Eis um pequeno resumo do que somos, como nos vemos e como vivemos, com algumas soluções que o Vedanta e o Yoga apontam para separar fatos de crenças e ter uma vida mais tranqüila e feliz.
Fato 1: nascimento.
Nascemos neste mundo, em diversas famílias, culturas e nações, falando línguas e cultivando usos e costumes diferentes em cada canto do planeta. Desde o nascimento, na medida em que crescemos, estabelecemos conexões que irão construir uma noção de quem nós somos e o que estamos fazendo nesta vida.
Fato 2: percepção das aparências.
Crescemos e, conforme aprendemos a usar os sentidos e a mente, percebemos que o mundo é feito de formas, que por sua vez são descritas por nomes. Todos estes nomes e formas são intrinsecamente limitados, embora isso nem sempre esteja claro para o nosso julgamento.
Fato 3: auto-reconhecimento.
Começamos assim a perceber a nós mesmos como uma dessas formas peculiares, que responde a um nome específico, geralmente dado por nossos pais. Paralelamente a isso, nascem as noções de auto-identidade e separação.
Crença 1: separação.
Compreendemos que esse nome-forma chamado ‘eu’, é diferente e está separado dos demais nomes-formas que, por sua vez, são todos diferentes e separados entre si, cada um com um limite físico bem definido.
Fato 4: existimos, o mundo existe.
Desde seu ponto de vista, existem apenas duas coisas: o mundo e você. O mundo está aí e você está aqui, para perceber o que há para ser percebido. Você é o sujeito que percebe. O mundo é o objeto que é percebido.
Fato 5: desejo e aversão.
Vivendo experiências de desejo e aversão, as interpretamos a partir de valores aprendidos olhando para os demais e para o lugar onde vivemos. Naturalmente, surge o impulso de satisfazer os desejos, evitando o desconforto e o desprazer.
Fato 6: interpretação.
Quando isso acontece e você consegue repetir uma experiência prazerosa, você diz que está feliz. Quando isso não acontece e você repete uma experiência dolorosa, você diz que está infeliz.
Fato 7: desconexão.
A luta pela realização dos desejos tem um preço: esquecendo quem somos, nos afastamos das nossas emoções e sensações. Assim, vivemos num estado de incessante ansiedade, de vontade de nos tornar algo diferente daquilo que somos para assim, finalmente, encontrarmos a felicidade.
Crença 2: identidade equivocada.
Isso, por sua vez, traduz-se numa distorção da auto-percepção e na incapacidade de compreender quem de fato somos. Assim, construímos uma identidade nós mesmos, como sendo separados do todo. Esse ‘eu’, separado, é aquele que irá julgar e interpretar cada situação vivida.
Crença 3: senso de inadequação.
Julgando a nós mesmos a partir da incapacidade de satisfazer nossos desejos, criamos uma fricção interna contínua: a vontade se sermos diferentes do que somos. Isso acontece porque sempre imaginamos que há alguém mais feliz que nós mesmos, noutro lugar, tendo algo que nós não temos.
Fato 8: sofrimento.
Incapazes de apreciarmos a verdadeira felicidade, passamos a viver unicamente para satisfazer desejos e vontades. Assim, entramos na ciranda de buscar a felicidade nas diversas experiências, e sofremos incessantemente. Sofremos na ausência daquilo que queremos. Sofremos na presença daquilo que temos, por medo de perdê-lo.
Solução 1: aceitar aquilo que não pode ser mudado.
Não há nada de errado com os fatos acima listados. Eles fazem parte da natureza da vida e são inescapáveis. Sendo inevitáveis, não deveriam ser uma fonte de angústia ou conflito. ‘Porque iríamos nos preocupar com algo que não tem solução, se de fato não há solução?’, perguntou o grande filósofo budista Shantideva. O que não tem remédio, remediado está, diz o ditado português.
Solução 2: aceitar aquilo que pode ser mudado.
Já o mesmo não pode ser dito em relação às crenças. Elas sim podem ser evitadas e removidas. Se formos pensar, todas as experiências ligadas ao sofrimento surgem da presunção de que satisfazendo desejos, finalmente nos tornaremos felizes. A forma mais eficiente que temos de remover as crenças é estabelecer uma des-identificação em relação a elas. Em verdade, esse estado de não identificação com nossos pensamentos e julgamentos é a nossa verdadeira natureza, ensina o sábio Patañjali.
Solução 3: discernimento.
