Começando, Pratique

Coincidência, superstição e causalidade

O presente artigo aborda o problema da superstição no Yoga e busca uma saída para praticar com bom-senso e os pés na terra, sem ferir a lógica nem brigar com a realidade.

· 16 minutos de leitura >
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O problema da superstição no Yoga

Um dos leitmotivs da cultura do Yoga é o aforismo ‘tudo está conectado’. Esse tema, central e recorrente na literatura do Yoga, aparece explicitado em afirmações vaidikas como ‘O Universo inteiro é uma grande família’ (vasudaiva kutumbakam), ou ‘Assim como no Ser, também no corpo’ (yata brahmande tata pindade).

Muito embora seja verdade verdadeira que existe uma conexão intrínseca entre Brahman, a Consciência Única, e todas as formas, animadas e inanimadas, isso não se estende necessariamente a todos os aspectos da realidade, quando observada desde a perspectiva do ego ou da mente de cada pessoa.

Por momentos, o ego, permeado pela ignorância, nos faz perceber conexões onde elas não existem. Um antigo texto não-dualista chamado Yogavasiṣṭha usa o derivativo kakatalīya, para referir-se a situações desse tipo. Kakatalīya quer dizer ‘sobre o corvo na palmeira’.

Porém, antes de entrar na definição desse importante, mas esquecido conceito, e já que um dos temas deste texto é a causalidade, permita-me o paciente leitor ilustrar o quê seriam coincidências acidentais contando dois ‘causos’.

Superstição no surf: ‘A lua cheia faz o mar subir’

Na década de 1990 tive a oportunidade de trabalhar como voluntário durante cinco anos no projeto Sentinelas do Mar, que tinha como objetivo fazer um estudo do que se conhece como clima de ondas na costa brasileira.

Esse projeto, idealizado pelo Dr. Eloi Melo e patrocinado pela Marinha do Brasil, antecedeu em alguns anos a popularização das previsões das condições para o surf na internet e a instalação dos primeiros waveriders (bóias que medem as ondas em alto mar) no litoral do nosso país.

O Dr. Eloi organizou uma rede de surfistas ao longo das mais importantes praias de surf da costa ocidental da América do Sul, desde o sul da Argentina até o litoral do Ceará.

Os surfistas recebemos, durante cinco anos consecutivos, um curso básico sobre engenharia de ondas e fomos treinados na observação e medição das ondulações, em termos de tamanho, procedência, intervalo entre as ondas e outros dados relevantes.

Quando voltamos para as nossas praias, muito contentes com o nosso recentemente adquirido conhecimento sobre engenharia oceânica, nos deparamos com uma situação muito peculiar: a força das superstições na comunidade do surf.

Há uma lenda nessa comunidade que diz que ‘o mar sobe de lua’. Ou seja, que haveria uma influência misteriosa da ‘força da lua’ na formação das ondas oceânicas.

Se bem é verdade que a proximidade da lua ao nosso planeta nas fases cheia e nova, influencia nas marés, também é verdade que isso não tem nada a ver com o nascimento das ondas em águas profundas, que se deve basicamente, à ação dos ventos em alto mar.

No entanto, na praia de Itaúna, onde eu morava à época, aconteciam discussões homéricas entre o grosso da comunidade surfística e os poucos surfistas que aderiram à razão, sobre se a lua fazia ou não fazia ‘o mar subir’.

As teorias que circulavam naquela época no folclore surfístico sobre as razões da existência às ondas eram tão curiosas como ilógicas. ‘O mar sobe porque é carnaval’, dizia um. ‘O mar sobe nos quatro dias da mudança da lua, ou três dias antes ou depois dessas mudanças’, dizia outro.

Ora, recebendo essa informação, eu fazia a seguinte conta: 4 + ( 3 + 3 ) x 4 = 28. Isso significa que deveríamos ter ondas em todas as praias do planeta durante os 28 dias por mês lunar. Ou seja, todo santo dia!

As pessoas que usavam estes argumentos eram totalmente refratárias ao questionamento, e simplesmente se recusavam a ouvir os argumentos que a física tinha para explicar a presença das ondas nas praias.

