Nīlakaṇṭha: Śiva como Salvador
É surpreendente a força da espiritualidade na Índia. Qualquer visitante pode verificar que lá, os deuses estão vivos! Śiva, que significa ‘O Benéfico’, é uma das várias formas divinas que reúne aspectos contraditórios.
As numerosas e diferentes formas de Śiva representam a dialética da própria natureza. Suas manifestações são complexas e às vezes, aparentemente contraditórias: Mahākala é o Senhor do Tempo, Mṛtuñjaya é o Vencedor da Morte, Paśupati é o yogi que medita nas florestas, Senhor das Feras, Sarva é o Arqueiro, Mahādeva é o Grande Deus, o deus da vida e da morte, Natarāja é o Rei dos Dançarinos, Ardhanārīśvara é o andrógino, que unifica e transcende as dualidades.
Diferentemente da ideia que temos em nossa cultura judaico-cristã, Śiva é a síntese, a integração das forças da vida e da morte. Seus mitos são símbolos que expressam de maneira poética e alegórica a percepção que o povo hindu teve e tem das verdades universais, bem como da reconciliação entre a poesia e a religião por um lado, e a ciência, pelo outro.
Dentre essas inúmeras formas, destacam-se duas que parecem ser pólos opostos: Nīlakaṇṭha e Mahakālā. Por um lado, Śiva é o preservador da criação, sob a forma de Nīlakaṇṭha, “Aquele da Garganta Azul”. Nessa forma, Śiva absorve em si próprio o veneno do mundo (hālāhala, ou kalakaṭa). Esse veneno é a antítese do néctar celestial da imortalidade, chamado amṛta.
Para que a imortalidade exista, a morte também deve existir. Apenas Śiva, o grande yogi que está além das dualidaes, pode absorver o veneno da morte e salvar o mundo. Śiva é ao mesmo tempo, então, o Senhor da Vida e da Morte, do nascimento e da dissolução.
Por outro lado, Śiva é igualmente Mahakālā, o devorador do tempo, que dissolve o universo (mahāpralāyā) no final dos ciclos cósmicos (mahakalpas). Nesta forma, ele revela um aspecto de grande profundidade filosófica: o tempo é rítmico. É por isso que Śiva é o senhor da dança, Natarāja. Ele dança o tāṇḍava, a dança da dissolução, marcando o ritmo com o damaru, um tambor em forma de ampulheta.
O mito de Nīlakaṇṭha, conhecido como O Bater do Oceano de Leite (samudrā mantham) exemplifica o quanto o deus Śiva integra em si próprio as forças de criação e dissolução, bem como todas as ambigüidades, dualidades e pares de opostos.
A história é assim: muito, mas muito tempo atrás, deuses e demônios estavam engajados numa luta sem quartel pela supremacia e pela conquista da imortalidade. Nessa guerra, a arma definitiva seria o Amṛta, o Licor da Imortalidade, que jazia no fundo do Oceano das Águas Causais.
No entanto, todo o poder dos deuses, inimaginável para nós, mortais, era insuficiente para extrair o Amṛta das profundezas. Ainda mais, quando os demônios estavam concentrados na mesma tarefa, e boicotavam o esforço dos deuses.
Brahmā, o Criador, conclamou então um encontro para resolver a questão. Acordou-se que deuses e demônios cooperariam entre si, ao invés de lutar. Vishnu assumiria a forma de Kūrma, uma tartaruga gigante. O ciclo do deus Vishnu inclui dez encarnações, das quais a tartaruga é a segunda. Essas encarnações são chamadas Avatāra, que significa “Aquele que Desce [para salvar o mundo]”.
Śiva Natarāja dança o Tāṇḍava,
a Dança da Dissolução,
no fim dos ciclos cósmicos (kalpas)
Sobre as costas de Kūrma, os demais deuses colocariam o monte Maṇḍāra, e ele desceria carregando essa montanha até o fundo do Oceano das Águas Causais (Samudrā). O deus-serpente Vasuki, enroscado ao redor da montanha, serviria como corda, puxada alternadamente por deuses e demônios, cada grupo ficando numa das beiras do Oceano.
Desta maneira, Kūrma, girando alucinadamente com os braços e as pernas abertos, trabalhou como uma espécie de liquidificador gigante, que espalhou as águas do Oceano em todas as direções, fazendo com que os tesouros submersos nele desde o início dos tempos, viessem à superfície. A tarefa estava dando muito certo, até a aparição do Veneno.
