Esta extensa entrevista foi elaborada e proposta ao Pedro por António Matos, para o curso de Licenciatura em Estudos Asiáticos da Universidade de Lisboa. António explica que a entrevista tem três propósitos principais:
1- Conhecer o testemunho pessoal directo do Pedro enquanto praticante-estudante-professor desta tradição viva.
2- Investigar sobre o Haṭha Yoga tradicional (até ao século XX, no contexto do Hinduísmo)
3- Perceber em que medida o que hoje fazemos como Haṭha Yoga se pode enquadrar nessa tradição anterior.
Bom, aqui está na íntegra. Disponiblizamos ela para os nossos leitores de maneira que possa motivar os estudos e as práticas de todos. Namaste.
1 – Como o Haṭha Yoga apareceu na sua vida? Como se decidiu a praticar, estudar e ensinar esta tradição? Com quem apreendeu Haṭha Yoga?
Há 31 anos, um amigo me apresentou um livro do filósofo Alan Watts, que falava sobre a meditação no mantra Oṁ. Por alguma razão, esse texto, que dizia que para viver em estado de liberdade era preciso “chegar no Oṁ”, me tocou profundamente e me motivou a começar a prática. Assim que fiz as primeiras práticas no Satyananda Niketan, em Montevidéu, senti que havia algo muito bom no Yoga e descobri que praticar, estudar (e, posteriormente, ensinar) o Yoga era minha vocação.
Meus professores mais importantes (no sentido que me inspiraram e ensinaram coisas fundamentais) foram, pela ordem cronológica: Janardhana Zoppolo, do instituto acima mencionado, Śrī Rudradev, que na década de 1980 era o professor de Haṭha Yoga do Sivananda Āśram de Rishikesh, o Dr. Thomas Arya, do Omanand Yogashram de Indore, e Swāmi Dayānanda, do Arshavidya Gurukulam de Rishikesh. Este último não ensina propriamente as técnicas do Haṭha Yoga mas transmite o ensinamento que é a visão presente na tradição do próprio Haṭha. Afora eles, pratiquei e estudei com muitos outros Swāmis e professores ao longo estas décadas.
2 – Haṭha Yoga é o “Yoga da harmonia do Sol e da Lua (+ e -)” ou é o “Yoga da força/violência”? Como definiria Haṭha Yoga?
Na definição popular do Haṭha como o Yoga da “harmonia do Sol e da Lua”, a presença da palavra harmonia é interpretativa: ela não está implícita nesse nome. A língua sânscrita é polissémica: cada palavra pode ter variados significados. Assim, haṭha quer dizer, de facto, “força extrema”. Mas, numa leitura esotérica, na qual se atenta aos elementos que compõem essa palavra, nomeadamente as sílabas ha e ṭha, ela também quer dizer “sol-lua”. Quando dizemos “sol-lua”, estamos nos referindo à transcendência da identificação com as dualidades ou dos pares de opostos: sol e lua, calor e frio, dia e noite, masculino e feminino, etc., que é a causa do sofrimento humano.
3 – Como o Haṭha Yoga se insere na tradição mais vasta e antiga do Yoga, nomeadamente no contexto do Hinduísmo? Em que medida o Haṭha Yoga faz parte da tradição vaidika?
Estamos acostumados a ouvir e aceitar sem maiores questionamentos que o Haṭha Yoga, de origem tântrica, é bem mais recente e está completamente separado dos sistemas anteriores a ele, como o Yoga de Patañjali, o Jñāna Yoga, o Karma Yoga, o Mantra Yoga, etc., como se esses sistemas pertencessem a um universo totalmente diferente do contexto em que o Haṭha nasceu.
Existe consenso em torno da ideia que o Haṭha se desenvolveu no período pós-clássico da história indiana, entre os séculos IX e X desta era, sendo portanto posterior ao Yoga clássico codificado pelo sábio Patañjali nos Aforismos do Yoga. Assim, a origem do Haṭha estaria vinculada ao aparecimento da linhagem dos 64 siddhas (“seres perfeitos”), que inicia com os mestres Matsyendranatha e Gorakṣanatha, do norte da Índia.
Talvez esteja na hora de revisarmos profundamente essas conjecturas. O fato é que o Haṭha desde sempre pertenceu, esteve vinculado e evoluiu junto com a tradição védica. Para compreendermos as profundas implicações desta afirmação, seria necessário fazermos uma profunda reflexão sobre a questão da origem deste sistema e, quem sabe, reescrevermos sua história. Ou, pelo menos, parte dela.
As mesmas dificuldades que enfrentamos ao estudar a história antiga da Índia surgem quando tentamos compreender o processo de formação do Haṭha: os yogis da antigüidade, assim como os outros sábios indianos da época, não estavam preocupados com cronologias e medições do tempo.
Isso torna frustrante qualquer tentativa de estabelecer a idade real desse conhecimento, já que as figuras históricas de que se têm notícia aparecem sempre transfiguradas pelo mito e a datação das obras literárias é totalmente vaga ou até mesmo inexistente. Isto é especialmente verdadeiro em relação àquele conhecimento vinculado com a busca da auto-realização. Nos textos antigos, todos os autores remetem-se ao mais velho, ou ao mito, ou assinam com o nome do próprio mestre ou de algum sábio legendário, à guisa de tributo a ele.
Agora, onde é que encontrarmos a conexão entre o Haṭha Yoga e a tradição vaidika? Na presença invariável da visão do não-dualismo em todos os textos que conhecemos do Haṭha. Se formos olhar por exemplo para a Śiva Saṁhitā, o mais extenso e elaborado desde o ponto de vista filosófico dos quatro principais śāstras do Haṭha, veremos que a doutrina que lá a expõe não é nem mais nem menos do que o próprio ensinamento de Ādi Śaṅkarāchārya, conforme está exposto nos nyāyas no Ātma Bodha. O mesmo acontece com o capítulo inicial da Gheraṇḍa Saṃhitā.
Nyāya significa “ilustração” em sânscrito. Os nyāyas são parábolas que transmitem o ensinamento sobre a unidade entre o Ser e a Criação. Os mais conhecidos exemplos de Śaṅkarāchārya, a aparecem no Ātma Bodha e se repetem muito posteriormente na Śiva Saṁhitā, são o da confusão entre a corda e a serpente, o da confusão entre a prata e a madrepérola e ou o do reflexo da lua em diversos recipientes de água.
O primeiro capítulo da Śiva Saṁhitā, no qual aparecem esses nyāyas, apresenta ainda as noções filosóficas sobre as quais se apoia este sistema, claramente baseadas nos ensinamentos do Advaita Vedānta, a maior e mais influente escola de filosofia não-dualista da Índia, e a mais ligada à tradição das Upaniṣads. O autor nos exorta a percebermos a unidade que permeia a criação, à qual todos nós estamos inextrincavelmente ligados, bem como a percebermos e compreendermos a verdadeira natureza da realidade, oculta sob o véu de māyā, a superimposição do aparente sobre o essencial.
Se, por outro lado, continuarmos nossa procura pelo Haṭha Yoga nas Upaniṣads, iremos nos encontrar com algo muito parecido com ele na Śvetāśvatara, a “Upaniṣad de Śvetāśvatara”. Śvetāśvatara é o nome sábio a quem devemos esta Upaniṣad. Esse nome faz alusão ao dono de uma mula branca, um animal muito prezado e valioso na idade védica (śveta = “branco”, aśva = “mula”). A Śvetāśvatara Upaniṣad é uma das primeiras e mais importantes. Vejamos alguns poucos trechos deste śāstra:
“Mantendo o corpo firme, como as três partes eretas [tronco, pescoço e cabeça], o sábio dirige os sentidos e a mente ao interior do coração. Brahman é o barco em que ele atravessa o rio do medo.” (II:8).