Se a chegada de uma ondulação coincidisse com o dia da lua cheia, nós tínhamos que suportar os comentários irônicos daqueles que se negavam a enxergar as evidências.

Como veremos mais adiante no texto, algo similar acontece hoje em dia no mundo do Yoga.

Superstição

Gatos terapeutas

Meu amigo Ricardo disse-me numa oportunidade que alguns terapeutas da Nova Era afirmam que, quando um gato deita sobre os corpos dos seus amigos humanos, ele irá procurar os ‘cakras fora de equilíbrio’.

Assim, uma das funções desses felinos domésticos seria, desinteressadamente, contribuir para o equilíbrio energético das pessoas que convivem com eles. Acontece que têm gatos e humanos de diferentes tamanhos.

Se a gata Chandra deita sobre meu tronco, ela vai pegar dois ou três cakras ao longo do eixo da espinha dorsal. Se a gata Jaya, que é bem maior, deitar sobre mim, irá pegar três ou quatro cakras.

Deveríamos então concluir, supondo que a premissa fosse verdadeira, que cada gata faz um diagnóstico diferente dos meus ‘desequilíbrios cákricos‘? Como poderiam ser interpretados esses sinais?

O bem-estar que nos produz estarmos em contato com animais domésticos poderia ser considerado uma terapia de balanceamento dos chakras? O calor corporal que os gatos transmitem indica que os chakras foram ‘reequilibrados’?

Ora, acredito que os gatos deitam sobre os humanos apenas buscando eles mesmos nosso calor corporal e conforto. É por isso que eles geralmente buscam a parte mole, entre o esterno e o abdome da pessoa.

Ou seja, pela conta dos referidos terapeutas, os humanos teríamos desequilíbrios energéticos crônicos apenas nos centros sexual, solar e cardíaco (svādiṣṭhāna, manipura e anāhata). Concluo isso, pois nunca vi um gato deitando sobre os chakras coronário ou básico de um humano.

O corvo na palmeira

As duas situações expostas acima apontam para o mesmo fato: a mente humana tende, precipitadamente, a fazer conexões entre fatos reais, mas que não estão necessariamente vinculados entre si. A palavra sânscrita para definir essa situação é, como dizemos no início, kakatalīya.

Esta palavra é composta por kaka, que significa corvo, e tala, que significa palmeira. Traduz-se como o exemplo ‘do corvo e a palmeira’. No entanto, numa tradução livre, mas que apontasse para a intenção do vocábulo, poderíamos dizer que kakatalīya significa ‘coincidência acidental’.

Antes mesmo do Yogavasiṣṭha, o Nyāyasūtra (‘Aforismos sobre a Lógica’), um texto do século VI dC atribuído ao sábio Akṣapāda Gautama, também cita a falácia do corvo na palmeira expondo a seguinte hipótese: um corvo pousa num coqueiro.

No mesmo instante, um coco maduro desprende-se da árvore e cai. Embora esses dois fatos estejam aparentemente vinculados no tempo e no espaço, não existe uma relação causal entre eles.

Às vezes, é isso o que acontece na vida. Porém, a mente, confinada dentro de seus próprios limites lógicos, tende a criar um nexo entre os acontecimentos, inventando um ‘portanto’ e um ‘então…’ para satisfazer-se.

Assim, se alguém, por exemplo, reza para que algo aconteça, e isso coincidir com a realização daquele desejo, a pessoa tenderá naturalmente a acreditar que existe uma conexão causal entre a reza e a realização.

Desta maneira, a pessoa desenvolve a idéia de que é possível forçar Īśvara (o Ser manifestado na forma da criação) a agir de acordo com seus próprios desejos e vontades.

Assim, aquilo que parece uma sucessão verossímil de acontecimentos conectados, não passa de uma falácia, algo que parece verdadeiro, mas não é. Há uma palavra em sânscrito para dizer falácia: hetvabhasa.

Aristóteles na palmeira

Essa falácia exposta na filosofia hindu foi igualmente postulada na filosofia grega pelo grande Aristóteles, que afirmou: post hoc, ergo propter hoc. Traduzindo: ‘Depois daquilo. Portanto, provocado por aquilo’.

