Yoga da distinção entre a Matéria e o Espírito
Fala Arjuna (1):
O que é matéria e o que é Espírito? Que se entende por meio e conhecedor do meio, por conhecimento e objeto do conhecimento? Eis o que desejo saber, ó Keshava.
Fala Krishna:
1. Este corpo, filho de Kuntí, é chamado meio (2) e aquele que o conhece é chamado pelos sábios de conhecedor do meio (3).
2. Sabe também que Eu sou o conhecedor do meio em todos os meios (4), filho de Bhárata. A ciência que abarca o meio e o conhecedor do meio é, a Meu ver, o que constitui a verdadeira sabedoria.
3. Escuta agora o que vou expor-te sobre o que é o meio, suas qualidades, modificações e origens, assim como sobre o que é o Espírito e quais são Seus poderes.
4. Ele já foi celebrado de várias maneiras pelos rishis nos diversos hinos vêdicos e também nos Brahma-sútras (5) que dele apresentam a análise racional e filosófica.
5. A energia imanifesta, indiscriminada (6); os cinco estados elementares da matéria (7); os dez sentidos e o sentido interno (8) e os cinco domínios dos sentidos (9);
6. atração e aversão, prazer e dor, consciência (10), resistência (11) e o organismo (12); eis o que constitui o meio e suas diversas modificações.
7. Modéstia, sinceridade, mansidão, paciência, retidão, submissão ao mestre, pureza, constância, domínio de si mesmo;
8. indiferença pelos objetos dos sentidos, falta de egoísmo, reflexão sobre os males inerentes ao nascimento, decrepitude, enfermidade, dor e morte (13);
9. desinteresse, ausência de idolatria pelos filhos, esposa, moradia e outros objetos; contínua igualdade de ânimo nos acontecimentos agradáveis e desagradáveis;
10. constante, fervorosa e exclusiva devoção a Mim, retiro em lugares solitários, aversão ao mundo;
11. aplicação assídua ao conhecimento do Supremo Espírito e reflexão sobre o bem que decorre do conhecimento da verdade; eis em que consiste a sabedoria. Tudo que se opõe a isso é ignorância.
12. Vou mostrar-te agora o que se deve conhecer; Aquele através de cujo conhecimento se alcança a Imortalidade: o eterno e supremo Brahman, que não é qualificado nem como Ser, nem como não-ser (14).
13. Suas mãos e seus pés estão por toda parte à nossa volta. Suas cabeças, seus olhos e suas bocas são esses rostos inúmeros que vemos por toda parte. Seus ouvidos estão em toda parte. Incomensurável, Ele preenche e envolve todo o universo. Ele é o ser universal e nele vivemos.
14. Carecendo de sentidos, reflete-se em todas as funções sensitivas (15); desligado de todas as coisas, é seu suporte e isento de qualidades (16), participando de todas elas.
15. Encontra-se dentro e fora de todos os seres. É imóvel e ao mesmo tempo dotado de movimento. É imperceptível em sua sutileza extrema, e está ao mesmo tempo próximo e distante (17).
16. Indivisível, parece dividir-se em formas e criaturas distintas. Sustentáculo de todos os seres, é o que as engendra e devora.
17. Luz de todas as luzes, brilha acima das trevas profundas. É o conhecimento e o objeto do conhecimento que reside em todos os corações.
18. Assim brevemente expliquei-te o que é o meio, o conhecimento e o objeto do conhecimento. Meu devoto, sabendo isso, entra em Minha Essência.
19. Entende que tanto a matéria como o Espírito não têm princípio, e sabe igualmente que as modificações e qualidades nascem da matéria.
20. A matéria é considerada o agente produtor de causa e efeitos, enquanto que o espírito é o princípio que experimenta as sensações de prazer e dor.
21. Pois, desde que o Espírito reside na matéria, experimenta as (influências das) qualidades nela originadas. E seu apego a tais qualidades é causa de sua reencarnação em uma matriz boa ou má (18).
22. Testemunha, fonte de assentimento (19), experimentador, Senhor Soberano e também Eu Supremo, assim é o Supremo Espírito que habita este corpo.
23. Aquele que assim conhece o Espírito e a matéria com suas qualidades, seja qual for a sua condição, deixa de estar sujeito ao renascimento.
24. Esse conhecimento pode ser alcançado pela meditação interior, através da qual o Eu Eterno se desvela em nós mesmos, ou pelo Sámkhya-Yoga (20), ou ainda pelo Yoga da ação.