“Controlando sua força vital (prāṇa), com seus movimentos controlados, o sábio inspira pelas narinas, com a respiração restringida. Livre de distrações, que ele controle sua mente, como o condutor controla os cavalos rebeldes.” (II:9).
“Não conhece doença, velhice nem sofrimento aquele que forja seu corpo no fogo do Yoga. Atividade, saúde, libertação dos condicionamentos, circunspeção, eloqüência, cheiro agradável e pouca secreção, são os sinais pelos quais o Yoga manifesta seu poder.” (II:12-13).
O primeiro parágrafo faz clara alusão à importância do alinhamento postural durante a prática de Yoga. Uma das maneiras mais eficientes de se manter a conexão com o coração mencionada no texto, é justamente cultivando-se uma postura ereta e relaxada. A segunda citação deixa clara a conexão entre pensamento e respiração, outro dos temas fundamentais do Haṭha. Essa conexão aparece de forma clara na Haṭha Yoga Pradīpikā (II:2): “Enquanto a respiração (prāṇa) for irregular, a mente permanecerá instável; quando a respiração se acalmar, a mente permanecerá imóvel e o yogi conseguirá a estabilidade. Por conseguinte, deve-se controlar a respiração [praticando-se o prāṇāyāma]”. Em outro trecho (IV:21), a mesma obra afirma: “Aquele que detém o alento, detém também o pensamento. Aquele que domina o pensamento, domina igualmente o alento.”
A ideia de “forjar” o corpo no fogo do Yoga, presente no terceiro trecho aqui citado, é central à prática do Haṭha, que busca a transubstanciação do corpo mortal em um corpo divino, com a dureza do diamante (vajradeha). Essa ideia está presente na Gheraṇḍa Saṁhitā (I:24): “Assim como um jarro de argila crua, jogado neste mundo, o corpo decai rapidamente. É preciso endurecé-lo, forneando-o no fogo do Poder, para fortalecé-lo e purificá-lo”.
A “vitória” sobre o sofrimento, a velhice e a morte também é um tema recorrente na literatura do Haṭha. A lista dos benefícios advindos da prática que aparece na Śvetāśvatara Upaniṣad é similar em tom e conteúdo a muitas outras que aparecem nas obras posteriores:
“A perfeição do corpo físico [manifesta-se como] beleza, graça, força, e a dureza e o brilho do diamante”, Yoga Sūtra de Patañjali, III:47.
“Quando se aperfeiçoa o Haṭha Yoga, aparecem os seguintes sinais: agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior (nāḍa), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal (bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nāḍīs”. Haṭha Yoga Pradīpikā, II:78.
Em outro trecho (III:30), esta mesma obra diz que certas práticas do Yoga “protegem contra a morte e a velhice, aumentam o fogo gástrico e proporcionam poderes paranormais (siddhis).” Outra curiosidade em relação a esta Upaniṣad é que nela, Rudra é elevado ao status de Ser Supremo. Estando ele associado a Śiva, o patrono do Yoga, é clara aqui também a conexão entre ambos ensinamentos, o da presente Upaniṣad e o dos textos posteriores do Haṭha Yoga.
Dentro ainda do mesmo tema, chama-nos igualmente a atenção a presença desses mesmos elementos na Maitrī Upaniṣad, também pertencente ao primeiro e mais antigo grupo destes textos (existem Upaniṣads bem mais recentes). Maitrī é o nome de um ṛṣi, um sábio-yogi-poeta que iniciou a linhagem chamada Maitrāyaṇīya.
A Maitrī Upaniṣad preconiza a prática de um sistema completo de Yoga chamado Ṣaḍāṅga, ou “seis partes”, cujas técnicas são:
1) prāṇāyāma (“expansão da vitalidade”),
2) pratyāhāra (“abstração”),
3) dhyāna (“meditação”),
4) dhāraṇā (“concentração”),
5) tarkā (“questionamento contemplativo”) e
6) samādhi (“iluminação”).
Esta forma de expor o sistema, e as próprias práticas aqui descritas, evidenciam que a Maitrī é uma espécie de antecipação de todo o Yoga posterior, desde o sistema óctuplo de Patañjali (Aṣṭāṅga Yoga, ou Yoga em “oito partes”) ao Sapta Sādhana (“sete práticas”) da Gheraṇḍa Saṁhitā. Essa organização das diferentes práticas do Yoga em etapas ou membros é comum a quase todos os sistemas técnicos e continua sendo usada até hoje, como uma tentativa de sistematizar a miríade de técnicas que o Yoga desenvolveu desde sua origem para facilitar o caminho dos praticantes.
Igualmente, a Maitrī Upaniṣad contém descrições muito claras de algo bem parecido com o Haṭha Yoga posterior. Vejamos: este texto fala sobre a íntima conexão que existe entre o fluxo da energia vital (prāṇa) e a instabilidade da mente, um tema que foi abordado também na Śvetaśvatara Upaniṣad e que será retomado milênios mais tarde na Haṭha Yoga Pradīpikā, como já vimos anteriormente.
Da mesma maneira, a Maitrī indica a prática de prāṇāyāma como o meio mais importante para se alcançar a estabilidade da mente. O texto chega a mencionar a prática que seria conhecida posteriormente como khecharī mudrā, que consiste em recolher e elevar a língua, pressionando-a no palato mole, como forma de evitar que o bindu, néctar lunar, se disperse a partir do soma chakra. Esta é uma das principais práticas dos Yogas tântricos, como Haṭha, Kuṇḍalinī e Lāyā.
Acreditamos que a ausência do āsana como uma técnica separada no sistema ensinado na Maitrī Upaniṣad, não significa que o trabalho na postura fosse irrelevante, mas que ele se considerava óbvio e, portanto, não mereceria ser mencionado com maiores detalhes.
Outro dos sistemas visíveis nesta obra é o Nāḍa Yoga, que será retomado tanto na Haṭha Yoga Pradīpikā como na Gheraṇḍa Saṁhitā. É aqui que aparece por primeira vez a expressão Śābda Brahman (“corpo sonoro do Absoluto”) para designar o mantra sagrado Oṁ.
“Permitindo que a ausência de limitação contemple a si mesma, o yogi se move em direção à ausência de egoísmo e, assim, deixa de afligir-se por causa do apego e do sofrimento.” (II:80).
Podemos concluir então que a análise cuidadosa de textos como estes podem nos revelar muito mais do que imaginamos, não apenas sobre a idade real do Haṭha, mas também sobre os profundos insights psico-espirituais que esta prática teve desde o início, e que nós não devemos esquecer, nem negligenciar em nossa prática cotidiana.
4 – Podemos estabelecer uma relação de criação e pertença do Haṭha Yoga ao Natha Sampradāya?
O que vou dizer aqui pode soar como heresia aos ouvidos de pessoas que se sintam próximas a esse Sampradāya ou linhagem tradicional ou rezem pela cartilha do conhecimento admitido com verdadeiro no estudo da história do Yoga. É aceite de modo geral que os Nathas tenham sido os fundadores dos métodos que hoje conhecemos como Haṭha Yoga e Lāyā Yoga. Também é sabido (ou aceite) que Matsyendranatha, o originador dessa linhagem, tenha vivido entre os séculos IX e X d.C. no norte da Índia.