Em suma, o que a falácia aristotélica diz é: ‘Isto aconteceu depois daquilo. Como aconteceu depois, isto só pode ter sido provocado por aquilo’.

O coco caiu da palmeira depois do corvo pousar nela. Conseqüentemente, o pouso do corvo provocou a queda do coco. Essa falácia, que ficou conhecida como post hoc, pode ser resumida da seguinte maneira:

1. A aconteceu antes de B.
2. Portanto, B foi produzido por A.

O corolário deste falso silogismo é que, quando B é algo indesejável, evitar A certamente irá nos ajudar a evitar B.

A tendência a cair neste tipo de pensamento sofismático é natural, já que o seqüenciamento de eventos na linha do tempo nos faz pensar que cada evento deriva e está conectado com o anterior, em todos os casos.

A lei do karma naturalmente é o princípio de causalidade, em que cada evento se origina no anterior e dá lugar, por sua vez ao seguintes.

No entanto, é preciso compreensão para ver onde existe conexão causal entre eventos sucessivos e onde essa associação é apenas um produto da nossa mente.

Cabe lembrarmos que este tipo de falácia é uma conclusão tirada unicamente sobre o seqüenciamento dos eventos percebidos desde a perspectiva de quem interpreta, desconsiderando todos os demais fatores não percebidos pela testemunha, mas que possam intervir ativamente na situação.

Superstição e religião

A superstição é um tipo de crença irracional que leva a estabelecer obrigações imaginárias, a temer coisas inócuas ou a acreditar em presságios e sinais, sempre originados por coincidências fortuitas.

A superstição está baseada na falsa conexão de causa e efeito entre esses fatores aleatórios. De modo geral, pessoas de uma determinada religião (ou tipo de Yoga!) irão enxergar pessoas de outras religiões (ou modalidades de Yoga) como supersticiosas.

Ateístas e agnósticos, por sua vez, tenderão a ver pessoas de todas as religiões como supersticiosas.

Ninguém questiona dentro do catolicismo as curas milagrosas de Jesus, mas, se alguém afirmar que um santo hindu ou budista realizou os mesmos milagres, os católicos certamente irão torcer o nariz e chamar aquele santo de charlatão. Já testemunhei pessoalmente uma situação dessas.

Durante a epidemia de peste bubônica que assolou Roma no final do século VI, o papa Gregório I ordenou que toda vez que alguém espirrasse os demais falassem ‘saúde!’, para evitar que a doença se espalhasse (o espirro era o primeiro sintoma de que alguém havia pegado a peste e iria morrer brevemente).

Alguns anos atrás, um conhecido cardeal brasileiro afirmou que os incêndios de Roraima foram apagados pelas rezas dos católicos e pelas danças dos pajés. Como a chuva chegou depois, ela só pôde ter sido provocada, na mente dos crentes, pelas preces e danças.

Da mesma forma, no Tibete existe uma maneira infalível de salvar a Lua de ser devorada pelo Sol durante os eclipses.

Nas noites de eclipse, as pessoas sobem nos telhados das casas munidas de panelas e outros objetos que possam produzir barulho, batem esses objetos e gritam freneticamente até que, alguns minutos depois, o Sol obedece ao comando dos tibetanos e regurgita a Lua.

O povo desce dos telhados convencido de ter salvado a Lua e contente de poder participar diretamente na preservação da harmonia cósmica.

Por outro lado, alguns hindus acreditam que dá azar olhar ou apontar para a lua na noite do festival de Gaṇeśa, chamado Gaṇeśa Caturthi. Superstições são encontradas em todas as religiões, em todos os tempos.

Superstição e Yoga: o lado visível do iceberg

Um grande grupo de praticantes de Yoga se reúne semanalmente para mentalizar, entre outras coisas, que seu líder é o próximo ganhador do grande prêmio da loteria de São Paulo.

Até agora não houve evidências de que esse ‘círculo de mentalização’ tenha rendido algum dividendo ao ilibado líder, mas o empenho e a fé cega dos seus devotos continuam inabaláveis.