25. Existem alguns que, ignorando esses caminhos do Yoga, meditam sobre o que ouviram de lábios alheios. Também eles, atendo-se de coração ao que ouviram, libertam-se da morte.
26. Sabe, príncipe dos Bháratas, que todos os seres existentes, animados ou inanimados, são produto da união do meio e do conhecedor do meio.
27. Vê a verdade aquele que percebe o Senhor excelso presente da mesma forma em todas as criaturas, Imperecível no seio do perecível.
28. Aquele que vê o Senhor sempre igual, como habitante espiritual de todas as forças, todas as coisas e todos os seres, não se perde a si mesmo, e, dessa forma, atinge a Meta Suprema.
29. Também vê a verdade aquele que percebe que todas as ações são executadas pela matéria (21), e que o Espírito permanece inativo.
30. Quando reconhece que todas as numerosas variedades de seres radicam no Uno e somente d’Ele procedem, alcança Brahman.
31. Carecendo de princípio e estando isento de qualidades, o Imperecível Espírito Supremo não age, nem é maculado pela ação, ainda que esteja alojado no corpo, filho de Kuntí.
32. Assim como o éter, que tudo penetra, não é afetado por nenhuma impureza, graças à sua sutileza, o Espírito, presente em todas as partes, permanece imaculado no corpo.
33. Como um único Sol ilumina toda a Terra, o Senhor do meio ilumina todo o meio, ó descendente de Bhárata.
34. Aqueles que, com o olho da sabedoria, vêem dessa forma a diferença entre o meio e o conhecedor do meio, e como os seres se libertam da matéria, atingem o Supremo.
Notas:
(1) Esse versículo, que consta da edição do Mahabhárata de Calcutá, de Annie Besant e Bhagaván Dás e de vários manuscritos, entre os quais o da Biblioteca Nacional de Paris, é provavelmente adicional.
(2) Kshetra significa “perecível” e também “residência, morada, terreno, campo, matéria, corpo”, etc. Todas essas acepções se aplicam a esse caso. “Residência”, porque a matéria é morada do Espírito; “campo”, por ser o terreno em que se semeiam as sementes boas ou más e onde se colhem os frutos de nossas ações; “corpo”, porque é o veículo do Eu individual. É preciso notar, no entanto, que não se trata simplesmente do corpo físico, ou da matéria grosseira, mas do agregado de todos os componentes que integram a parte material do ser humano, incluindo os sentidos, a mente, etc. O termo “meio”, a meu ver, é o que mais se aproxima do termo em questão, denotando a substância, centro ou espaço material em que reside o Espírito.
(3) Kshetrajña. O Espírito individual, o verdadeiro Eu, o Espírito Supremo e consciente, presente em todos os seres do Universo.
(4) O Espírito individual, próprio de cada ser, é uma parte do Espírito Universal.
(5) Aforismos referentes a Brahman, atribuídos a Vyasadeva.
(6) Avyakta.
(7) Mahábhútas.
(8) Indriyas, as cinco faculdades sensitivas e os cinco poderes de ação, e Manas, sentido interno.
(9) Góshara, as cinco classes de objetos, correspondentes aos cinco sentidos.
(10) Chaitánya.
(11) Dhriti. Segundo Ádi Shankaracharya, uma força que provém do interior do organismo, graças à qual o corpo recupera as energias perdidas depois de cair em estado de abatimento.
(12) Sangháta.
(13) A reflexão sobre os males inerentes à vida terrena é um escudo poderoso contra as seduções que pode nos oferecer a vida com sua felicidade ilusória.
(14) Sat e Asat. Carecendo de qualidades e sendo inativo por si mesmo, Brahman, o Inconcebível, só pode ser descrito através de negações (não é isso, nem aquilo). Nenhuma palavra pode expressá-lo.
(15) O Espírito é passivo, mas refletindo-se nas funções de todos os sentidos e faculdade de nosso ser, aparenta ser ativo.
(16) Gunas.
(17) Próximo do homem iluminado, virtuoso; distante do ignorante.
(18) A influência das três qualidades (gunas) determina as condições do futuro nascimento.
(19) Anumanta, o que consente ou permite.
(20) Segundo os comentadores, não se trata aqui da doutrina de Kapila (Sámkhya), mas do Yoga do conhecimento.
(21) Isto é, pela ação dos três gunas, que emanam da Natureza material.
Traduzido para o castelhano por Roviralta Borrel (1856-1926), e deste para o português por Eloísa Ferreira.
Publicado originalmente pela Editora Três, de São Paulo, em 1973, na Biblioteca Planeta, Volume 7.
Digitado por Cristiano Bezerra.