Porém, nós temos evidências de que algo muito similar ao Haṭha Yoga, mas talvez não com esse nome, tenha existido antes dessa data, e no sul do sub-continente indiano. No ano 2000 visitei o mosteiro de Śrīṅgeri Maṭh, nas montanhas do interior do estado de Karnataka, sul da Índia. Esse é um lugar muito sagrado para todo hindu praticante, por ser até hoje a sede onde moram e trabalham os continuadores do trabalho de Ādi Śaṅkarācharya, o grande iluminado, filósofo, poeta, profeta e reformador do hinduísmo. Chegando lá, descobri, para meu encanto, que dentre os motivos que decoravam as paredes de pedra do templo maior, havia uma vasta série de pequenas, belíssimas e detalhadas esculturas de yogis praticando āsana.
Esse foi o único momento em minhas viagens em que realmente lamentei não carregar uma câmera fotográfica. A acuidade da observação dos escultores era impressionante: para meu olhar treinado de “āsanista”, aquilo era um verdadeiro presente. Apareciam nos painéis, que se estendiam, camadas sobre camadas na parede oeste do templo, todas as posturas clássicas do Haṭha, desde as mais conhecidas até algumas tão complexas que, apesar da clareza da escultura, ficava realmente difícil entender o que o yogi estava fazendo.
Esse templo foi construído enquanto o grande filósofo Ādi Śaṅkarācharya estava vivo, ou seja que data, na estimativa mais prudente, do século VIII d.C.. Isso nos mostra que esse templo, e conseqüentemente, a prática de āsana, são mais antigos que os textos atribuídos a Matsyendra, Gorakṣa e os demais yogis que preservaram essa tradição no norte da Índia (a partir dos séculos IX e X d.C. e até o aparecimento dos textos clássicos que foram preservados, como a Haṭha Yoga Pradīpikā e a Gheraṇḍa Saṁhitā, que datam aproximadamente do século XV d.C.).
Acredito que, para chegar no grau de sofisticação técnica registrado nessas esculturas e para que essa prática de āsana tenha sido usada como elemento ao mesmo tempo decorativo e instrutivo nos painéis de pedra do templo, ela era certamente muito mais antiga que a própria construção. Os sthapatis (arquitetos escultores) nunca iriam escolher tais esculturas se elas não fizessem parte do cotidiano do povo ou, pelo menos, das práticas espirituais dos sábios que freqüentavam o templo.
Assim, penso que aquilo que hoje em dia se conhece como Haṭha Yoga, ou pelo menos o conjunto de técnicas que chamamos āsana, possa ser anterior à epoca dos Nathas em pelo menos 200 anos: o século que se precisa (três gerações, para ser exato) segundo a teoria antropológica para fazer com que algo seja digno de registro numa cultura, somado ao século que separa Śaṅkarāchārya de Matsyendra e Gorakṣanatha. Cabe lembrar ainda, que esta suposição não conflita com as datas que se manejam em relação ao advento do Tantra, que é bem anterior ao tempo de Matsyendra e Gorakṣa.
5 – O Haṭha Yoga é mais baseado em tradição (oral) ou em literatura escrita? Qual a literatura fundamental do Haṭha Yoga?
Como toda forma de Yoga, é baseado na tradição oral e na sucessão discipular, paramparā. Os textos são apoios para o ensino mas nunca devem ser usados como fonte de instrução. O contato direto e a prática sob a instrução de um professor são elementos mandatórios neste Yoga, assim como em todos os demais.
Os principais textos que chegaram até nós sobre esta disciplina são cinco. Pela ordem cronológica estimada: Gorakṣaṣaṭaka, Haṭha Yoga Pradīpikā, Gorakṣpāddhati, Gheraṇḍa Saṁhitā e Śiva Saṁhitā. Há textos que foram perdidos, como o lendário Haṭha Yoga, atribuído ao próprio Gorakṣa, e existem ainda outros textos menores, alguns em verso, outros em prosa, que repetem o ensinamento fundamental destas cinco obras, como por exemplo o Dattatreya Yogaśāstra, o Haṭha Ratnavali, o Śrītattvanidhi e outros.
6 – O Haṭha Yoga do Natha Sampradāya desenvolveu uma visão filosófica própria ou bebe no Advaita Vedānta, nos “tantrismos” difusos e em variadas escrituras e darśanas do Hinduísmo?
Como foi já demonstrado nas respostas às questões três e quatro, há uma inequívoca conexão entre a visão do Haṭha Yoga, o ensinamento do Advaita Vedānta e a tradição antiga que remonta às primeiras Upaniṣads. Não obstante, não podemos falar hoje em dia na existência de um nathismo coeso e monolítico ou que responda (ou que até mesmo aceite) em bloco a visão do não-dualismo de Śaṅkara. Assim como noutras escolas (dentre as quais o próprio Advaita Vedānta), existe hoje em dia no Haṭha Yoga uma variedade muito ampla de pontos de vista, que quiçá poderiamos chamar de “tantrismos difusos”, como bem coloca a presente pergunta.
Durante o processo de formação do Haṭha Yoga, que durou séculos, foram acrescentando-se novas técnicas, experiências e constatações das sucessivas gerações de praticantes. Essas contribuições por momentos enriquecem e refinam o Haṭha com novos achados, mas às vezes o rebaixam quando, por exemplo, passam a incorporar a pequena magia popular. Um claro exemplo disso é o texto chamado Yantrachintamani, que não passa de uma série de práticas de bruxaria (abhichara karma) que poderiam facilmente ser comparadas ao vudu ou à magia negra.
Assim, dependendo da “filiação” dentro desse vasto e difuso sampradāya, os pontos de vista que acompanham o ensinamento prático podem mudar bastante, como já comprovei pessoalmente em minhas viagens. Muitos professores de Yoga sérios dirão que aprenderam dentro do sampradāya de Matsyendra e Gorakṣa, mas não há unanimidade nem coesão no ensinamento que transmitem. O discurso do Advaita está sempre lá, com diversos graus de profundidade, as práticas podem mudar bastante, especialmente aquelas vinculadas ao prāṇāyāma, o despertar de kuṇḍaliṇī e a manipulação dos vāyus, ares vitais.
Alguns praticantes (estou falando aqui dos nathas que tive ocasião de conhecer, seja em encontros casuais ou breves, seja em momentos de convívio num contexto de aprendizado) dão muita ênfase à meditação e ao estudo, enquanto que outros se focam mais nas práticas da meditação, mudrās e prāṇāyāmas. Outros simplesmente levam uma vida com menos disciplina, dedicados abertamente a mendicância em lugares sagrados e/ou ao consumo de charas (cannabis indica fumada em shilom, um cachimbo de cerâmica).
7 – É costume apontar-se o Haṭha Yoga como um Yoga “tántrico”. O que isso significa?
O termo tántrico faz alusão ao Tantra, uma doutrina que está íntimamente ligada em sua origem, bem como em sua doutrina, à visão do não-dualismo oriunda das Upaniṣads. O Tantra teve uma eclosão depois da época em que Śaṅkarāchārya viveu, e é fortemente influenciado pelo Advaita Vedānta em termos filosóficos. Porém, apresenta uma diferença fundamental em relação às tradições ascéticas anteriores a ele: o uso do corpo como ferramenta para o exercício da prática do Yoga.