Alguns praticantes evitam ‘se misturar com pessoas de nível energético inferior’, i.e., não vegetarianos e não abstêmios, na crença de que relacionar-se, conversar ou simplesmente estar em presença dessas pessoas pode ‘comprometer o progresso em direção ao samadhi‘.

Outros acreditam igualmente que vinho ou maconha devem ser evitados porque ‘entopem as nadis (canais de energia)’.

Tem pessoas que acreditam que o sucesso no Yoga deriva única e exclusivamente de repetir técnicas. ‘Pratique e tudo acontecerá’ é um slogan repetido até o cansaço por muitos praticantes.

É uma dessas afirmações fáceis de lembrar, mas totalmente equivocadas. É o epítome do pensamento auto-ajudístico da Nova Era passando como um rolo compressor sobre a profunda, lógica e bela filosofia do Yoga.

‘Pratique e tudo acontecerá’ é a versão hathayogika da afirmação ‘você cria sua própria realidade’, que ilude tantas pessoas através de filmes como ‘O Segredo’.

No mundo do Yoga, infelizmente, poucos param para pensar que repetir mecanicamente gestos ou ações nunca poderá trazer magicamente paz, felicidade, plenitude, liberdade ou autoconhecimento.

A consciência não se amplia aplicando cegamente técnicas posturais, respiratórias ou meditativas. A única coisa que amplifica a consciência é o conhecimento de si mesmo.

O resto é aplicar a falácia e concluir que o coco caiu da árvore porque o corvo posou nela.

Justifico então aqui a afirmação do parágrafo anterior. A prática de Yoga é uma preparação prévia, para nos qualificar para o conhecimento libertador.

Viṣṇupurāṇa diz que a prática é um olho e o estudo o outro. Sem mantermos ambos bem abertos, não poderemos ter sucesso no caminho do Yoga.

O conhecimento sobre si mesmo não pode derivar de uma experiência qualquer, incluindo-se aqui as práticas de ásana e meditação. Portanto, para obtermos liberdade (moksha), é preciso sim algo mais do que apenas fazer a prática.

Como sabemos, a identificação do ego com o corpo é algo natural. Se fizermos a prática sem consciência nem compreensão do contexto, poderemos acreditar que ela é algo físico, e acabaremos confundindo os meios com os fins, como é tão comum nos dias de hoje.

Se considerarmos que isto não contradiz o bom-senso nem a experiência humana, já ficaria demonstrado que não basta apenas fazer a prática e ‘tudo acontecerá’.

A parte oculta do iceberg

Porém, para bem além dos casos ridículos e caricatos acima narrados, que são apenas a ponta do iceberg das crendices no Yoga, há muito mais obscurantismo embaixo das águas do nosso folclore.

Infelizmente, verificamos que no mundo do Yoga esse tipo de sofisma é bastante freqüente, e leva a alguns erros de percepção na maneira em que o Yoga funciona e, ainda pior, na forma em que é enxergada a vida.

Uma tendência visível no uso da falácia do corvo na palmeira dentro do mundo do Yoga é pressupor que exista alguma conexão entre as práticas físicas e energéticas do Yoga e a cura fácil dos males do homem moderno.

Muitas vezes, essa solução mágica para nossos problemas é colocada de maneira tão leviana, supersticiosa e linear, que se isso chegasse aos ouvidos dos yogis dos tempos védicos, que sempre deram tanta importância ao discernimento, à observação e à compreensão da realidade, estes ficariam justamente indignados.

Sem querer abusar da paciência do amigo leitor, vou agora descrever uma situação que ilustra plenamente o que foi colocado acima.

Uns dias atrás estava lendo um artigo na internet sobre Yoga e boxe (esporte que pratico há pouco tempo, mas que estou apreciando bastante) e, para meu espanto, uma professora que a autora do texto entrevista, afirma numa determinada altura que ‘o virásana (…) confere confiança, mente estratégica e capacidade de superar todos os desafios’.

Diante disso, pensei: ‘Portanto, seguindo a lógica daquela professora, se eu sentar sobre os calcanhares assumindo a postura vīrāsana, adquiro imediatamente uma mente estratégica e ainda desenvolvo a capacidade de superar todos os desafios?’

