Hoje estava ouvindo a música da Madonna chamada Die another day (“Morrer outro dia”), que dá nome a um dos filmes da série do espião James Bond. A letra dessa música recolhe algumas ideias centrais da prática yogika. Num trecho, que chamou bastante minha atenção, essa música diz três coisas:
“I’m gonna suspend my senses.
I’m gonna destroy my ego.
I’m gonna delay my pleasure.”
Traduzindo:
“Vou suspender meus sentidos.
Vou destruir meu ego.
Vou retardar meu prazer.”
A primeira dessas três ideias, “suspender os sentidos”, é uma das práticas mais importantes do Yoga, chamada em sânscrito pratyāhāra. O pratyāhāra consiste justamente em “desligar” os órgãos sensoriais, ou melhor, a influência que os estímulos sensoriais exercem sobre a mente através deles.
Dentro do Yoga Clássico, essa prática constitui a interface entre as práticas físicas e as meditativas, sendo essencial seu domínio para podermos dar o salto da esfera física para a espiritual.
A segunda ideia, a “destruição do ego”, está relacionada com o objetivo final do Yoga, que é mokṣa ou a liberdade em relação a condicionamentos, crenças e desejos.
O ego é uma máscara, uma interface que nos ajuda a viver no mundo. Porém, não devemos interpretar literalmente a expressão “destruição do ego”, muito embora essa sugestão esteja explícita em obras como o Upadeśa Saram, de Śrī Rāmaṇa Mahaṛṣi.
É preciso compreendermos que o ensinamento vem “embrulhado” numa linguagem muito peculiar, que precisa ser corretamente desvendada para fazer sentido. A “destruição do ego” não se refere a apagar o ego, mas a deixar de identificar-se com ele, a enxergar aquilo que somos para mais além das tênues e frágeis fronteiras do ego e seus desejos.
Cabe lembrar aqui que o ego, ahaṅkāra (literalmente “fazedor [da noção] de eu”, em sânscrito), é uma função psíquica que se encarrega dos relacionamentos do indivíduo com a sociedade, as demais pessoas e o mundo, além de manifestar-se na forma dos desejos e aversões que definem cada personalidade.
Se conviver com o ego é tarefa desafiante, viver sem ele é impossível. Portanto, não se trata de eliminar o ego mas de iluminá-lo.
O Yoga ensina que o problema é que nos identificamos tanto com as máscaras que usamos para viver no mundo que perdemos de vista a pessoa fundamental que somos, Ātma. Junto com essa amnésia existencial, perdemos de vista igualmente a nossa própria razão de viver.
Quando acontece a identificação com o ego, nos percebemos como seres separados da existência, vendo o mundo apenas em termos de apego ou aversão pelas coisas e pessoas que nos rodeiam. Dessa maneira, a vida transcorre numa troca incessante de estados anímicos que refletem esses dois pólos.
A destruição ou a “morte do ego” não significa que o praticante se submete a algum tipo de lobotomia psíquica, em que se amputa o ego, senão que este passa a ocupar o espaço que lhe corresponde, criando assim espaço para que a essência espiritual resplandeça. Esse processo consiste em:
1) reconhecer a identificação com o ego,
2) perceber suas limitações como um obstáculo para a felicidade,
3) colocar o ego em seu devido lugar, e
4) perceber a si próprio como parte da Consciência presente em todas as coisas.
A terceira ideia, “retardar o prazer”, está vinculada com a prática de maithuṇā, um ritual sexual do tantrismo Vāmamārga, em que se evita o orgasmo e a dispersão de energia que advêm dele, para entesourar e sublimar essa energia psicossomática, transformando-a em energia espiritual.
A prática tradicional de maithuṇā é a culminação de uma longa cerimônia, o pañcamakāra, que não tem nada a ver com licenciosidade ou luxúria desenfreada, como se acredita hoje em certos círculos de Yoga.
Nela, os participantes, que geralmente ficam no meio de um círculo de adeptos chamado cakrapūjā, meditam longamente, durante o próprio ato sexual, nos aspectos feminino e masculino da divindade, Śiva e Śakti.
Todas essas são idéias e processos que fazem parte da cultura yogue. Depois, Madonna continua cantando: “Sigmund Freud, analize this. And this, and this…” (“Sigmund Freud, analise isto. E isto, e isto…”).
Graças à prática de Yoga, Madonna descobriu algo que Freud morreu sem suspeitar: como seres humanos, nós vamos muito além dos nossos sentidos, do nosso ego e da nossa libido.
Antes que algum honorável psicanalista ou psicólogo se sinta ofendido por essa afirmação, devo dizer que essa idéia não é nasceu da mente deste jovem autor. Śrī Aurobindo, um dos maiores mestres de Yoga contemporâneos, que estudou durante sua juventude na Universidade de Oxford e conheceu a fundo as ideias de Freud, escreveu em seu livro Bases of Yoga:
“Sinto dificuldade em levar estes psicanalistas a sério. (…) Eles observam desde baixo e explicam as luzes mais elevadas partindo da escuridão inferior; porém, a fundação destas coisas está acima e não abaixo.
