora de dar uma ‘esfriada’.

As pessoas de fogo, quando percebem a necessidade de mudança e optam por ela, costumam manter firme seu propósito, enfrentando as dificuldades da mudança com a coragem e determinação que lhes são inerentes.

Líderes natos, possuem o dom da oratória e exercem grande influência sobre as pessoas. Quando aproveitam sua inteligência para o auto-conhecimento, levam a luz do discernimento através da palavra e do exemplo.

Para isso é necessário que se desapeguem do personalismo, deixando de lado o orgulho, tirando o ego do comando para que possam explorar outras possibilidades de relação e satisfação.

É recomendado à pessoa pitta: reconsiderar as prioridades; disponibilizar mais tempo para momentos de descontração com a família e amigos; reservar um horário do dia para relaxar, ‘esfriar’ a cabeça, ouvir uma música suave, ver um filme ou ler um livro que propiciem esse estado de tranqüilidade (que não sejam de ação ou terror); beneficiar os olhos e a mente com paisagens bonitas e naturais; buscar exercitar a humildade e a compaixão, iniciando um caminho em direção ao amor, propósito mais sublime da existência.

A prática de Hatha Yoga

A prática não deve ser encarada como um jogo, e nem o corpo como objeto de ‘apostas’, no qual o desempenho e as habilidades são constantemente avaliados. O referencial de ‘ganhar’ ou ‘perder’ acaba quando o praticante escolhe não competir, deixando de utilizar seu corpo como um instrumento de satisfação do ego, e passando a concebê-lo como meio de purificação e realização do ser.

Para as pessoas de pitta, a realização das posturas deve ser utilizada como uma oportunidade para exercitar o desapego em relação à necessidade de controlar os resultados sobre as experiências (vairagya), permitindo e confiando que a natureza exercerá essa função. Quando conseguem se desvincular dessa sobrecarga de responsabilidades e relaxar, ficam mais livres para explorar outras formas de satisfação, tornando a prática menos tensa.

O esforço deve ser dosado para que não desequilibre aumentando o ‘fogo’ e expondo o corpo a inflamações.

Enquanto o ego insiste na criação de metas elevadas de conquistas, o ‘órgão’ de discernimento (buddhi) sugere o exercício da aceitação e do contentamento (santosha) durante a prática, como formas de ‘refrescar’ a energia da mente obstinada de pitta, tornando-a mais receptiva.

Essa intenção de frescor pode ser trabalhada na respiração, quando realizada de forma tranqüila e profunda, exalando pela boca quando há muito desconforto no corpo devido ao excesso de calor.

As posturas que requerem um maior emprego da força oferecem uma boa oportunidade para aprender a realizá-las sem o uso da agressividade, exercitando o princípio básico da não violência (ahimsa), essencial ao equilíbrio e desenvolvimento do propósito da prática. Esta deve ser encarada em seu aspecto mais sagrado, um momento de reencontro do praticante com a sua verdadeira natureza (svarupa), transformando seu corpo num templo de oração.

Vata

Pessoas predominantemente ‘aéreas’ e ‘etéreas’. Tendem a expressar leveza na forma do corpo e nos movimentos. Andam, falam e pensam com agilidade.

O movimento é inerente à sua natureza, que se manifesta principalmente no plano das idéias. A Natureza encontra um ‘espaço’ amplo, aberto e fértil para lançar suas sementes de criação junto à mente perspicaz das pessoas de ar.

É preciso ‘manter o ar circulando’ com regularidade e direcionamento para que essa criatividade peculiar de vata não seja exaurida , nem perca a ‘fluidez’ e ‘circulação’, fazendo com que a pessoa encontre estímulo e bom aproveitamento no trabalho e relacionamentos.

Expansividade e volatilidade são tendências naturais de ‘ar’, que em excesso na constituição psicofísica das pessoas as torna mais suscetíveis à excitação e suscetibilidade.

Qualquer mudança, seja na rotina (festividades, omitir refeições, não dormir, viagens, falecimentos de pessoas próximas, etc), no trabalho ou mesmo nas estações do ano podem comprometer o equilíbrio de vata.

Dessa forma, uma rotina bem organizada, com hábitos regulares e saudáveis, deve ser priorizada.

Uma boa ‘dieta’ de barulhos, e o afastamento temporário de locais com poluição sonora, falatórios, internet, telefonemas, e encontros e conversas fúteis já é um ótimo começo de tratamento para aqueles que apresentam sintomas de desequilíbrio neste dosha.