O período em que o Haṭha Yoga surgiu com toda a força coincide com um momento muito especial na evolução da espiritualidade hindu, no qual os adeptos do Tantra apresentaram a uma Índia pasmada e acomodada no ritualismo bramânico uma visão revolucionária e dinâmica do universo e do homem (porém, isso não significa necessariamente que ele não existisse desde antes, como sugerem algumas Upaniṣads, como já vimos).
Para os tántricos, o corpo não é apenas uma fonte de sofrimento e doença, mas veículo para a transcendência e a realização da natureza divinal no homem. O Kulārnava Tantra (I:18) deixa isso bem claro: “sem o corpo, como realizar o [supremo] objetivo humano? Portanto, depois de adquirir uma morada corpórea, o ser deve realizar ações meritórias (pūṇya)”.
A Śiva Saṁhitā (II:1-5) reafirma a mesma ideia: “Neste corpo, o monte Meru [a coluna vertebral] está rodeado por sete ilhas: há rios, mares, campos e senhores dos campos. Há ṛṣis e sábios, e nele estão todas as estrelas e planetas. Há peregrinações sagradas, templos e deidades nos templos. O sol e a lua, agentes da criação e da destruição, movem-se nele. O espaço, o ar, o fogo, a água e a terra também se encontram aqui. Todos os seres que existem no mundo estão igualmente no corpo. Rodeando o monte Meru, fazem suas tarefas. Aquele que sabe disto é um yogi. Não há dúvida sobre isto”.
Até o surgimento do Haṭha, a visão que se tinha sobre o corpo humano no mundo da espiritualidade indiana era desabonadora e negativa. O corpo era considerado apenas uma bolha de pele recheada de carne, ossos, secreções e impurezas, fonte do sofrimento, do apego e da dor. O Haṭha rejeitou essa visão desde o início, unificando a visão tántrica do corpo como templo da divindade, com a constatação vedântica de que tudo o que existe na criação é expressão do Ser, que é ao mesmo tempo criador e agente material da criação.
Assim, este método busca conquistar um estado de perfeição corpórea chamada “corpo adamantino” (vajradeha), ou “corpo divinal” (devakāya), e combinar essa perfeição física com um aperfeiçoamento similar nas dimensões sutil, emocional, mental e psíquica, para a realização do supremo propósito de todas as formas de Yoga: a libertação da ignorância metafísica (avidyā), dos condicionamentos e do ciclo de mortes e renascimentos sucessivos (saṁsāra). Essa liberdade é chamada mokṣa em sânscrito.
Para o Tantra, o corpo é o templo do divino, pois ele permite uma série de investigações, reflexões e experiências que o tornam um instrumento invalorável para a libertação e a iluminação. É por esse motivo que se afirma no Viśvasāra Tantra:
“Não há nascimento como o humano. Devas e anjos o desejam. Para Ātma, o copo humano é o mais difícil de se conseguir. Por isso, diz-se que o nascimento humano se alcança com grande dificuldade. (…) Afirma-se nos śāstras que, dos 8:400.000 nascimentos do jīvātma, o humano é o mais frutífero. O jīvātma não pode adquirir o conhecimento da verdade em nenhum outro nascimento. O nascimento humano é a pedra fundamental no caminho da libertação. Por isso, é raro e cheio de mérito quem chega a ele”.
Portanto, o Haṭha Yoga considera a vida humana extremadamente preciosa. Tanto no Haṭha como no Tantra, mesmo o corpo humano mais degradado é considerado um templo da divindade (devālāyā).
8 – Qual a relação entre o Haṭha Yoga e o Yogasūtra (atribuído a Patanjali)?
À guisa de ilustração sobre a conexão entre o Yoga clássico de Patañjali e o Haṭha Yoga, coloco aqui uma afirmação de dois textos, a Haṭha Yoga Pradīpikā e o Yogasūtra:
“A perfeição do corpo físico [manifesta-se como] beleza, graça, força, e a dureza e o brilho do diamante”. Yoga Sūtra de Patañjali, III:47.
“Quando se aperfeiçoa o Haṭha Yoga, aparecem os seguintes sinais: agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior (nāḍa), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal (bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nāḍīs”. Haṭha Yoga Pradīpikā, II:78.
Como podemos ver, a “vitória” sobre o sofrimento, a velhice e a morte, um tema bastante recorrente na literatura do Haṭha, está igualmente presente nos Sūtras de Patañjali. Similarmente, há uma conexão em termos práticos entre as técnicas do Haṭha e o que Patañjali propõe no terceiro capítulo do Yogasūtra.
Sendo o Yogasūtra um texto bem anterior ao surgimento do Haṭha Yoga, ele o antecipa em vários temas diferentes: as meditações e demais tecnicas para manipular chakras, nāḍīs e prāṇas estão listadas no capítulo acima mencionado, enquanto que a manipulação da força vital (prāṇa) e o fruto dessa prática aparecem em detalhes no fim do segundo capítulo.
O manipura é chamado nabhi chakra (“chakra do umbigo”, III;30), o anāhata é chamado hṛdaye (“do coração” III:34), o viśuddha é chamado kaṇṭhakupe (“poço” da garganta, III;31), o sahasrāra é chamado murdhajyoti (“luz [que brilha] na cabeça”, III, 33). Patañjali propõe, no sūtra III:32, uma meditação na kūrmanāḍī.
O primeiro dos sūtras acima mencionados diz: “[Meditando sobre] o chakra do umbigo, ganha-se conhecimento sobre a estrutura do corpo.” O segundo ensina: “[Aplicando samyama na] região do coração [anāhata chakra], o yogin adquire conhecimento de sua própria consciência”. O terceiro: “[Exercendo samyama sobre] o centro da garganta [viśuddha chakra], cessam a fome e a sede”.
O quarto aforismo reza: “[Meditando na] luz do alto da cabeça [sahasrāra chakra] obtém-se a visão dos siddhas, [seres que atingiram a perfeição]”. O último dos acima citados diz: “[Pelo samyama sobre] kūrmanāḍī (meridiano da “tartaruga”, na traquéia), o yogin estabiliza seu corpo”.
A kūrmanāḍī, ou meridiano kūrma, é o condutor do kūrmavāyu, a força vital responsável pela visão, o piscar dos olhos e a estabilidade, tanto corporal quanto emocional e mental. Ela é localizada entre a traquéia e a parte posterior da depressão jugular. O kūrmavāyu é bem conhecido na tradição do Yoga tántrico: uma menção a ele aparece na obra The Serpent Power (“O Poder Serpentino”), de Sir John Woodroffe (p. 78).
O prāṇa é mencionado em I:34: “Ou, pela expiração e a retenção do prāṇa [a mente pode igualmente estabilizar-se]”. O udāna vāyu, um dos cinco prāṇas, bem conhecidos pelos praticantes de Yoga tántrico, está mencionado exatamente com esse nome em III:40: “Pelo domínio do ar vital udāna desenvolve-se o poder de levitação sobre a água, o lodo, os espinhos e demais”. Há uma série de cinco sūtras, começando em II:49, que menciona explicitamente o processo de manipulação do prāṇa através do prāṇayāma, que culmina numa interessante descrição da visão da “luz interior” (prakāṣa).
Eles são os seguintes: “O prāṇayāma consiste na regulação da inspiração e da expiração. [O prāṇayāma consta de] modificações externas, internas ou retenção [da força vital]. É regulado por lugar, estação e número [e torna-se progressivamente] mais prolongado e sutil. O quarto tipo [de prāṇayāma, chamado kevala kūmbhaka] transcende as esferas interna e externa. Assim, dissipa-se o véu que encobre a luz [do conhecimento]… e a mente torna-se apta para a concentração”.