A maneira em que o Veneno Mortal surgiu é aberta a interpretações. Por um lado, algumas versões do mito de Nīlakaṇṭha afirmam que ele jorrou das profundezas do mar quando deuses e demônios começaram a bater as águas.
Por outro, algumas versões sustentam que ele foi segregado por um imenso peixe que morava nas profundezas do Oceano, e que foi incomodado por Kūrma quando este começou a bater as águas.
A aparição do veneno kalakaṭa marca o fim da Primeira Era das quatro do presente ciclo cósmico. Essa Era Cósmica chama-se Satya Yuga em sânscrito, que significa Era da Verdade, ou Era do Dharma.
Śiva estava meditando no alto do Himalāyā. Deuses e demônios foram lhe rogar para serem salvos daqueles vapores letais. Ele aquiesceu, e bebeu o veneno, ficando com a garganta colorida de azul. É por isso que ele é chamado Nīlakaṇṭha, o da Garganta Azul.
O nome Garganta Azul aponta para o fato de que não existe nenhum conflito entre o coração e a mente de Śiva. Mente e coração estão em sintonia, alinhados e, entre eles, só existe espaço vazio, representado pela cor azul. Nīlakaṇṭha é aquele que vê todo o mundo em si mesmo, e a si próprio em todo o mundo.
O desapego de Śiva perante a vida e a morte é absolutamente aterrador. Ao beber o veneno kalakaṭa, ele salva o Universo. Ao absorver em seu próprio organismo o veneno do mundo, ele redime a Humanidade.
Desta maneira, deuses e demônios puderam retomar a tarefa de desenterrar não apenas o licor da imortalidade, mas igualmente a deusa Lakṣmī, que surge das águas numa cena idéntica à do nascimento de Afrodite na mitologia grega, e que acaba casando com Viṣṇu, bem como alguns valiosos tesouros, dentre os quais destaca-se o kauṣṭhubha, uma jóia que o deus carrega até hoje no peito.
Uma vez resgatados esses tesouros, os deuses deram uma rasteira nos demônios para ficarem com o licor da imortalidade. Mas essa é já outra história…
Uma prática: o Gāyatrī mantra de Śiva
Oṁ tat Puruṣāya vidmahe
Mahadevāya dhīmahi
Tanno Rudraḥ pracodayāt
Fazemos e para compreendermos que tudo o que acontece na vida é um presente, uma bênção (até mesmo aquilo que não conseguimos compreender, ou aquilo que nos desagrada).
Nīlakaṇṭha e o medo dos āsanas
Até hoje, os devotos de Śiva sobem desde Rishikesh até o templo de Nīlakaṇṭha Mahādeva, nas montanhas do Garhwal Himalaya. Alguns deles percorrem todo o caminho fazendo namaskaram, uma prática igual à saudação ao sol que você conhece, mas que deixam literalmente no chinelo aquelas 108 saudações ao sol que você morre de medo de fazer.
A cada namaskāram, avançam-se aproximadamente 150 centímetros, numa caminhada íngrime em subida, de mais de quinze quilômetros. Testemunhamos grupos de devotos fazendo essa prática em mais de uma ocasião. Uma vez, até mesmo durante a noite. Então, você não precisa ter medo dessas práticas! É só fazê-las da maneira correta e segura, e entregar-se.
॥ हरिः ॐ ॥
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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Obrigado amigo, grande mensagem de um povo extraordinário que ajuda a Terra a milhões de ano,gratidão por dividir teu conhecimento conosco.Estamos na Terra também para compartilhar e semear o bem.Grande abraço Namastê
Obrigada pelos seus conhecimentos. Beijos de muita luz na alma… Namastê.
Poxa, Pedroji, não poderia ler essa matéria sem deixar o meu comentário. Agradeço a sua ajuda por sugerir o nome Nilakantha para o meu espaço de Yoga. A minha identificação por Shiva continua sendo muito grande e depois de ter conhecido o templo de Nilakantha, lá em Rishikesh, achei que tinha muito sentido batizar o espaço com esse lindo nome. Votos para que esses aspectos transformadores de Shiva Nilakantha continue por aqui!
Namaste!