Alguns desses sintomas são: dificuldade em dormir, relaxar, concentrar-se, concluir raciocínios e atividades; energia e pensamentos dispersos em vários focos (falta de direcionamento e continuidade); incapacidade de estar só; necessidade de movimentação constante; impaciência, ansiedade e preocupações desmedidas; impulsividade; compulsões (comida, álcool, vícios e manias em geral); tendência a excessos (falar, comprar, pensar); olhar agitado e disperso; apetite irregular, inapetência; fadiga, fraqueza, cansaços; sintomas físicos como: prisão de ventre, gases, cólicas, ressecamento (pele, cabelo, nariz, lábios, juntas, etc), hipertensão, irregularidade dos batimentos cardíacos (incoerência cardíaca), espasmos musculares, desmaios, tremores (desequilíbrios em geral do sistema nervoso), perda de peso, dores de cabeça, fortes sintomas e desequilíbrios pré-menstruais.

Para conter esse desajuste de ‘ar’ no corpo, é preciso um esforço para não coadunar com essa tendência à agitação.

A atenção é essencial para identificar os momentos nos quais esses estados de agitação se manifestam, sejam nas ações externas (andar, falar, comer), internas (aceleração dos batimentos cardíacos, respiração curta) ou em formas mais sutis como ansiedade e excesso de atividade mental.

A meditação é uma ‘atividade’ necessária para todo ser humano, independente de sua constituição. Mas no caso de vata, é uma necessidade básica tal qual alimentar-se.

Desenvolver a capacidade de ‘contemplar’ mais e ‘fazer’ menos no dia-a-dia, e quando houver a necessidade de fazer, concentrar-se mais em cada ação.

As pessoas de vata devem conter a tendência de querer antecipar o futuro, acelerando o presente. Devem buscar satisfazer-se mais com o ‘agora’, vivenciando todas as sensações que ele proporciona, sejam elas agradáveis ou não. Direcionar sua criatividade peculiar para explorar as infinitas possibilidades de aprendizado que existem em cada momento.

A cada respiração a Criação se manifesta. Aprender a perceber a respiração. Acalmá-la… Aprofundá-la… E assim controlar mais os impulsos dos pensamentos, das emoções e das ações, tornando-as mais conscientes.

Tentar envolver-se por inteiro em cada etapa da atividade que estiver exercendo (seja um banho, cozinhar ou escrever um livro), evitando identificar-se com pensamentos não produtivos para o desenvolvimento, tais como: ‘não consigo’; ‘depois eu termino’; ‘tenho que acabar rápido, não vai dar tempo’; ‘está ficando ruim’; ‘acho que não foi boa idéia’; ‘desisto!’

Não permitir que as dificuldades materiais e limitações pessoais sejam empecilhos para seguir em frente. Encará-las como obstáculos que servem como ‘degraus’ para o crescimento, que é o verdadeiro propósito da vida.

E então, chegar ao fim! Concluir o que se começou, desvinculando-se da idéia de sucesso ou fracasso relacionada à aceitação das pessoas. Conseguir terminar já é uma vitória e o aprendizado durante o processo é o sucesso em si.

Só há um motivo que justifique interromper a concretização de uma idéia: se ela não for boa para os outros ou para si mesmo. Uma conclusão que só pode ser obtida através do discernimento, sem o qual não é possível avaliar nada com veracidade, uma vez que o motivo pode se tratar de mero disfarce criado para encobrir o desânimo, insegurança ou medo de não conseguir.

A prática de Hatha Yoga

A agitação de vata será também uma tendência a se observar no decorrer da prática. Impaciência na meditação; dificuldade de manter os olhos fechados; ímpeto de falar durante a aula com as pessoas; incapacidade de permanência nas posturas, respiração rápida e curta; dificuldade de alcançar introspecção ou obter concentração e relaxamento; propensão de se movimentar no yoganidra; ‘explosões’ e ‘quedas’ abruptas de energia e falta de resistência física são algumas características comuns manifestadas pelos praticantes com desequilíbrio neste dosha.

O centramento (terra), a fluidez (água) e o vigor (fogo) são aspectos que devem ser enfatizados durante a prática e podem também ser trabalhados durante a respiração.

A respiração é um elo que conecta a mente ao corpo e influencia diretamente nossos estados psíquicos (pensamentos e emoções). O controle do seu fluxo permite a concentração da mente e facilita a permanência no presente, ajudando a organizar melhor os nossos ‘conteúdos’ internos.

Para as pessoas de vata, o ritmo da respiração tende a acelerar repentinamente, portanto é necessária grande atentividade para perceber os momentos nos quais esse condicionamento se manifesta afim de evitá-lo, esforçando-se para conduzir um ritmo mais lento durante toda a prática, mantendo inalações e exalações mais longas e profundas.

Além disso, o aquecimento do corpo ‘frio’ de vata pode ser induzido através da realização de uma respiração vigorosa, mais quente e contínua, como o ujjayi.

No plano denso da natureza, combinação de ‘fogo e ar’ pode ser ‘explosiva’, por se tratar de uma relação de adição e estímulos mútuos. As moléculas presentes no ar se agitam quando ele é aquecido, expandindo-o ainda mais. O oxigênio presente no ar alimenta o fogo.