Desta leitura dos sūtras desprende-se que, embora a linguagem seja diferente daquela que o Yoga tántrico emprega, o tema é o mesmo e os procedimentos, muito similares àqueles que podem ser apreciados nos textos do Haṭha Yoga.
9 – O Haṭha Yoga é completo em si mesmo como caminho de libertação, ou carece de Rāja Yoga e Advaita Vedānta (Jñāna Yoga)?
Svātmārāma, o autor pressumido da Haṭha Yoga Pradīpikā, integra nessa obra as disciplinas fisiológicas do Haṭha às práticas contemplativas do Rāja, deixando claro, logo no início do livro, que o Haṭha Yoga, “como uma escada, conduz ao elevado Rāja Yoga”.
Por sua vez, o sábio Gheraṇḍa, a quem se atribui a Gheraṇḍa Saṃhitā diz, também no início, que “não existem correntes como as da equivocação. Não existe força como a que provêm da disciplina. Não há amigo mais elevado que o conhecimento. Não há inimigo mais poderoso que o egoísmo. Assim como mediante o aprendizado dos alfabetos consegue-se, com a prática, dominar as ciências, da mesma maneira, praticando o treinamento da Força adquire-se o conhecimento da Verdade. De acordo com as ações, corretas ou incorretas, geram-se os corpos de todos os seres. Esses corpos dão origem às ações, que conduzem aos renascimentos. Dessa forma, a roda [do saṁsāra gira sem parar], como o moinho d’água. Assim como os baldes d’água, puxados pelo boi, sobem e descem no moinho, ora cheios, ora vazios, da mesma forma a alma atravessa a vida e a morte movida pelos karmas”.
Tanto na primeira citação quanto na segunda percebemos que há uma identidade entre Haṭha, Rāja e Jñāna Yoga. Svātmārāma coloca isso de maneira explícita. Gheraṇḍa, por sua vez, ao invés de nomear esses outros aspectos do conhecimento yogiko, limita-se a descrevê-los, mencionando o principal tema do Jñāna Yoga: avidyā, a ignorância existencial, deve ser derrotada, pois ela é a origem do sofrimento que leva o indivíduo à vida condicionada no saṁsāra.
Agora, cabe fazer uma precisão: Haṭha, Rāja, Jñāna, Karma, Bhakti, Mantra, não são sistemas de Yoga estanques e separados, mas aspectos distintos do ensinamento único.
10 – O Haṭha Yoga, “tántrico”, e o Advaita Vedānta de Śaṅkarāchārya convivem bem, nomeadamente em termos de valoração do corpo e do sensorial?
Dizermos “o Advaita Vedānta de Śaṅkarāchārya”, desde a própria tradição, não é correto. Śaṅkarāchārya não criou o Advaita, não é um pensador ou filósofo nesse sentido. Vedānta é um nome relativamente novo para designar o ensinamento sobre a não-dualidade, que está inequívocamente presente e permeia toda a literatura sagrada da Índia antiga: Vedas, Arāṇyakas, Brahmāṇas e Upaniṣads.
Afora o que já foi dito nas respostas à terceira e à sexta perguntas, e ainda orbitando em torno da ideia da não-separação (advaita), presente tanto no Vedānta quanto no Tantra, cabe fazer então uma paralelismo entre o Advaita Vedānta citando a Kaṭha Upaniṣad (II:1,10), que afirma: “O que está aqui, está lá; o que está lá, está igualmente aqui”. Este ensinamento é praticamente idêntico ao que aparece num texto tántrico bem posterior, o Viśvasāra Tantra: “O que está aqui, está em toda parte. O que não está aqui, não está em parte alguma”.
O grande estudioso indiano T. M. P. Mahadevan, afirma em sua obra Outlines of Hinduism (p.180): “No Kularnava Tantra, Śiva diz a Pārvatī que não há diferença entre a filosofia religosa do Tantra e a verdade do Veda: tasmati vedātmakaṁ śāstram viddhi kaulātmakam priye: “Portanto, Ó querida, saiba que a Escritura que é da natureza do Veda, é da natureza do Tantra”.” Fica assim, portanto, estabelecida a conexão (para não dizermos identidade), entre o Tantra e o conhecimento ancestral dos Vedas, que é claramente não-dual.
Como dizemos anteriormente, a grande contribuição do Tantra foi a “descoberta” do corpo como veículo e instrumento para o nididhyāsanam, a reflexão sobre si mesmo. Muitas tradições ascéticas da Índia anteriores ao Tantra consideram o corpo humano como um mero acúmulo de vísceras cuja natureza é corrompida e cujo destino final é morrer e apodrecer. Talvez o exemplo mais claro disso é o que aparece no Agni Purāṇa (LI:15 et seq.):
“O asceta (yati) concebe seu corpo, na melhor das hipóteses, como uma bolha de pele, rodeado de músculos, de tendões e de carne, cheio de urina, fezes e impurezas malcheirosas, habitáculo da doença e do sofrimento, vítima certa da velhice, da tristeza e da morte, mais transitório que uma gota de orvalho numa folha de grama.”
Naquela época, estava em uso uma fórmula para cumprimentar os demais que hoje nos parece muito cômica. Quando duas pessoas se encontravam, ao invés de perguntar simplesmente “como estás?”, perguntavam-se: “como anda hoje esse saco de pele cheio de impurezas fedorentas?” Tanto alguns textos atribuídos a Śaṅkarāchārya, como por exemplo o Bhaja Govinda, quanto outros, dentre os quais o próprio Yogasūtra de Patañjali, sustentam essa mesma postura de negação do corpo.
Porém, a visão do Tantra parece ter influenciado positivamente yogins que, sustentando a visão não-dual, descobrem o próprio corpo, como foi o caso do sábio Tirumular, de Tamil Nadu. Esse yogin incluiu estes dois versos em seu belíssimo poema devocional Tirumandiram:
“Quando o corpo perece, a força vital esvai-se e a luz da verdade não pode alcançar-se. Eu aprendi a arte de preservar meu corpo e, deste modo, também a força vital que habita nele.
“Antes, desprezava meu corpo. Porém, mais tarde descobri que a divindade morava em seu interior e comprovei que o corpo é o templo de Īśvara. Portanto, comecei a preservá-lo com o maior cuidado.”
(versos 724 e 725).
Essa mesma atitude do yogin Tirumular prevalece nos dias atuais: integração parece ter sido a palavra de ordem na Índia, tanto no século XX como no XXI. Não é raro ver a simples união dos métodos do Haṭha Yoga e o estudo de Vedānta, como fica claro se olharmos para o trabalho do célebre Swāmi Śivānanda, de Rishikesh, cujo Āśram chama-se Yoga Vedānta Forest Academy, ou pelo trabalho de Swāmi Dayānanda, professor tradicional de Advaita Vedānta em cujo Āśram, também localizado na pequena cidade de Rishikesh, acontecem regularmente aulas de Haṭha Yoga acompanhando o ensino do Vedānta em cursos, retiros e camps.
11 – Īśvara / “Deus” é um conceito presente e importante no Haṭha Yoga tradicional? Śiva é o “Deus” dos haṭhayogins?