Compreender a diferença entre o que pode e o que não pode ser mudado é essencial para manter a calma. Quando estamos confundidos em relação a isso, remamos contra a corrente sem sair do lugar. Não perceber a capacidade de transformação significa ficar aquém das nossas possibilidades. Fatalismo e resignação são as conseqüências naturais desse erro. Por outro lado, querer mudar aquilo que não pode ser mudado (por exemplo o passado) nos desgasta imensamente.
Fato 9: satisfazer desejos não traz felicidade.
Como os desejos não têm fim e são intrinsecamente limitados, a crença de que a felicidade duradoura poderá nascer de satisfazê-los só pode estar equivocada. Desejamos ser diferentes do que somos, bem como gostaríamos que o mundo fosse diferente do que é. Esse sentimento é comum a todos os humanos. Não é possível permanecer indiferente a ele.
Fato 10: resignação.
O imortal Schopenhauer disse uma vez: ‘Para muitas pessoas, os filósofos são noctívagos inoportunos que as perturbam durante o sono’. Os filósofos-yogis são aquilo que minha amiga Manu Mendonça descreveu como despertadores ambulantes. É por isso que algumas pessoas se incomodam quando eles estão por perto. Não há nada mais confortável que a insensibilidade. Nem nada mais chato que um despertador tocando quando tudo o que queremos é continuar dormindo. Aqueles que dormem, diz o grego Heráclito: ‘não sabem o que fazem quando estão despertos, do mesmo modo que esquecem o que fazem durante o sono’.
Solução 4: o sofrimento que ainda não surgiu pode ser evitado.
A frase acima é do sábio Patañjali. Se não é possível livrar-se do sofrimento que já passou, é bom lembrarmos que não precisamos viver para sempre com ele. Páginas já passadas podem ser viradas. É nossa escolha definir como viveremos este presente e o futuro. Se soubermos contar até dez antes de tomar uma decisão precipitada, provavelmente conseguiremos evitar as situações indesejáveis e o sofrimento que vem inevitavelmente com elas.
Fato 11: maturidade ajuda a compreender.
Porém, devemos reconhecer que, enquanto humanos, possuímos capacidade de escolha e discernimento. Como nem sempre sabemos usar construtivamente essa liberdade de escolha, acreditamos que realizar mudanças na vida irá trazer sossego e felicidade. Não há nada de errado em buscar mudar as coisas; pelo contrário, é impossível viver sem interagir com (e conseqüentemente mudar) o mundo à nossa volta. O problema é achar que as mudanças por si mesmas irão trazer plenitude ou corrigir essa distorção de imagem que carregamos.
Crença 4: mudanças trazem felicidade.
Ao invés de fazer as ações porque é correto fazê-las, as fazemos pensando que, dos seus frutos, surgirá finalmente a felicidade. Toda mudança é feita, no fundo, buscando mudar a nós mesmos, ainda que as expectativas estejam dirigidas a outras pessoas ou ao mundo exterior. Atrás de toda vontade de mudar as coisas há a secreta esperança de que, criadas as situações adequadas, nada possa voltar a nos perturbar. Isso acaba por costurar uma rede de erros de julgamento da qual não conseguimos mais sair.
Solução 5: evitar identificar-se com os próprios julgamentos.
‘Para Deus tudo é belo e bom e justo; os homens, contudo, julgam umas coisas injustas e outras justas.’ Os homens aos quais se refere o filósofo grego Heráclito nesta afirmação, não são os homens inteiros, mas apenas seus egos. Para assumir a verdadeira identidade divina que os humanos somos, devemos aprender a evitar a identificação com desejos, vontades e julgamentos do ego.
Solução 6: autoconhecimento é liberdade.
Cito novamente Schopenhauer: ‘da árvore do silêncio pende seu fruto: a paz’. Assim, conhecendo a nós mesmos como esse silêncio que subjaz nos desejos, vontades e julgamentos, compreendemos ser a paz e a felicidade que estávamos buscando. Heráclito de Éfeso escreveu que ‘só uma coisa é sábia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo’. Nas palavras do grande pensador Adi Shankara, o Ser é auto-efulgente (atmabhati). Ele não precisa refletir alguma outra luz para brilhar. Brilha por si mesmo. O brilho do Ser é o autoconhecimento, que se manifesta em todos os nomes e formas. A luz do Ser não se opõe às trevas. Namaste!
Publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal: www.eyoga.com.br.
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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