Para conter uma expansão ‘abrupta’ e irregular de ar no organismo e psiquismo é necessário que a fluidez inerente ao elemento água esteja presente durante toda a prática, na respiração e nos movimentos. O praticante ‘vata’ deve procurar manter um ritmo único, uniforme, conectando uma técnica à outra de forma harmônica, como num arranjo musical.

A presença das propriedades da água ajudam a evitar as possíveis ‘faíscas’ que podem surgir nesse intenso relacionamento do ar com o fogo. Manter a ‘chama acesa’, porém sempre controlada, é a atitude ideal para evitar ‘incêndios’.

O praticante deve preservar sua energia, evitando abusos e direcionando-a de forma ‘inteligente’ para que consiga sustentá-la durante toda a prática. Para isso, é preciso que contenha sua excitação e não se exceda na realização do asana.

O esforço deve ser moderado, contínuo e suave, mesmo porque os praticantes de vata possuem uma tendência a machucarem-se com mais facilidade devido à certa fragilidade em sua estrutura óssea, bem como à ausência de uma musculatura ‘forte’ para sustentá-la.

As articulações desse tipo constitutivo requerem atenção especial durante a prática, priorizando-se movimentos que estimulem a sua lubrificação (produção de líquido sinovial) e asanas que fortaleçam a musculatura que as envolvem.

Devido à carência de ‘água’ no corpo, comum nas pessoas com desequilíbrio neste dosha, pode haver ressecamento e rigidez nas articulações, restringindo a mobilidade. Portanto é aconselhável que o alongamento seja trabalhado com cuidado e precedido de movimentos que aqueçam e ‘umidifiquem’ a articulação.

A ‘volatilidade’ excessiva deste dosha pode ser controlada durante as posturas realizadas com os ‘pés no chão’, enfatizando-se o ‘enraizamento’ e concentrando-se na atuação da força da gravidade e no direcionamento do fluxo de apana vayu para baixo; na firmeza das pernas e na contração da região do assoalho pélvico, que apesar de elevar a energia, cria uma estruturação e firmeza muscular auxiliando na estabilização do corpo na postura.

O Yoga atua como uma bússola para o praticante de ‘ar’, auxiliando-o a se orientar, organizar sua intimidade, coordenar melhor suas ações e estabelecer um ritmo adequado e disciplinado para se expressar na vida.

Kapha

A receptividade e estrutura da terra. A fluidez e aderência da água. Aspectos que transmitem a este dosha uma expressão mais feminina, maternal, que se manifesta na sensibilidade e doçura com que geralmente percebem e interagem com o mundo.

Devido à sua natureza mais introspectiva, não costumam ser os ‘mais populares’ da turma. Sua intimidade costuma ser compartilhada em restritas relações, às quais costuma devotar-se com intensa lealdade.

Costumam ‘pensar com o coração’: interpretar os fatos, definir suas escolhas e conduzir suas ações baseando-se em suas emoções e sentimentos.

Para estas pessoas, ‘sentir a vida é mais fácil do que racionalizá-la’. Por comodismo, podem se deixar levar pelas conveniências, conformando-se ao status quo, corroborando ainda mais com uma tendência à inércia e à passividade, que muitas vezes é confundida com calma e pacifismo.

A pessoa de constituição kapha, costuma ‘reter’ mais as impressões (samskaras) que as de outros doshas. A identificação com essas impressões é tanta, que se desvencilhar delas seria como amputar uma perna, ou retirar sua ‘segurança’. O apego a essa falsa estabilidade faz com que as pessoas de kapha se encarcerem em uma represa de emoções, impedindo o ‘rio’ de percorrer seu caminho em direção ao ‘mar’.

A carência de fogo (agni e tejas) no complexo corpo-mente prejudica a digestão do alimento físico, mental e emocional, contribuindo ainda mais para esse ‘acúmulo’ de impressões que uma vez retidas, contribuem na formação de couraças musculares e no desenvolvimento de depressão, letargia, (física e intelectual), mágoa, isolamento (insegurança), problemas respiratórios (congestões, resfriados, asma), acúmulo de líquidos e gordura (obesidade), diabetes, tumores, dentre outros.

Neste dosha, a estimulação do fogo é muito necessária para ajudar a combater a inércia e o desânimo, e dessa forma auxiliar na conquista de seu espaço no mundo, desenvolvendo suas potencialidades, notadamente a brandura e a compaixão.

Por outro lado as qualidades de firmeza e estabilidade inerentes a este dosha, podem gerar apego a formas específicas de pensar, construindo estruturas mentais e emocionais arraigadas que acabam por distanciar as pessoas de kapha do meio que as cerca, dando-lhes uma falsa sensação de proteção e segurança, que podem se transformar em isolamento e misantropia.