Sim, diferentemente do modesto papel que ocupa Īśvara no Yogasūtra, a Haṭha Yoga Pradīpikā inicia justamente com uma prece ao “Deus” do Yoga, Śiva, designado no texto pelo epíteto Ādinatha, Primevo Senhor. Nesse sentido, o Haṭha Yoga também se aproxima da tradição do Advaita, uma vez que a referência principal, ou o “Deus” do estudo do Vedānta, se podemos falar assim, é justamente Śiva em sua forma de Dakṣinamūrti, o Preceptor. Basicamente, podemos dizer que Ādinatha e Dakṣinamūrti sejam dois aspectos do mesmo Īśvara. Nesse sentido, o Haṭha Yoga não é diferente das demais formas de espiritualidade ligadas ao Yoga indiano: todos e cada um dos textos (com a quase única exceção do Yogasūtra) começam com uma invocação a alguma forma de Īśvara.
12 – Qual o objectivo final do haṭhayogin, e como alcançá-lo? Samādhi é o culminar do processo yogico, e uma experiencia momentânea de esclarecimento acerca do Ser, ou é a libertação final, e sempre presente? Como compreender samādhi e mokṣa neste contexto?
Samādhi é uma experiência meditativa profunda e completa, mas de alcance limitado. A meta do haṭhayogin não é o samādhi mas mokṣa, a liberdade, que não é uma experiência. Os textos de Haṭha mencionam uma série de estados de meditação profunda ou diferentes graus de samādhi. Mas, nesta passagem da Haṭha Yoga Pradīpikā (IV:22, 23 e 25) fica claro que o objetivo das práticas é mokṣa e não samādhi:
“As duas causas da atividade mental são a energia vital e as propensões subconscientes (prāṇa e vāsanā); a inatividade de uma delas provoca a inatividade da outra. IV:24 A mente e o prāṇa estão relacionados entre si como o leite e a água, sendo suas atividades coincidentes; se houver movimento de prāṇa, haverá movimento mental; se houver atividade mental, haverá movimento de prāṇa. IV:25 Suspendendo-se a atividade de um deles (o prāṇa ou a mente), o outro igualmente irá parar; se um agir, o outro também agirá. Se não permanecerem estáveis, os sentidos estarão sempre ativos. Comandando-os, [o yogin] alcança mokṣa, a libertação suprema”.
Enquanto experiência, o samādhi vem e vai. Ele é útil como exercício de reflexão sobre a natureza ilimitada do Ser, mas pode ser perigoso apegar-se a esse tipo de experiência. Mokṣa não é um estado de consciência, não é uma prática, não é algo que está sujeito a mudança. Assim, uma vez que o yogin culmina o processo do autoconhecimento, ele vive a liberdade em todos os estados de consciência e experiências.
13 – Haṭha Yoga tradicional e saúde/terapia estão ligados?
O vajradeha, ou “corpo adamantino”, é um elemento essencial dentro daquilo que poderíamos chamar de alquimia tántrica: a transsubstanciação do corpo humano, mortal, num corpo divino, “de diamante”. Esse processo de “divinização” do corpo humano, por sua vez, implica a presença de saúde e de todos os sinais de um corpo longevo e saudável, como vimos na citação da Haṭha Yoga Pradīpikā mencionada na resposta à terceira questão.
Dessa constatação de que o corpo torna-se naturalmente saudável e longevo surge a ideia da Yogaterapia, que é algo bem recente na história do Yoga. Embora as descrições das posturas que vemos na Haṭha Yoga Pradīpikā e na Gheraṇḍa Saṃhitā mencionem efeitos fisiológicos dos āsanas e eventualmente doenças que podem ser curadas através eles, muitos desses trechos são hiperbólicos e não devem ser interpretados literalmente. Em todo caso, fica claro que o objetivo do Haṭha não está na adquisição ou manutenção da saúde física ou da longevidade: esses são apenas efeitos colaterais que surgem ao longo do processo da prática.
O estudioso alemão Georg Feuerstein aborda a questão da alquimia tántrica em sua obra A tradição do Yoga: “Os mestres tántricos aspiravam, isto sim, à criação de um corpo transubstanciado, que chamavam de “adamantino” (vajra) ou divino (daiva) – um corpo feito não de carne, mas da substância imortal, de Luz. Em vez de ver o corpo como um tubo alimentar fadado à doença e à morte, eles o viam como a morada de Deus e como o caminho alquímico em que se haveria de realizar a perfeição do autoconhecimento. Para eles, a iluminação era um acontecimento do corpo inteiro. Nas palavras da Yogaśikhā Upaniṣad:
“Aquele cujo corpo (piṇḍa) é incriado e imortal,
está liberto já nesta vida (jīvanmukta).
O gado, os galos, os vermes e outros
que tais deparam-se com a morte.
Como podem eles chegar à libertação
desfazendo-se do corpo, ó Padmaja?
A força vital (do yogi) não se expande para o exterior,
[mas concentra-se no canal axial].
Como então pode [ele] desfazer-se do corpo?
A libertação que ele alcança pelo
desfazer-se do corpo – que valor tem ela?
Assim como o sal-gema [dissolve-se] na água,
assim também o Absoluto (Brahman)
expande-se para o corpo [do yogi iluminado].
Quando ele chega à [condição de]
não-alteridade (ananyatā), diz-se que se libertou.
[Mas os outros continuam a] distinguir
entre diferentes corpos e órgãos.
O Absoluto incorporou-se (dehatva),
como a água faz bolhas”. (1.161-165a)
“A incorporação dos mestres iluminados não tem por único objeto o organismo físico com o qual eles parecem estar especificamente associados. O corpo deles na verdade é o Corpo de todas as coisas e, portanto, eles podem tomar a forma que quiserem – façanha atribuída a muitos adeptos antigos e modernos. Esse corpo transubstanciado também é chamado de ativāhika-deha ou “corpo supercondutivo”. Esse veículo luminoso e onipresente é dotado dos grandes poderes psíquicos (siddhis) de que falam todos os textos do Tantra e do Yoga. No Yoga Bīja, encontramos os seguintes versículos:
“O fogo do Yoga, aos poucos, forja o corpo
composto dos sete elementos constituintes
[como os ossos, a medula óssea, o sangue, etc.].
Nem mesmo as divindades podem adquirir
esse corpo yogiko prodigiosamente poderoso.
[O yogi] liberta-se dos vínculos corpóreos,
adquire diversos poderes (Śaktī) e é supremo.
O corpo [do yogin] é semelhante ao éter,
até mais puro do que o éter. Seu corpo é mais sutil
do que os [objetos] mais sutis, mais grosseiro
do que qualquer [objeto] grosseiro, mais insensível
[à dor, etc.] do que os [mais] insensíveis (jada).
O [corpo do] senhor dos yogins obedece à sua vontade.
É auto-suficiente, autônomo e imortal.
Ele se diverte com brincadeiras, onde quer
que esteja nos três mundos [i.e., na Terra,
na região intermediária e nos mundos celestiais].
O yogin é dotado de poderes incríveis.
Aquele que dominou os sentidos pode,
pela sua própria vontade, assumir várias formas
e fazê-las desaparecer novamente”. (50b-54)
“Isso quer dizer que o adepto não é simplesmente um ser iluminado, mas sim um teurgo, um mago, parceiro do Deus Criador. São poucos os textos do Yoga ou do Tantra que não fazem referência a esse aspecto misterioso do modo de vida yogiko, e os textos do Haṭha Yoga não são exceção a essa regra.”
14 – O haṭhayogin tradicional é necessariamente vegetariano e abstémio? Qual a importância do vegetarianismo?