Isso soa sedutor para qualquer lutador, creio. Mas, olhando com cuidado, percebemos aqui novamente a presença da falácia do corvo na palmeira.

Pessoalmente, não consegui compreender a conexão causal entre essa postura e as qualidades que a professora promete que eu vou ganhar no meu treino de boxe.

Não quero aqui ironizar a afirmação dela, mas sinceramente, não consigo acreditar nessa promessa, nem usando a lógica, nem o que diz a minha experiência como praticante, já que faço vīrāsana há muitos e muitos anos e ainda não ganhei a tal da ‘mente estratégica’.

Continuo tendo que fazer um esforço enorme para encadear uma série de mais de seis golpes. Meus colegas, que tem bem mais desenvolvida a inteligência corporal do boxe, fazem isso com a maior facilidade.

A minha mente estratégica, apesar das décadas de vīrāsana, está muito aquém da mente estratégica dos meus colegas que nunca ouviram mencionar essa postura.

Asma e depressão: os limites da Yogaterapia

Na mesma categoria de pensamento sofismático entram afirmações como a de que o Yoga cura asma ou depressão. Doenças psicossomáticas como a asma tem causas complexas e soluções que passam por uma revisão total da vida e os hábitos do doente.

Se essas mudanças, que são sempre precedidas por uma transformação dos paradigmas da pessoa, não forem implementadas, de nada adianta fazer prāṇāyāmas ou mantras, pois a asma sempre voltará.

O Yoga pode ajudar uma pessoa a parar para pensar e compreender sua doença, mas nunca deveríamos afirmar que o Yoga cura alguma coisa. Isso seria temerário e irresponsável.

No caso da depressão, a situação é ainda mais deprimente, com licença do trocadilho.

Aqueles que conhecem o contexto em que se dá o diálogo filosófico da Bhagavadgītā, entre o príncipe guerreiro Arjuna e seu mestre, o deus Kṛṣṇa encarnado num corpo humano, sabem que o primeiro apresentava todos os sinais de um quadro de depressão aguda: fraqueza, desespero, tremedeira, boca seca, desorientação e vontade de ficar quieto, sem nada fazer, sem ter que decidir nada.

Qual é a solução que Krishna propõe ao príncipe? Uma prática de āsanas para ‘voltar a sorrir’? Coloco essas palavras entre aspas, pois essa expressão aparece num texto recentemente publicado numa revista sobre o tema Yoga e depressão.

A solução da autora desse texto, obviamente, é praticar vārabhadrāsana e outras posturas para ‘se sentir um herói’ e ‘aumentar a auto-estima’. De novo, a falácia do corvo.

A solução que Kṛṣṇa propõe perante o quadro depressivo de Arjuna é o autoconhecimento. A aula que acontece na beira do campo de batalha não é uma prática de āsana sobre um tapetinho, mas uma lição sobre a natureza da natureza humana.

A cura de Arjuna acontece através da reconstrução da imagem que ele tem de si mesmo. Kṛṣṇa, de forma compassiva, mas firme, mostra para o príncipe que ele não tem motivos reais para sofrer.

A única coisa que ele precisa fazer é compreender a si mesmo. Processado esse auto-entendimento, Arjuna sente-se curado e a grande batalha do Mahabhārata começa.

Certamente, a Bhagavadgītā  não é um bestseller de autoajuda, nem oferece simpatias, soluções mágicas ou receitas baratas para a cura de algum mal.

Apenas ensina a verdade sobre o que os humanos somos, e qual é o nosso papel na criação. Isso chama-se autoconhecimento. Em sânscrito, atmabodha (atma = Ser, Si mesmo; bodha = conhecimento).

Outra situação que identificamos nos meios de Yoga atualmente é a importação de fragmentos de sistemas filosóficos, religiosos, psicológicos ou outros. Por vezes, colocar informações fragmentárias desses sistemas pode ser perigoso.

Um professor pode ouvir uma frase de alguém, que faz muito sentido num determinado contexto, mas que, se for tirada dele contexto e colocado noutro diferente, torna-se inócua, incompreensível ou até mesmo contraproducente.