Há alguns outros fatores que influenciam na desarmonia de kapha, como: clima frio e chuvoso, alimentação inadequada (excesso de frituras, açúcar e sal), obesidade, predisposição genética (diabetes, alergia, tendência a engordar), dormir demais, falta de estímulos mentais e de atividade física.

O movimento é inerente à vida, portanto é necessário que deixem o rio correr, desenvolvendo a percepção de quais são os momentos em que interrompem esse fluxo, a fim de obter equilíbrio físico e mental.

Buscar novos estímulos, propor-se desafios, desenvolver projetos, praticar exercícios físicos, valorizar o esforço, são formas de estimular o fogo interno em vários níveis e ativar a ‘digestão’, o metabolismo e o discernimento, aspectos essenciais à desobstrução da energia e ao processo de autoconhecimento.

A prática de Hatha Yoga

Os praticantes do dosha kapha devem pensar na prática como uma oportunidade de verificar e testar seus limites físicos, mentais e emocionais. Uma maneira de exercitar o ‘entusiasmo’ durante todo o processo, que pode ser explorado através da respiração forte e profunda, podendo até ser mais rápida quando necessário.

Alguns pranayamas indicados são o bhastrika e o kapalabhati, ambos ativadores do fogo digestivo (jataragni).

Os movimentos devem ser realizados priorizando fluidez, leveza e certa agilidade, permitindo que essas características influenciem a psique, movimentando a energia de kapha.

As pessoas com desequilíbrio neste dosha tendem à preguiça e à inércia, portanto devem estimular a determinação durante a permanência nas posturas.

Tapas, que é o ‘ardor’ gerado pelo esforço empreendido, deve ser constantemente buscado por kapha, seja no plano físico, ou na intenção de ter determinação. Algumas posturas trazem mais ênfase a esse trabalho de força, como virabhadrasana, utkatasana, utiplutihi (tolasana), devyasana, mayurasana, shalabhasana, navasana, entre outras.

As contrações nas regiões inferiores do corpo (mula bandha e udyana bandha) auxiliam a ‘despertar’ a energia concentrada em baixo, invertendo o fluxo do apana vayu.

As posturas invertidas também têm muita utilidade nesse sentido, pois são excelentes para suprimir o ‘apoio’ de kapha, tirando-o de seu conforto e ‘segurança’ comodistas e induzindo-o a modificar o enfoque da visão, descobrindo assim novas possibilidades.

Uma consideração final

Constantemente interagimos com o meio que nos cerca, assimilando características e influências que transformam a nossa situação interior, definindo assim a vrakriti, o estado de desequilíbrio em relação ao dosha original (também conhecido como prakrti, ou natureza).

Um alimento que comemos, a mudança climática, o horário do dia, a estação do ano, uma pessoa que encontramos, um filme ou música marcante, um livro que lemos, tudo que vivenciamos nos impregna de novas energias que serão digeridas e assimiladas influenciando o nosso estado atual.

Nascemos com uma constituição específica, que é em parte herdada dos nossos pais (através da herança genética), mas também construída pelos resultados das ações de nossas vivências passadas (herança kármica) e por nossas propensões e idiossincrasias. No entanto as proporções percentuais dos doshas dentro de nós sempre estão variando, e é exatamente isso que gera desequilíbrios, tirando-nos de nossa normalidade.

Vata, pitta e kapha são princípios energéticos que estão em constante movimento e, por isso, devemos sempre estar atentos ao presente, avaliando com clareza a nossa situação atual para saber como conduzir a nossa ‘prática’ e as ações do dia-a-dia, novamente rumo ao equilíbrio original, que é sempre relativo à nossa natureza.

Cristiane Carvalho dá aulas de Yoga no Deha em Belo Horizonte e cursos de terapias ayurvêdicas. crislacorte@yahoo.com.br

Este texto foi publicado originalmente nos Cadernos de Yoga: www.cadernosdeyoga.com.br

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2 respostas para “Considerações práticas sobre os doshas: aplicações do Ayurveda no Yoga do cotidiano”

  1. Artigo excelente ???? de leitura prazeirosa e muito elucidativo

  2. Adorei. Finalmente me concientizei que sou Vata. Sempre que respondo os questionários a predominancia é Vata. Porem existe uma tendencia ao Pitta em alguns questionários, sempre em menor numero do que Vata. Neste texto pude perceber quase que 100% Vata.
    Agora o meu Vrikriti esta ficando Tridosha Ainda tenho dificuldade em saber os desequilibrios, pois quando vamos envelhecendo nossos doshas vão mudando. Fico sem saber se estou ficando tridosha pela idade avançada ou se estou em desequilibrio. Mesmo assim creio que tenho que me equilibrar no meu dosha de origem, porém tenho ainda dúvidas.
    Se puder me orientar agradeço.

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