A Haṭha Yoga Pradīpikā recomenda explícitamente a alimentação vegetariana, chamada “ dieta simples”, ou mitāhāraḥ. A abstenção de bebidas alcoólicas está subentendida, pois o consumo delas não é socialmente aceito na cultura tradicional hindu. Não obstante, alguns praticantes de Yoga na Índia consumem charas ou bhang, folhas, flores ou resina de cannabis, que é algo muito comum no subcontinente indiano.
O vegetarianismo se pratica em função do princípio fundamental da não-violência, ahiṁsā: se não quisermos ser feridos, não devemos ferir, se não quisermos nos tornar comida de outras espécies, não deveríamos colocar outras espécies animais no nosso prato, já que, para a cultura do Yoga, é muito claro que os animais são seres sencientes, passíveis de sentir dor e sofrer tanto quanto os humanos.
15 – Granthis, chakras, nāḍīs, kuṇḍaliṇī, prāṇa e prāṇayāma são linguagem simbólica ou correspondem a realidades psico-físico-energéticas? O que é kuṇḍaliṇī neste contexto?
O Haṭha Yoga possui uma riquíssima linguagem figurada, chamada sandhabhaṣa, “linguagem crepuscular”, ou ainda abhiprayika vāchana, “afirmação intencional”. O obscuro desta linguagem, cheia de metáforas que são de difícil compreensão se não tivermos à mão os códigos corretos para decifrá-las, pode levar o estudante a se equivocar ou perder nesse caminho.
Assim, kuṇḍaliṇī, que simboliza o despertar da consciência, é descrita como uma serpente ígnea que “dorme” no centro de energia da base da coluna vertebral, chamado mūlādhāra chakra. Os chakras são centros de força vital que se encontram ao longo do eixo central do corpo, e estão ligados por uma série de canais energéticos chamados nāḍīs, que coincidem em grande parte com os meridianos da energia mencionados na medicina chinesa.
No entanto, o fato da iluminação ser comparada nos textos tántricos à ascensão de uma serpente de fogo pelo canal central de energia que é a contraparte sutil e vital da coluna vertebral, não significa que os humanos tenhamos uma cobra guardada na ponta inferior da coluna vertebral que pode explodir a qualquer momento.
O fato dos chakras serem descritos nos textos como “rodas” de energia não significa que esses dispositivos vão aparecer numa ressonância magnética, como alegam alguns céticos que tentam desqualificar este sofisticado modelo do psiquismo humano. Kuṇḍaliṇī, chakras e nāḍīs devem ser corretamente compreendidos: eles são representações simbólicas da potencialidade psíquica humana, que deve ser desenvolvida com cuidado.
16 – O que são as mudrās na tradição do Haṭha Yoga?
O terceiro capítulo da Haṭha Yoga Pradīpikā inicia com uma ampla lista de práticas de mudrā. Antes das instruções detalhadas para cada exercício, temos a seguinte advertência (III:5-8): “deve-se praticar com empenho as diversas mudrás, a fim de despertar à poderosa deusa kuṇḍaliṇī que dorme cerrando a entrada a porta de acesso ao Absoluto (suṣumṇā). As dez mudrās são: mahamudrā, mahabandha, mahavedha, khecharī, uḍḍīyanabandha, mūlabandha, jalāṇḍhārabandha, viparītakaraṇī, vajrolīmudrā e shaktīchalana. Eles destroem a velhice e eliminam a morte. Śiva ensinou estes gestos, que proporcionam os oito siddhis; os siddhas se esforçam em sua prática, mas eles são difíceis de se dominar, mesmo para os deuses”.
Estas técnicas, que se consideram secretas e não devem ser ensinadas a pessoas despreparadas, segundo a Gheraṇḍa Saṃhitā, têm como objetivo intensificar e fazer circular de maneiras variadas a força vital, prāṇa. Elas envolvem posturas específicas (das quais a clássica posição de meditação, padmāsana, e suas variações são apenas algumas), formas específicas de respirar ou de reter o fluxo do ar, posições das mãos, visualizações, bandhas e driṣṭis (ativações de órgãos e plexos e fixações oculares). Essas práticas estão bastante mistificadas hoje em dia, e se constituíram num método separado, chamado Kriyā Yoga, popularizado por gurus como Paramahansa Yogānanda.
17 – Qual a importância dos ṣaṭkarmas?
Os ṣaṭkarmas ou “seis ações purificatórias” são praticados como parte do processo de limpeza inicial, chamado bhūtaśuddhi ou nāḍīśuddhi. A esse respeito diz a Gheraṇḍa Saṃhitā:
Kapāli pergunta: “Oceano de misericórdia! Como se purificam as nāḍīs; o que é a purificação das nāḍīs? Quero conhecer isto: por favor diga-me.”
Gheraṇḍa responde: “O vāyu (prāṇa) não pode penetrar nas nāḍīs enquanto elas estiverem cheias de impurezas. Como pode realizar-se assim o prāṇāyāma? Como pode haver conhecimento da realidade (tattvaḥ)? Portanto precisa-se, primeiramente, purificar as nāḍīs; depois, praticar-se-á o prāṇāyāma.” V:34-35.
Assim, essas ações se praticam para eliminar as impurezas do corpo sutil e permitir que o fluxo do prāṇa circule livremente. Considera-se contraproduzente iniciar as práticas de prāṇāyāma e mudrā que menicionamos na resposta à questão anterior sem haver passado por esse processo purificatório, que inclui não apenas uma limpeza do corpo físico, por dentro e por fora, mas igualmente é acompanhado por uma purificação dos pensamentos e emoções.
18 – O que são os āsanas e qual a sua importância no Haṭha Yoga tradicional? São meras posições de meditação ou vão além disso? Há lugar a “canalização de energias”?
A palavra āsana significa literalmente “assento”. Originalmente, designava o lugar para sentar e/ou a postura sedente, na qual se praticava a meditação. Posteriormente, com o advento do Haṭha Yoga, esse termo ampliu sua significação, passando a abranger o sentido de qualquer postura física. Se observarmos a literatura tradicional do Haṭha, perceberemos que, ao longo do tempo, os āsanas vão ganhando importância.
Se na Gorakṣa Pāddhati, por exemplo, eles mal são mencionados, na Haṭha Yoga Pradīpikā, que é posterior, figura uma lista de quinze posturas. Ja na Gheraṇḍa Saṃhitā, que é ainda mais tardia, aparece uma lista de trinta e duas posições. Hoje em dia testemunhamos um crescimento desmesurado que se dá à importância dessa tecnica, o que é feito infelizmente em detrimento das demais práticas como meditação, mudrās e prāṇāyāma sobre as quais, via de regra, as pessoas que praticam atualmente sabem muito pouco.
Se nas mudrās e nos prāṇāyāmas dirigimos intencionalmente o fluxo da energia vital ao longo de certos canais, na prática das posturas, que se faz antes dessas técnicas, simplesmente tomamos consciência da maneira em que essa energia flui naturalmente. Nesse sentido, a prática de āsana é introdutória à de mudrās e prāṇāyāmas e, evidentemente, à meditação.
19 – O mais importante é a postura física ou a respiração (prāṇayāma) e atitude interior (bhāva, visualizações, meditação, etc.)?
Tudo é importante. Cada um desses elementos tem sua importância e existe uma interconexão entre eles. Se houver uma carência em algum aspecto, digamos na postura, é possível que a tomada de consciência de outros aspectos, como por exemplo a respiração subtil, nos leve ao alinhamento natural do corpo. O mesmo acontece com a mente e o prāṇa, cuja interconexão já foi mencionada nas respostas às questões três e doze. Não obstante, no caso de haver falta de alinhamento do corpo físico, é perfeitamente possível, ainda assim, fazer com sucesso um āsana, um prāṇāyāma ou uma meditação.