Dou mais um exemplo (prometo que é o último!). Meu amigo Fig Diel, professor de Yoga que perdeu a visão, precisa medir cada passo para não tropeçar, cair ou se machucar.

No entanto, sua trajetória de vida é um exemplo de coragem incomum, altamente inspirador para todos: escala montanhas enormes e com grande grau de dificuldade técnica, surfa ondas muito grandes, de meter medo em homens de mar experientes, dá aulas de Yoga, estuda muito, viaja pelo planeta e tem uma vida independente.

Certa vez, ele sentiu dores no quadril e consultou um ‘terapeuta’ que, sem pejo, simplesmente lhe disse: ‘dor no quadril é incapacidade de dar um passo adiante na vida’.

Ora, o referido terapeuta (se cabe usar esse substantivo) não estava olhando para a pessoa à qual dirigiu suas palavras, senão não poderia ter dito isso.

Simplesmente, é inadmissível dizer para alguém que não enxerga, que faz um tremendo esforço a cada passo dado, e que já fez tantas e tantas demonstrações de auto-superação, que dor no quadril signifique incapacidade de dar um passo adiante na vida.

Se cabe alguma atitude construtiva, sábia ou compassiva em relação a uma pessoa privada do sentido da visão, essa atitude seria a de justamente valorizar e validar os atos de coragem em direção a autossuperação, evitando obviamente a atitude insensível de dizer que uma dor na bacia mostra incapacidade de andar pelas próprias pernas, ou cosa que o valha.

Se meu amigo Fig tivesse tendência à depressão, ou se desse crédito às palavras desse pessoa, poderia ter se fixado numa crença imobilizadora. Sendo ele uma pessoa de valor exemplar, a afirmação torna-se apenas patética e fora de lugar.

Resumindo, pode ser perigoso importar para dentro do Yoga de maneira descontextualizada partes de outros sistemas ou modelos de pensamento.

Na mesma esteira, vemos igualmente em alguns professores uma tendência a citar de forma descontextualizada fragmentos da própria ciência irmã do Yoga, o Ayurveda, de forma tão confusa que não fica claro qual é o propósito de cada uma, nem onde uma termina e a outra começa.

‘E o que eu tenho a ver com isso?’

Todos os exemplos acima descritos, desde a ‘mente estratégica’ que as práticas de Yoga dariam ao boxeador, até a recuperação da autoestima do deprimido, são sintomáticos de que alguns setores da nação do Yoga foram contaminados com o que se conhece como pensamento mágico.

O pensamento mágico é aquele que, confundindo analogias com identidades, abusando de falácias, sofismas, comparações e simpatias, estabelece relações de causa e efeito entre eventos que não tem nenhuma conexão.

Muitas vezes, aqui no Ocidente, o pensamento mágico aparece na forma das variadas distorções da lei do karma, ou como conseqüência da aplicação do ‘pensamento positivo’. Em suma, não é visto como magia, mas opera da mesma maneira.

O pensamento mágico é um tipo de irraciocínio causal que muito freqüentemente inclui idéias como a falácia do corvo na palmeira, além da crença de que a mente tem a capacidade de afetar o mundo físico (o já mencionado aforismo do pensamento Nova Era: ‘você cria sua própria realidade’ é o exemplo mais acabado dessa visão).

O pensamento mágico surge por momentos quando não compreendemos a realidade que nos circunda, quando não conseguimos estabelecer corretamente as causas dos acontecimentos, ou quando alguém enfrenta situações limite nas quais se perde o controle das ações ou emoções.

Esse tipo de condicionamento, por sua vez, nos impede de reconhecer coincidências ou padrões reais.

É obvio que ser otimista é muito melhor do que ser pessimista, mas daí a afirmar que você cria sua própria realidade, como se ensina na Nova Era, tem uma longa distância.

Não vai ser por apenas imaginar-se magra que a minha vizinha vai emagrecer para o verão. Não vai ser por imaginar uma chuva de notas de 100 dólares no jardim que o marido da minha vizinha vai ficar rico, como pontificam os profetas new age.