“O superconsciente, e não o subconsciente, é o verdadeiro alicerce das coisas. O significado profundo do lótus não se encontra analisando os secretos da lama onde ele cresce; seu secreto se revela no arquétipo celestial do lótus que floresce eternamente na Luz superior. (…)
“Você precisa conhecer a totalidade antes de conhecer as partes e conhecer o mais elevado antes de pretender entender o inferior.”
Para aqueles que desejarem aprofundar-se nesse tema, reproduzimos, no final deste artigo, no original inglês, um ensaio deste grande mestre sobre a visão que o Yoga tem da psicanálise freudiana.
Sinal dos tempos: a filosofia yogika saiu do âmbito exclusivo dos mosteiros e círculos de praticantes para fazer-se presente na música popular, misturando-se aos temas recorrentes nela, como o amor não correspondido, a dor de cotovelo, o “I love my baby“, etc.
Isso parece confirmar-nos que alguns elementos dessa milenar filosofia foram integrados de maneira permanente à cultura pop.
A presença de temas de Yoga na música de Madonna é o mais novo capítulo de um livro que está sendo escrito há mais de cem anos: o livro que relata o caso de amor entre o Yoga e o Ocidente.
O Yoga percorreu um longo caminho no Ocidente, desde que atravessou os oceanos pela mão de Swāmi Vivekānanda em 1893.
Vivekānanda, o primeiro yogin indiano a fazer a viagem para Ocidente, foi seguido por muitos outros mestres e abriu um canal que nós, ocidentais, continuamos utilizando para saciar nossa sede de conhecimento e realização espiritual.
Ao longo do último século, houve momentos de grande entusiasmo e paixão nesse caso amoroso, alternados com momentos em que o Ocidente pareceu esquecer completamente o Yoga.
Hoje estamos vivendo um momento peculiar desse movimento pendular, no qual o Yoga está conhecendo uma popularidade sem precedentes e melhorando a qualidade de vida de milhões de pessoas.
॥ हरिः ॐ ॥
Sri Aurobindo on Psychoanalysis
The psychoanalysis of Freud … takes up a certain part, the darkest, the most perilous, the unhealthiest part of the nature … isolates some of its most morbid phenomena and attributes to it and them an action out of all proportion to its true role in the nature. …
The exaggeration of the importance of suppressed sexual complexes is a dangerous falsehood and it can have a nasty influence and tend to make the mind and vital more and not less fundamentally impure than before.
The lower vital subconscious which is all that this psychoanalysis of Freud seems to know – and even of that it knows only a few ill-lit corners, – is no more than a restricted and very inferior portion of the subliminal whole. … To raise it up prematurely or improperly for experience is to risk suffusing the conscious parts also with its dark and dirty stuff …
Always therefore one should begin by a positive, not a negative experience, by bringing down something of the divine nature, calm, light, equanimity, purity, divine strength into the parts of the conscious being that have to be changed, only when that has been sufficiently done and there is a firm positive basis, is it safe to raise up the concealed subconscious adverse elements in order to destroy and eliminate them by the strength of the divine calm, light, force and knowledge.
I find it difficult to take these psychoanalysts at all seriously … They look from down up and explain the higher lights by the lower obscurities; but the foundation of these things is above and not below.
The superconscient, not the subconscient, is the true foundation of things. The significance of the lotus is not to be found by analyzing the secrets of the mud from which it grows here; its secret is to be found in the heavenly archetype of the lotus that blooms for ever in the Light above.
Sri Aurobindo, Bases of Yoga.
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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Estou trabalhando num projeto em Curitiba, para o entendimento e expansão do Yoga como cultura na vida dos cidadãos.
Adorei suas perspectivas e a abordagem de seus escritos.
Sou psicanalista de formação e muitas coisas q vc trás são d interesse geral para nós profissionais.
Desde a academia argumentava que nosso aprendizado era absolutamente incompleto, pois desde os estudos da cadeira de filosofia, visitamos apenas os filósofos ocidentais.
Daí dizer + seria redundar … então queria apenas deixar o meu abraço e pedir para q meu nome seja incorporado ao seu mail list.
Gostaria de manter-me atualizada de suas atividades, bem como receber seus artigos.
Ótimo artigo. Sem o pré-conceito de que pop = ruim. Parte do mérito da cantora em questão é trazer algo que não é conhecido das grandes massas para o mainstream…e com o yoga não foi diferente, através de suas músicas e inúmeros ensaios fotográficos em àsanas que exigem, pelo menos, uma disciplina espartana.