20 – Os āsanas têm nomes meramente indicativos e simbólicos ou esses nomes têm uma importância técnica e esotérica?
Depende: há posturas que incluem uma descrição no nome e são portanto autoexplicativas, como por exemplo o prasārīta pādottānāsana: prāsarīta = afastado, pāda = pé, uttāna = alongamento intenso; “postura de alongamento intenso com os pés afastados”. Há outras que aludem a seres dos reinos animal ou vegetais e outros objetos da natureza, como por exemplo o vṛṣchikāsana: vṛṣchika = escorpião; “āsana do escorpião”. Ainda, existe outra categoria de posturas que aludem a yogins, deuses ou reis da antiguidade, como por exemplo o matsyendrāsana: Matsyendra = nome do primeiro haṭhayogi; “postura de Matsyendra”. Todavia, alguns desses nomes aludem aos efeitos subtis que a prática possui sobre o corpo vital ou a mente, como por exemplo o dhāraṇāsana: dhāraṇā = concentração; “postura de concentração”.
21 – Quais as técnicas de meditação mais típicas do Haṭha Yoga? Os yantras geométricos são de origem tántrica e típicos do Haṭha Yoga tradicional?
Os yantras são, sim, de origem tántrica, mas não diria que “típicos” do Haṭha. Yantra significa “instrumento que serve para reter”. Etimologicamente deriva das raízes yan, reter, restringir, controlar; e tra, instrumento, artefato. Os yantras são símbolos ou diagramas que encerram em suas linhas os princípios do Tantra e do Yoga: imagens do macrocosmos que se refletem no microcosmos. Constituem excelentes suportes para meditação, embora sejam também utilizados na magia popular hindu para fazer invocações.
Alguns são simples. Outros, de estrutura mais complexa, como o Śrī, o Bhairavī ou o Kālī yantra, são diagramas desenhados sobre metal, madeira, pedra, ou diretamente no chão. Compõem-se geralmente de figuras geométricas entrelaçadas, circunscritas dentro do bhupura (“cidadela”), um quadrado de linhas de força. Esses yantras ocupam um lugar relevante no culto Śrīvidyā, que é uma forma de espiritualidade, digamos assim, “parente”, através o Tantra, do Haṭha Yoga.
22 – O Haṭha Yoga tradicional indiano era restritivo para as mulheres? Havia haṭhayoginīs? Senão, como vê a actual abertura total do Haṭha Yoga a todos os géneros, classes sociais e culturas?
O Haṭha Yoga nunca foi, ao longo da história, restritivo para as mulheres. Esse é um mito que ouvimos aqui no Ocidente mas que não encontra eco no que vemos na Índia. Em ambientes monásticos o que existe tradicionalmente é separação física: homens e mulheres ficam separados, hospedam-se em ambientes separados e praticam em lugares separados.
Nos templos, via de regra, as mulheres sentam do lado direito de quem olha para o altar, e os homens do lado esquerdo. Como os portais habitualmente são abertos para o norte enquanto as deidades olham ao oeste, isso significa que as mulheres ficam protegidas dentro do templo, ficando os homens mais próximos da porta. A mesma situação se repete nas salas de aula. Mas isso não significa que a prática seja só para homens ou só para mulheres.
A Haṭha Yoga Pradīpikā (III:85) menciona a participação tanto de homens quanto de mulheres em algumas práticas de mudrā: “aspirando o sêmen (bindu) que se ejacula durante a relação sexual (maithuṇā), seja a pessoa homem ou mulher, obtém-se sucesso na prática de vajrolī.”
Mais detalhes sobre a participação de mulheres na prática de mudrā (III:93): “após a prática de vajrolī durante a relação sexual, uma vez finalizada toda atividade, o homem e a mulher, sentados confortavelmente, devem esfregar as partes mais nobres de seu corpo (cabeça, frente, olhos, coração, ombros e braços) com esta mistura”. Repare o leitor que não se faz alusão aqui à participação da mulher como mera espectadora ou convidada desta prática de sublimação da energia sexual.
Ainda, a obra dá instruções específicas sobre o vajrolī mudrā para mulheres (III:98-100): “misturam-se cinzas com bindu após a prática de vajrolī e esfrega-se esta mistura nas partes nobres do corpo, obtendo-se assim a visão divina. Se uma mulher praticá-lo o suficiente como para dominar esta técnica, se for capaz de absorver o bindu (ejaculado em seu interior) por um homem e o retiver dentro por meio de vajrolī, tornar-se-á uma yoginī. (Assim) sem dúvida, não se perde nem a mínima quantidade de fluxo vital feminino. No corpo (da yoginī) o nāḍa torna-se bindu”.
Esse mesmo texto (III:50) ainda menciona um pormenor curioso: “Se o yogin pressionar a língua contra o orifício do palato, fazendo fluir o somarāsa, que tem sabor salgado, ácido e picante, mas que também parece leite, mel e ghee, elimina todas as doenças e a velhice, fica invulnerável aos ataques armados, alcança a imortalidade e os oito siddhis e se torna irresistível para as mulheres siddhas.”
Ora, tornar-se “irresistível para as mulheres siddhas” implica que há mulheres que são siddhas, adeptas das práticas, e que as relações entre homens e mulheres praticantes de Haṭha Yoga era algo tão espontâneo e aceite que podia ser mencionado sem maiores problemas num texto desta natureza.
Destes exemplos, podemos deduzir não só que as mulheres praticavam o Haṭha Yoga na antiguidade, mas que elas igualmente tinham um papel preponderante nas práticas da sublimação da energia sexual, importante ritual dentro do processo da alquimia tántrica que mencionamos na resposta à décimo terceira questão. Outros textos da época não dão os detalhes que vemos aqui, mas sendo a Haṭha Yoga Pradīpikā uma das obras mais representativas do Haṭha, podemos concluir que mulheres, sim, praticavam esta forma de Yoga, e que havia instruções específicas para elas, como acabamos de ver.
No mundo do Yoga, a misoginia nos tempos atuais existe de fato, e há pessoas que justificam essa postura apelando para o mito que diz que na antiguidade mulheres não podiam praticar Haṭha ou outras formas de Yoga, nem estudar Vedānta. Esse é um grande equívoco que ouvimos repetidas vezes, especialmente no Ocidente. Porém, felizmente esse ponto de vista é sustentado por alguns poucos professores e o que vemos hoje em dia é o que o Yoga sempre foi: plural, aberto, para todos os seres humanos, e respondendo as diferentes necessidades de cada praticante de acordo com o com ele ou ela estão prontos e preparados para receber do Yoga.
gratidão wagner xavier
Excelente! Uma síntese baseada em profundo conhecimento que nos ajuda a arrumar toda a informação espalhada, credível ou não, contraditória, não cronológica, mítica… à qual temos acesso.
Muito agradecida por partilhar o seu conhecimento!
Hari Om Tat Sat
Que riqueza! Obrigada Pedro!! Namaste
Tenho estudado o hatha yoga mais a fundo ultimamente, e gostei de ter passando por aqui.
Gratidão professor!
Namaste.
Enunciado esclarecedor, direto, objetivo e de profunda pesquisa ao praticantes de Yoga,. parabéns .
Maravilhosa entrevista! Muito. Obrigado
Que entrevista ótima! Muito instrutiva e agradável de ler! Um bom exemplo de como ser educativo com clareza, sem atacar ninguém! Obrigado por compartilhar!