Digo isto porque, apesar de vivermos num mundo laico, numa era em que a razão deveria estar na moda, e apesar de que o Yoga propõe uma vida com ambos os pés firmemente fincados no chão da realidade, as situações listadas mais acima neste texto são sintomáticas de que alguma coisa está sendo distorcida na maneira em que o Yoga está sendo visto ou tratado por aqueles que deveríamos cuidar muito bem dele: os próprios professores e praticantes.

Então, ‘o que eu tenho a ver com isso?’ Todos nós, praticantes e/ou professores, mesmo se não tivermos pensado antes nisso, somos responsáveis por cuidar bem daquilo que foi transmitido para nós pelos mestres e professores das gerações anteriores.

Um dos ensinamentos que mais gosto do meu mestre, Swāmi Dayānanda, e que ele repete com alguma freqüência para nos lembrar, é que we are reality people. Somos gente da realidade.

O yogi é uma pessoa que evita viajar na maionese, capaz de analisar de maneira crítica e isenta a realidade em que vive.

O yogi é uma pessoa que não atribui causas sobrenaturais às coisas, que não se ilude nem ilude os demais e que, principalmente, não perde tempo em tarefas de duvidosa eficiência.

Não é fácil separar o joio do trigo em momentos de desorientação.

Porém, a responsabilidade do praticante sério está justamente em assumir para si essa tarefa de discernir e ajudar os demais a discernirem o que vale do que não vale.

O que é eficiente do que não é eficiente para curar algum mal. O que é Yoga do que não é Yoga. O que é autoconhecimento do que é auto-enganação.

Todos sabemos que os seres humanos não deveríamos nos deixar arrastar por crenças irracionais ou pensamento mágico.

Somos dotados de inteligência e discernimento, e deveríamos usar essas qualidades da maneira mais construtiva e sábia.

Sabedoria, bom-senso e livre arbítrio deveriam prevalecer sobre obscurantismo, superstições e crenças, dentro e fora do Yoga.

॥ हरिः ॐ ॥

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॥ हरिः ॐ ॥

Publicado originalmente nos
Cadernos de Yoga
cadernosdeyoga.com.br

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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11 respostas para “Coincidência, superstição e causalidade”

  1. Quero defender junto com este texto e com todos os outros deste site que a meta mais sublime do yoga deve ser preservada e perpetuada.No entanto a própria história do yoga plena de inúmeras experiências existenciais mostra que embora a razão sempre esteve muito presente ela nâo esgota a complexa relação que se estabelece entre um jivan mukta e o universo sagrado na sua causa e efeito,e tambem não deixa de estar presente aliada a percepções sutis que as vezes tocam a real causa de um fenõmeno..Isso me faz crer na possibilidade real de alguns sidhis estarem se manifestando em eventos como o dos pajés e a chuva,pois tambem os pajés tem uma relação de humildade e conhecimento com a natureza.Considero as questões abordadas neste texto muito presentes na caminhada de auto conhecimento e transformação de um ser humano,devendo haver lugar ,acho eu,tanto para o resguardo em relação a conclusões apressadas ou grosseiramente supersticiosas,quanto para a abertura as possibilidades inúmeras em nossa relação com a terra,com a criação,com os devas ,com o espírito supremo.
    Obrigado por mais um texto com questões excelentes para se meditar.

  2. Gostaria muito de saber se com a prática da yoga é possível se transportar para algum lugar ao qual temos muita vontade de ir ou estar através da meditação, … Encontrar uma pessoa por exemplo?
    Se puderem me responder fico-lhes muito grata.
    Mara.

  3. Pedro, Muito obrigada pela informação valiosa, que muitas vezes aceitamos muito facilmente algumas “afirmações” sem questionar a sua coerência. Obrigada por me acordar! Namastê!

  4. Excelente matéria, assunto oportuno, mas as ligações às vezes incompreensíveis num primeiro momento, podem se revelar mais adiante. É proibido generalizar. O bom senso deve prevalecer sempre. Sem fanatismos.

    Quanto ao virásana, por energizar o muladhara, o anahata e o ajna chakras principalmente, é dito que dá as qualidades que a professora falou. Por isso é a postura do herói. Visão clara da situação, pés no chão,desprendimento da ação.

    A escrita está cada vez melhor, parabéns.

  5. É muito bom, a gente poder ter esses artigos para ler , eles nos abrem mais a visão nos fazem refletir um pouco nossos atos e pensamento. Vlw! Grande abraço! E boas ondas! Namaste!

  6. Oi Pedro!
    Como de costume, seus textos são sempre esclarecedores e práticos!
    À propósito, seus exemplos nunca são cansativos, são sim elementos que trazem o ensinamento para o dia-a-dia.
    Consigo vê-lo falando quando leio seus textos pois me lembro nitidamente dos dias cheios de aprendizado e companheirismo vivenciados no curso de formação!
    Obrigada pelo esforço valiosíssimo de manter o site, ele é uma ferramenta de estudo sem precedentes!
    Abraço apertado!

  7. Adorei o artigo. Realmente é muito opressor entender a lei do karma dentro de um sistema de causa e efeito em que parece que tudo depende de nós. Pelo que me parece o filósofo Sêneca tem uma reflexão menos causal para a realidade do mundo. E inclusive recomenda o pessimismo como um ingrediente para a felicidade. Não saberia dizer aqui exatamente o que ele diz com isso. Procure se quiser sobre o pessimismo em Sêneca, Pedro. É bem legal. Acredito que você vai gostar. Hari Om.

  8. Um texto muito interessante! Obrigada, Pedro por se ter lembrado de escrever algo sobre este tema: é fácil “viajar” e ganhar comportamentos idênticos aos descritos esquecendo-nos da realidade e do discernimento que deverá estar sempre presente. Namastê! Tânia.

  9. Oi Pedro, gostei muitíssimo deste artigo. Como naturóloga sou muitas vezes enquadrada nestas crendiçes do universo “haribolístico” , coisa que muito me incomoda. O caso do Fig me chamou muita atenção, como alguém pode afirmar algo – mesmo que seja uma relação simbólica com referência bibliográfica, tão profundo, sobre outra pessoa? Nesse mundo dos naturebas e terapêutas despreparados de final de semana, que cresce mais rápido do que o número de advogados formados semestralmente nas universidades, a verdade de que “tudo está conectado” tornou-se aconselhamento terapêutico com receita e tudo, o que muitas vezes torna-se o maior obstáculo no próprio processo terapêutico. Grande abraço!

  10. Grande Pedro,
    Excelente o texto, quando terminei o primeiro curso de formação que você ministrou e comecei a dar aulas, incomodavam-me muito os alunos que buscavam no yoga elementos esotéricos, buscavam algo irreal, ou seja, mais um instrumento de fuga. Parei de dar aulas, tenho muita vontade de voltar, mas uma das coisas que me impede é essa visão distorcida de yoga que a mídia vem difundindo. Quanto ao boxe, fiquei surpreso com seu depoimento, pois gosto muito de praticar, mas cheguei a ser repreendido por outros colegas yogis, os quais diziam que a “nobre arte” era incompatível com um praticante de yoga; talveza mais uma superstição a ser ignorada. Quem sabe, se nos encontrarmos novamente poderemos “trocar luvas” para aliviar o estresse. Abraços,
    Bruno Noya.
    =====================
    Caro Bruno,
    Obrigado pelas notícias. Certamente, se existe preconceito de praticantes de Yoga em relação ao boxe, isso se deve ao desconhecimento que essas pessoas possam ter do boxe como arte. Da mesma forma que o Yoga pode parecer um exercício físico quando olhado desde fora e sem a devida atenção, o boxe pode parecer algo brutal e distante de uma vida de dharma. Mas isso não significa que de fato todas as pessoas que se dedicam ao boxe encontrem prazer na violência. Aliás, nada está mais longe do boxe como nobre arte. Mais uma coisinha: você sabia que o boxe nasceu na mesma época e lugar que o Yoga, a cultura do Vale do Indo-Saraswati, na Índia antiga?
    Abraços e namaste!
    Pedro.

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